O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

domingo, 20 de dezembro de 2009

O INF. CANTO XXII

Andando os dois Poetas pelo aterro, à esquerda vêm muitos trapaceiros que, por aliviar-se, bóiam acima do piche fervendo. Sobrevêm os diabos e um deles é dilacerado. É deste Ciampolo, de Navarra, que consegue depois, livrar-se das garras dos diabos o que dá motivo a uma briga entre os demõnios.
Texto do Tradutor
"Te pego miserável!..."
Vi cavaleiro marchar para a guerra, travar luta, engalfinhar-se no combate e, até soldado procurando fugir a fim de proteger a vida. Em nossa terra, vi luta entre esquadras, aretinos juntos em aguerrida luta. Vi as vaquejadas e os torneiros. Ouvi o clamor das trombetas, as badaladas dos sinos, os sinais de alerta nos castelos, os tambores de guerra, as novas armas ou as antigas entre nós usadas!... Porém, nunca vi mover peões, nem corredores, nem embarcações, nem quem controle a terra ou as estrelas, nem clarim algum que emitisse som semelhante aos que foi emitido por aqueles dez demônios ao soltares terríveis gases; (que bela tropa militar!); porém, rezar como santo ou uivar como lobo, tanto faz; deixemos os tais demônios!.
Minha atenção estava voltada para o piche fervente, procurando imaginar quantos estavam naquela negra cova. Quem ali está a gemer e a derramar seu pranto? Assim como o navegador avistando o golfinho com dorso recurvado, sabe que é presságio de mau tempo e, para isto se prepara buscando abrigo, assim, alguns dos condenados buscando alívio, os dorsos mostravam; mas, qual relâmpago, logo desapareciam.
Como, à beira de pântanos a rã deixa de fora a cabeça, mantendo os pés e o corpo protegidos sob a lama, assim no piche fervente, aquela gente pecadora aparecia; mas, vendo que Barbariccia próximo estava, rápido nas bolhas ferventes se esconde. Porém, o que presenciei naquela horrenda cova, só ao lembrar me dá calafrios. Eu vi um desditoso condenado atrasar-se e, ficar sobre a resina fervente, - qual rã sobre a lama fica - enquanto as outras desaparecem. Perto, ali estava Graffiacone, irado; vendo o condenado assim desprotegido, com seu terrível tridente o agarra pela viscosa cabeleira lançando-o ao ar, qual lontra com seu alimento pescado. Eu me lembrava muito bem, do nome de cada um dos dez demônios; por isso, prestei bem atenção quando foram escolhidos e também, reconhecê-los podia, rapidamente; então fiquei atento ao que fariam. Assim gritavam os agitados demônios: “Rápido, Rubicante! Crava-lhe os ferrões pelo costado!”
“Mestre”, - disse eu – “se puderes, pergunta quem é o miserável que caiu nas garras dos malditos demônios”. Moveu-se o Mestre e, já próximo à cova, perguntou-lhe qual era a sua terra natal. “Em Navarra eu nasci”, respondeu. (Ciampo de Navarra, o qual serviu na corte do rei Teobaldo II de Navarra.) “Minha mãe me pusera a serviço de um fidalgo , após meu pai ter destruído nossa fazenda e a própria vida, com sua mão feroz. Na vida familiar de El-rei Teobaldo, eu entrei, mas, abusando se sua confiança, vendia seus favores, trapaceava. Agora sofro aqui, pelo mal que pratiquei“. De repente Ciriatto que possuía presas iguais as do javali, cravou-lhe, cruelmente, os enormes dentes. Na mão de seu maior inimigo, caíra o rato; o demônio Barbariccia segurando-o entre os braços, grita: “Alto lá! A mim cabe dar-lhe o merecido tratamento” Então o condenado voltando-se para meu Mestre, diz: “Antes que o bando me tenha dilacerado, pergunta-me o que quiseres, se ainda desejas”.
Virgílio então pergunta: “Dos pecadores que te fazem companhia, há algum que seja latino?” Respondeu o condenado: “Vou contentar-te no que desejas saber; deixei lá no piche alguém que se dizia de lá... Ah! Se eu tivesse ficado em sua companhia, não estaria agora sendo atacado por unhas e arpões”. Então, Libricoco que estava perto, gritou-lhe: “Ah! Seu folgado!... Isso é demais!” E aquele algoz com um golpe de lança dilacerou um braço do desgraçado. Draghignazzo também queria as pernas do condenado; mas Malacoda, irado, revira os flamejantes olhos, e os dois se acalmam.
Cessa um pouco a gritaria; então, pressuroso, o Mestre perguntou ao infeliz aflito que olha o efeito doloroso causado pelo golpe: “Quem foi essa alma que lá no piche deixaste antes de vir a toma?” Respondeu o pecador: “Foi Frei Gomite de Gatura; (vigário de Ugolino Visconte; por dinheiro, deu liberdade aos inimigos de seu senhor.) que nas fraudes se envolveu; protegendo inimigos, foi por eles premiado, tornando-se assim, traidor de seu amo. Por ouro, como ele próprio confessou seu plano, deu liberdade aos inimigos. Em fraudar provou ser ele mestre, mas, nas trapaças e enganos, foi soberano. Com ele está Miguel Zanche, (foi vigário do rei Enzzo, em Logradouro) o que foi juiz de Logradouro, e que não cansa de ostentar seu tesouro conseguido através da prática de crimes cometidos em Sardenha”. – De repente gritou o condenado: “Ai!... Vede como range os dentes, esse outro demônio! Poderia passar pela frente mas, receio sentir na pele a fúria dos seus afiados arpões”. E com gestos estranhos ficou atento, e olhando com o rabo dos olhos observa os demônios que estavam a discutir. Foi quando Barbariccia se aproximou de Farfarello, querendo-o ferir, e gritou: “Sai daí, pássaro feio! Termine com essa discussão, Malabrabche!”. Então, o condenado disse em voz alta: “Não temem meus companheiros a dura vingança por que eu, de onde estou, com apenas um assobio, segundo nosso costume quando queremos avisar uns aos outros que podem vir à tona, faria aparecer não um, mas, muitos dos que estão escondidos que, esquecendo o perigo à tona virão, contra todos se lançando”. Cagnazzo de repente levantou o fucinho e, balançando a cabeça gritou: “Cuidado!... Estão tentando se livrar do piche fervente!...”. E continuou: “essa brincadeira está cansando os meus nerrrrrrvos! Se, estão tentando fugir, terão tormento redobrado”. Alichino que também participava da briga, sentindo-se humilhado por ter sido advertido diante dos outros diz: “Se estão preocupados com a minha presença, não sairei correndo mas, voando; antes porém, hei de te agarrar levando-te pelos ares até ao alto do penhasco; depois escondidos, voltaremos pela ribanceira; será maravilhoso se a todos eles enganares!”.
Agora, caro leitor, surpreso ficarás com o que ocorreu! Já iam os demônios se preparando para a planejada cilada, quando todos, ao mesmo tempo, voltam enfurecidos a olhar para um dos lados; e o que viram? O Navarro, que planejara tudo! Procurando enganar os demônios, ao piche fervente se lançou mas, mudando de direção e, rápido como um raio, ganhou o espaço em direção a liberdade. De tal afronta todos os demônios sentiram o azedume, principalmente o causador da vergonhosa fuga, que aos berros, saltou do pico do rochedo dizendo: “Te pego miserável! Sinta-se preso!” Porém o medo superou a vontade e, enquanto o fugitivo no piche fervente mergulhou, o outro no ar ficou suspenso. Assim mergulha ágil o pato na água, quando avista o falcão; e este, perdendo a caça, se torna caçador cansado e triste. Então, Calcabrina, furioso com mais essa derrota, voou para alcançar o condenado mas, vendo o fundo da cova, retornou; e voltou as garras contra o maligno companheiro procurando briga; os dois se atracaram; furiosa luta foi formada sobre o lago fervente. Então, o feroz gavião rápido no outro as unhas lhe cravou. E espantosamente entrelaçados ambos no piche fervente caem, de corpo inteiro. Sentindo a grande fervura os dois se separaram e tentaram subir mas foi inútil, pois as asas ficaram presas ao viscoso betume. Os outros vendo aquilo, se condoeram. Então diligente, Barbariccia envia quatro companheiros que, de lanças em punho, foram rápido socorrê-los. De um lado e do outro chegaram rapidamente, estendendo os arpões aos companheiros envisgados, mas, em vão tentavam salvá-los, porque naquela crosta ardente, cozidos já estavam. E, desta forma os deixamos lá na cova.

O INF. CANTO XXI

No quinto compartimento são punidos os trapaceiros que negociaram os cargos públicos ou roubaram seus amos. Eles estão mergulhados em piche fervendo. Os dois poetas presenciaram linquense por obra de um demônio. Virgílio domina os demônios que queriam avançar contra eles. Virgílio e Dante, escoltados por um bando de demônios tomam o caminho ao longo do aterro.
Texto do Tradutor.

"Mergulha-o no piche fervente..."
Assim, de ponte em ponte íamos, conversando sobre coisas que nesta Comédia não é oportuno comentar, quando paramos para observar outra cova, por ouvir sons de outros terríveis lamentos; olhando para baixo vi horrenda escuridão!
Em Veneza, na estação mais fria do ano, nos estaleiros, o piche (betume) ferve durante todo o dia, não somente para vedar o casco dos barcos, mas, também para aquecer o ambiente de trabalho; enquanto um pescador conserta o que foi avariado, o outro, com extrema competência constrói um novo barco; uns prendem com pregos algumas peças na popa e na proa; com perfeição são feitas as velas, mestra e de ré. E, com espesso betume fervente são revestidos o fundo, os lados e toda parte do barco. Assim, aquela cova cheia estava de betume fervente. Na superfície eu via bolhas que a fervura levantava, ora crescendo, inchando, ora diminuindo, porém, sem nunca parar.
Enquanto estava eu a olhar o fundo daquela terrível cova, Virgílio exclamou: “Tenha cuidado!” E, puxando-me para junto de si, tirava-me de onde eu estava. Voltei-me como alguém que se apressando em fugir, olha apavorado ao seu redor enquanto foge; então vi atrás de nós um demônio, correndo em nossa direção. Ah! Que aspecto feroz! Ah! Como me pareceu horrendo e temeroso, veloz nos pés, com as azas estendidas e carregando nas costas um condenado. Estava segurando o desditoso pelos calcanhares.
Já sobre a ponte onde estávamos o terrível demonio gritou: “Ó Malebranche, (cara branca) eis um dos anciãos de Santa Zita”! (anciãos de Sta. Zita – supremos magistrados de Luca, cidade que tem como protetora, Sta. Zita.) Mergulha-o no piche, pois estou voltando àquela terra onde muita gente perversa habita. Lá todos são iguais a este, porém, menos importantes que Bonturo. (Bonturo Dati, magistrado mais venal do que os outros.) Para ele, o “sim” se transforma em “não” quando entra em jogo o ouro!” E lançando o condenado no piche fervente, saiu correndo pelo duro rochedo, mais rápido do que corre um cão de guarda atrás de ladrão.
No piche fervente o maldito condenado afundou; depois, subiu à tona todo encurvado como se de joelhos estivesse. E embaixo da ponte, os demônios gritaram-lhe:
“Não há aqui nenhum Vulto Sagrado para que te ponhas de joelhos assim, nem podes nadar como ou banhar-se como fazias quando te encontravas no Serchio, Se não queres que nossas lanças te espetem, ficas ai no piche fervente submerso”. E com seus tridentes, dão mais de cem espetadas no maldito condenado dizendo-lhe: “Estás apavorado! Então ficas bem escondido! Mas, não penses que vais nos enganar!” Assim falando, lembrou-me o mestre de cozinha ordenando aos seus ajudantes para não deixarem na panela, nenhum pedaço de carne no caldo descoberto.
Então falou o Mestre: “Não permitas que esses demônios te vejam; eles poderão te molestar; procuras, pois, abrigo em algum recanto desse rochedo; certamente o encontrarás. Não temas que o bando inimigo me atinja. Sei muito bem como lhe aplacar o furor; já o venci em outras vezes em igual perigo”.
Dirigiu-se então o Mestre até ao extremo da ponte; mas, quando à sexta borda já subia, urgência teve em se mostrar tranquilo pois, com a mesma fúria com que os cães são atiçados sobre um pedinte que, exausto pára, à espera de auxílio que lhe alivie a cruel fome, assim vindo de embaixo da ponte, em acesso de ira, os demônios investem sobre ele, (Virgílio) brandindo suas lanças; mas, com voz enérgica, grita-lhes o Mestre: “Que nenhum se atreva! Suspendam suas lanças e um de vós venha até mim e escute-me; depois decidam se devem me ferir ou não”. Reunindo-se, o bando decidiu – “Vá Malacoda (pele mole) e escute-o”! Enquanto os demais ficavam em seus postos, um que sai da roda diz: “Que queres”? E o Mestre responde: “Acreditas Malacoda que eu aqui estaria se não por Celestial ordem e Supremo querer? Deixas-me ir, pois a lei Divina ordena que eu, nessa dura jornada guiasse alguém”. Ouvindo tais palavras, o orgulho de Malacoda se esvai; aos pés lhes cai o tridente e, voltando-se ao bando diz aos gritos: “Este não poderá ser incomodado”.
O Mestre voltando-se a mim disse: “Tu que, cauteloso, abrigado está entre os rochedos, volta a mim livre de qualquer temor”. Corria eu depressa para perto de Virgílio, quando os demônios me descobrindo, e se investiram contra mim com tanta fúria que acreditei tivessem eles quebrado o acordo que fizeram com meu Guia. Meu medo era tanto que me senti tão trêmulo quanto os soldados de Caprona que, confiantes num acordo feito no campo de batalha, estremeceram, ao se verem cercados pelo inimigo. Nos ameaçadores gestos deles, estavam meus olhos fixos e, em Virgílio, presos estavam meus braços e todo o meu corpo. Com os arpões voltados em minha direção, dois deles gritavam: “Vamos espetá-lo pelas costa?” e os outros respondiam: “Oh! Pois não! Que seja espetado!”. Mas aquele que conversou com meu Mestre ordenou com firmeza: “Fica quieto, Scarmilione!” (Nome de um dos demônios.) Então todos silenciaram; depois nos disse: “Andar por essas rochas não podereis, porque a sexta ponte está totalmente destruída, sem restar-lhe nenhum pedaço. Se adiante quereis ir, façais seguindo o caminho deste lado; não muito distante, percebereis o rochedo por onde andareis. Ontem, cinco horas a mais do que este instante, fez mil duzentos e sessenta e seis anos que a ponde desabou. (O demônio falava cinco horas antes do meio-dia de 26 de Março de l.3OO. Ao meio-dia seriam transcorrido l.266 anos da morte de Cristo.) É então pela rocha que devereis seguir. Tereis a companhia de meus sócios que irão vigiar o bando dos condenados, para que nenhum deles escape e tente raptar-vos. Indo com os meus, não sereis, molestado”. Então chama alguns dos companheiros e ordena: “Calcabrina, Alichino, vão juntar-se a Calguarzzo! Barbariccia comandará a decúria (grupo de dez) que será formada por, Droghinazzo, Libicoco, Graffiacane, Ciriatto, Farfarello e Rubicante. Na ronda cada um se mostre atento, cuidando para que nenhum condenado escape do piche fervente. Quanto aos dois caminhantes, sejam eles conduzidos, até atravessarem o arco da ponte que até agora estava em perfeito estado”.
Apavorado disse eu: “Que vejo ó Mestre? Já que conheces o caminho, vamos somente nós e, rápido; de tais guias, dispensam-se os cuidados! Se, és prudente como sempre foste, cuidado! Não vês como eles estão rangendo os dentes e nos encarando com furor crescente?” Então disse o Mestre: “Não temas. Deixa-os ranger os dentes quanto quiserem pois, essa fúria não é contra nós mas contra os que estão lá em baixo mergulhados no piche”.
Deixando-nos, os demônios se afastaram, porém antes disso, fizeram caretas mostrando os dentes e por gozação mostram a língua para o chefe. Ele então lhes voltando o traseiro, emitiu sons de trombeta, acompanhados de insuportável odor.

sábado, 21 de novembro de 2009

O INF. - CANTO XX

No quarto compartimento os impostores que se dedicaram à arte divinatória (Magia).Eles têm os rostos e o pescoço voltados para as costas, pelo que são obrigados a caminhar a reverso. Virgílio mostra a Dante alguns, entre os mais famosos está a tebana Manto, da qual se origina Mântua, cidade natal de Virgílio.
Texto do tradutor


"És também insensato?..."
Como matéria ao meu vigésimo canto devo narrar, como são punidos os farsantes e outros ímpios, que se dedicam à arte de enganar.
Estava eu disposto a fazer qualquer esforço para ver o que se passava naquele abismo de onde se escutava amargo pranto. Vi ao longo daquela terrível cova, multidão de almas, tristes e lacrimosas andando a passos lentos, como aqui na Terra se anda em procissão.
Olhando mais a baixo, percebi que, de modo espantoso, todos os condenados dali tinham, o pescoço e a cabeça voltados para trás, mas caminhavam seguindo a direção dos pés. Olhar, para frente não podiam. Somente por força de paralisia, pudesse haver alguém assim com o corpo retorcido mas, é difícil acreditar que haja. A Deus provesse, caro Leitor, que te fosse útil esta lição! Pensas com carinho, como cresceu em mim a compaixão, vendo infelizes naquela terrível situação; choravam e, o pranto que dos olhos lhes saia, descia pelas costas e rolava pelas nádegas.
Apoiado no rochedo eu chorava tão profundamente, vendo aquela dor, que o Mestre, me repreendeu dizendo. “És também insensato? Aqui não há lugar para piedade. Que ternura sente Deus por eles, se os condenou a tamanha tortura? Ergue pois, a fronte e repara naquele condenado que se atirou no abismo, perante os tebenos, quando lhe gritavam: “Para aonde estás correndo, Anfiarau; isso são modos de se deixar o campo de batalha?” (Anfiarau, que morreu no sítio de Tebas quando, prevendo a sua morte, tentara esquivar-se de tomar parte nessa batalha). No entanto, ele penetrava no vale onde Minos, a todos atormenta. Querendo adivinhar o futuro, tem a frente voltada para as costas e, a recuar caminha, olhando somente o que ficou para trás. Eis ali Terésias, o que mudou de aspecto, tomando forma e feições femininas, sendo-lhe o que era varonil, desfeito. (Adivinho tebano que foi transformado em mulher, e depois, transformou-se novamente em homem.) Voltou a se tornar novamente homem quando, encontrando duas serpentes unidas entre si, com um golpe de bordão, as separou, tornando-as perfeitas. Ali está Arons, (adivinho lembrado na “Fardália” de Luciano.) que tem o ventre voltado para as costas; no monte Lunos, de onde se vê Carrara, teve sua permanente residência em gruta de mármore, de onde podia consultar livremente os astros e o mar. Essa mulher ali – continuou meu Guia – que, com suas fartas e longas tranças oculta os seios e tem a pele protegida por pêlos, foi Manto, (filha de Terésias que a tradição diz ter fundado a cidade natal de Virgílio – Mântua.) que andou errante e incerta por muitos lugares e, somente encontrou repouso na terra aonde nasci. Do que estou me referindo, falarei mais um pouco. Vendo que seu pai já havia se despedido da vida e que a cidade de Baco, (Tebas) estava sendo tristemente subjugada, saiu a vagar pelo mundo por longo tempo. Na bela Itália, nos Alpes junto ao Tirol, já perto da Alemanha, existe um lago chamado Benaco. Canal de fontes mil que banha a região entre os montes Garda, Carmônica e Apeninos, com habilidade, conduz suas águas em grande quantidade, formando esse imenso lago. (hoje, largo de Garda). No meio do lago, há uma ilha em que o Pastor trentino e com ele, os bispos de Bréscia e de Verona dizem, transmitir bênçãos divinas. Onde em Benaco a região é mais baixa e faz fronteira com Bréscia e Bergamo, forte trincheira se eleva altiva, resguardando as armações de pesca. Nas enchentes, quando o lago não consegue reter suas águas, dali elas escorrem formando um grande rio, que encobre fartamente os prados; esse rio, mesmo não sendo permanente, recebe o nome de Múncio e, com esse nome continua, até unir-se ao rio Pó, que deságua no mar. Ao se aproximar o verão e, tendo ainda toda a planície se transformado em pântano, esse lugar representa grande perigo à saúde dos habitantes da região.
“Manto, a virgem errante, ali passando, viu esse lugar desabitado e árido cercado por aquele pantanal. Esquiva ao convívio humano, fez dali, a oficina de suas artes mágicas até ser levada pela morte. Desde então, o povo para ali se volta espalhando-se ao redor do lago, julgando ser aquele lugar abrigo seguro e forte por estar ele, cercado por águas e pântanos; mas, os que ali escolheram para viver, encontraram a morte. Com o passar dos tempos surgiu a cidade de Mântua, assim chamada em homenagem ao seu nome. Seus habitantes de multiplicaram tornando-a assim uma das cidades mais povoadas, antes das intrigas astuciosas entre Pinamonte e Casalodi”. (Pinamonti dei Bonacolsi, para apoderar-se de Mântua, induziu o governador Alberto de Casalodi a praticar atos violentos contra o povo, que se revoltou contra eles.) E continuou. “Ficas pois ciente: se alguém quiser afirmar que a minha pátria teve origem em outra fonte, não permitas que a verdade seja substituída pela mentira”.
Então disse eu: “As coisas que tua voz revela, para mim são tão verdadeiras que, tudo que outros me disserem, para mim é carvão extinto. Mas, diz-me ó Mestre, desses condenados que se aproximam, há algum que mereça atenção?”. Respondeu-me: “Esse cuja barba desce pelas costas, foi adivinho; quando a Grécia sofreu grande derrota, espalhou boatos infames ao dizer que na Grécia havia homens somente nos berços. Em Áulide, Calcas (outro adivinho da Antigüidade) vaticinara, indicando o tempo em a primeira frota deveria partir. Em Eurípilo (outro) um dos meus versos, essa história é narrada; bem o conheces, pois em tua mente ainda guardas. Aquele tão magro que próximo a nós está, foi Miguel Escotto (célebre adivinho do tempo de Frederico II) que era perito nas fraudes da magia. Olha ali Guido Bonati! (astrólogo do conde de Montefeltro) Veja também Asdente (sapateiro e adivinho em Parma) que deveria cuidar apenas da sovela; agora, arrepende-se inutilmente de ter desprezado a agulha, para se dedicar a terrível arte de encantos infernais; ai vem se aproximando as que se dedicaram ao curandeirismo; agora estão diante dos mesmos, que antes as achavam encantadoras”.
“Mas, vamos andando; no centro, onde se divide o hemisfério, está Caim com seu fardo e, em Sevilha, o mar já está além da fortaleza. (Caim: a lua; no tempo de Dante, acreditava-se que as manchas existentes na lua eram, a imagem de Caim carregando um feixe de espinhos.) A lua, sua face plena está mostrando! Lembras-te!? Ontem a viste na sombria selva, onde te ajudou seu brando fulgor”.
Enquanto o Mestre assim falava, ia eu seguindo seus passos no mesmo ritmo.
Nota: Não tem figura

O INF. - CANTO XIX

No terceiro compartimento, aonde os Poetas chegam, são punidos os simoníacos, Estão eles de cabeça para baixo, metidos em furos feitos no fundo e nas encostas do compartimento. As plantas dos pés que estão para fora dos buracos, são queimadas pelo fogo em chamas. Dante quer saber quem era um condenado que, mais que os outros, agitava os pés. É o Papa Nicolau III da casa de Orsini, o qual diz que estava a espera de ser rendido por outros papas simoníacos. O Poeta indignado, rompe em veemente invecdtiva contra a avareza e os escândalos dos papas romanos. Virgílio depois, o leva novamente a ponte.
Texto do Tradutor
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"Emfim chegaste Bonifácio..."
Ó míseros imitadores de Simão Mago por quem, os dons que Deus prometeu aos virtuosos, foram adulterados e trocados por ouro e prata! (Simão Mago, o que queria comprar dos Apóstolos, a virtude de chamar o Espírito Santo. – Por este motivo o mercado das coisas sagradas é chamado de simonia). Por vós soa implacável, a trombeta divina! Por isso, lançados foram nessa terceira cova!
Subindo pela rocha que se elevava sobre o cento do fosso, chegamos à outra terrível cova. Ó supremo saber! Que inefável perfeição mostras no Céu, na Terra e neste mundo infernal! E quão justo és na divisão do Teu Poder!
Vi por toda à parte da cova, nos lados e no fundo, buracos abertos, todos iguais e bem circular. No tamanho me pareceram exatamente com a pia da minha bela e resplandecente igreja de São João, usada para ministrar o batismo. (Pia na qual Dante foi batizado). Não há muito tempo, quebrei uma dessas pias mas, para salvar uma criança que ali caíra e estava quase morrendo afogada. Que a verdade agora fique conhecida e seja por todos compreendida.
Em cada um dos buracos havia um condenado enterrado de cabeça para baixo, ficando de fora somente os pés e as pernas até a altura dos joelhos; o resto do corpo estava dentro do buraco.As plantas dos pés queimavam tanto que, nessa tortura, as juntas se retorciam de tal modo que poderiam romper a mais forte corrente. As chamas percorriam do calcanhar aos dedos como se estivesse queimando um corpo untado de óleo.
Perguntei ao Mestre: “Quem é este que cercado está por mais alta e forte labareda e se agita os pés mais do que seus companheiros”? Respondeu-me: “Se for teu desejo, podes ir ao fundo por um declive que existe em baixo e assim terás o ensejo de ouvir-lhe o nome e os crimes por ele praticados”. Então continuei: “De bom grado aceito o que me propõe. Senhor do meu querer, tu és aquele que mais conhece o quanto desejo saber além do que me é guardado na memória”.
Ali descemos seguindo à esquerda, até chegarmos à quarta cova, aonde tantos buracos se vêem. De mim não quis o Mestre se afastar, senão quando conseguiu se aproximar daquele que gemia de dor causada pelas queimaduras nos pés.
Falando bem alto, lhe perguntei-lhe: “Ó alma oprimida, tu que estás nesta incômoda posição igual à estaca enterrada, seria possível responder-me”?
Estava eu ali qual monge que já tendo ouvido a confissão de um condenado preste a ser levado à execução, é chamado a ouvi-lo novamente, pensando o infeliz que desse modo a pena lhe seja suspensa.
Então o miserável gritou: “Enfim chegaste Bonifácio! Por vários anos errei a conta. Te saciaste da ambição pela qual profanaste e atraiçoaste a bela esposa? Por tantos crimes serás agora castigado”!. (O condenado Nicolau III pensou que Bonifácio VIII, tivesse ido ao Inferno para substituí-lo).
Fiquei como quem, não compreendendo o sentido do que o outro respondera, confuso, fica sem palavras.
Virgílio então me adverte: “Responda-lhe depressa: não sou, não sou quem tu imaginas”. Então respondi conforme me ordenara o Poeta. Ouvindo-me, o maldito agita mais ainda os retorcidos pés. Depois clama com voz de pranto: “Então, por que falas assim, me deixando tão curioso? Se tanto desejas conhecer quem sou a ponto de desceres à esse vale tenebroso, ficas sabendo que vesti a túnica e o manto de Papa. Verdadeiro filho de Urso, querendo ajudar aos meus ursinhos coloquei na minha bolsa todo o ouro que pude por isso, estou aqui dentro dessa infernal bolsa. Logo abaixo, estão os simoníacos que me antecederam. Terei que descer mais fundo como desceram os que antes de mim chegaram porém, somente depois que chegar aquele que julguei fosses tu, quando interrompido fui pela tua resposta. Mas, ficando aqui com os pés a queimar, demorarei mais tempo do que ele deverá ficar pois, logo chegará outro vindo dos lados do Ocidente, um pastor sem lei, condescendente e submisso ao Rei da França que recebeu dele proteção; por isso, nos empurrará mais para baixo e ficará aqui pagando por maiores pecados”. (Clemente V que mudou a sede do papado para Avinhão; muito ligado a Felipe, o Belo – rei de França).
Não sei se fui ousado, ou se foi dura a resposta que dei ao condenado, dizendo-lhe:
“Por ventura Nosso Senhor exigiu que Pedro adquirisse fortuna material quando aos seus cuidados e zelo, lhe confiou as chaves? - ‘Segue-me’ - foi o que lhe disse. Pedro ou os outros, por acaso exigiram de Matias qualquer valor, por ter sido este, escolhido para ocupar o lugar que o traidor havia perdido”?. E continuei: “Padece, pois mereces ser punido e, guarda a vil moeda que extorquiste de Carlos!... (Carlos d’Anjou). Não fora o respeito que tenho pelas santas chaves que empunhaste outrora quando, usufruíste vida farta e luxuosa, palavras mais severas lhe dirigiria agora, contra tua cobiça que envergonhou o mundo, vendo o vício adorado e exaltado, e o bem sendo oprimido. A tua figura, o Evangelista já vislumbrara (São João Evangelista) quando, teve a visão daquela que, sobre as águas assentada, fora visto a prostituir-se com os mais poderosos Reis. Nascera ornada de sete cabeças e dez cornos, buscando forças para se manter esposa virtuosa, enquanto o esposo, virtuoso se mantém. (Sete cabeças = as virtudes. Dez cornos = os 10 mandamentos. Esposa = a Igreja. Esposo = o Papa). Tua cobiça foi tão grande, a ponto de adorares deuses feitos de ouro e prata; e esses deuses chegam a centenas. Ah! Constantino! Que males vieram, não do teu batismo mas, da riqueza que doaste a um Papa e outras tantas que a essa se juntaram!”. (No tempo de Dante, se acreditava que Constantino ao mudar-se para Bizâncio, teria doado ao Papa a cidade de Roma e o domínio governamental).
Virgílio, através do seu semblante revelava aplaudir aquelas verdades que eu, sincero, proferia. Com júbilo, me levantava nos braços; depois, apertando-me contra o peito voltamos pelo mesmo caminho por onde havíamos descido. E, amparado pelos seus braços, alcancei o cimo do arco que dá passagem para o quinto compartimento. Ali, suavemente me colocou sobre um rochedo tão íngreme e irregular, que a mim parecia ser intransponível até mesmo para cabras. Dali, me foi mostrado outro vale.

O INF - CANTO XVIII

Encontram-se os Poetas no Oitavo círculo chamado Malebolge, o qual é dividido em dez compartimentos concêntricos. Em cada um deles, é punida uma espécie de pecadores, condenados por malícia ou fraude. No Primeiro compartimento são punidos com açoites pela mão dos demônios os alcoviteiros. Dentre eles Dante reconhece Venedicco Caccianímico e Já son. No segundo Compartimento jazem em esterco os aduladores e as mulheres lisonjeiras; entre os outros, Aléssio Interminei, de Lucca e, Taís.
Texto do Tradutor

"Por que estás neste cruel padecer?"
No Inferno existe um lugar escavado em rocha e cercado por muralha de pedra da cor do ferro em brasa chamado Malebolge. Localizado bem no centro dele se encontra um amplo e profundo poço. Em tempo oportuno direi de que se compunha. Entre o poço e o pavoroso penhasco, uma construção em forma circular ligando as margens do rio ao fundo do poço o qual é dividido em dez compartimentos, todos de igual tamanho e forma sendo todo ele cercado por fosso, igual aos que cercavam os muros dos castelos, para torná-los mais protegido; e, assim como essas fortalezas tinham sobre os fossos pontes levadiças, também em cada uma dessas covas atravessava em uma ponte de rocha em forma de arco, se concentrando para o centro do poço.
Foi nesse lugar que o monstro nos deixou. O Poeta então se dirigiu para a esquerda e eu o acompanhei. Olhando à direita, vi no primeiro compartimento novos suplícios que me encheram de compaixão. Bem lá no fundo estão os pecadores, sempre andando para lá e para cá. Os que vinham em nossa direção, andavam apressados, como em Roma, quando por ocasião do Jubileu e, a multidão se apinhava sobre as pontes, indo de um lado os que se dirigiam ao castelo de São Pedro e do outro, os que iam para os montes.
Durante todo esse caminhar, de cada lado os corníferos demônios com grandes chibatas os açoitam sem cessar. Com os primeiros golpes, cada bando se apressava, evitando que se repetisse o execrando estímulo.
Continuando eu a andar, avistei do lado oposto um dos condenados; olhei para ele e disse: “estou reconhecendo este espírito aflito”. Para melhor reconhecê-lo, parei um instante; deteve-se comigo o meu amável Guia, permitindo assim que eu me voltasse para trás. Aos meus olhos o supliciado esquivar-se queria, curvando-se e baixando a vista; porém, foi em vão o seu intento; então gritei: “Ó tu que te curvas, se a tortura não desfigurou muito as feições, estou te reconhecendo; tu és Venedico Caccianímico. Por que estás neste cruel padecer?” (Bolonhense que induziu sua irmã Gisela a entregar-se a Obizzo d´Este , marquês de Ferrara).
Ele então respondeu: “De mal grado confirmo o que dizes porém, não me oponho ao som dessa voz que à memória me trás boas recordações. Eu fui aquele que, ao vil desejo do marquês cedendo, a ele entreguei a bela Gisela. Somente agora estou revelando a verdade. De Bolonha, entre Savena e o Reno, muitos estarão comigo nesta cova, chorando e gemendo, a menos que eles se dêem a oportunidade de se corrigirem e que digam: “sipa”. (“Sipa”; palavra do dialeto bolonhês que equivale a “sim” ou “seja”.) Se disso queres prova, lembra-te somente de quanto tem influência em nós, o veneno da avareza”. Ia ele dizer mais alguma coisa, porém, um demônio furioso o interrompeu chicoteando-o e dizendo: “Anda rufião! Mulheres, aqui não há para que possas vendê-las impunemente!”
Ao Mestre retornei e logo alcançamos a parte do escabroso penhasco que se estendia para frente, unindo-se à outra margem. Rapidamente por ele subimos e atravessamos, deixando assim o eterno e desalentoso recinto.
Chegando onde se vê a curva que foi feita para dar passagem aos chicoteados, disse-me o Mestre: “Pára e, procuras ver agora nas feições desses outros malfadados, alguns que ainda não conseguiste reconhecer pois, estão indo para mesma direção que nós”.
Da velha ponte, virando-me, vi a triste e longa fileira de frente para nós; enquanto rapidamente marchava, era cruelmente chicoteada, sem parar. Vendo Virgílio que eu nada perguntava, me disse: “Repara bem naquela figura altiva, a quem o pranto de dor não lhe lava as faces. De Rei, conserva ainda viva, a majestade! É Jasão; feroz e altivo, em Colcos, pela força e pela astúcia, conquistou o velocino. (Mitologia -Chefe dos argonautas que, auxiliado por Medeia, - que ele seduziu e depois a enganou – conquistou em Cólquida o velocino de ouro – pele de carneiro com lã de ouro). Fugiu para Lemos, onde as mulheres dessa ilha, em horrenda e estranha fúria, tiraram a vida de todos os seus varões, a nenhum poupando. Ali, em Lemos, conquistou Hipsófile que foi por ele enganada; (mulher que antes disso já houvera enganado suas irmãs.) Grávida e desamparada, deixou-a. Atroz mentira mereceu de Medeia que, embevecida num enlevo de amor e ciúme, o puniu com terrível vingança. Por isso, quem como ele enganou, duras penas receberá”. E para encerrar disse: “Basta do que sabemos a respeito deste compartimento e de todos os que aqui sofrem torturas”.
Estávamos já em uma estreita vereda que com a segunda ponte se cruzava e dava firme sustentação à outra; dali, ouvíamos choro; vinha de uma multidão que ocupava o segundo compartimento e, que assoprando e batendo no rosto com as mãos, procurava afastar o ar que respirava. Estavam as paredes impregnadas de terrível odor. A exalação fétida que dali desprendia, se estendendo por toda a cavidade, subia, ferindo o olfato e a vista, horrorizava. O abismo era tão profundo, que lá do alto só se conseguia enxergar quem no fundo estava, prestando-se bastante atenção.
Então subimos e conseguimos ver no fundo do imundo fosso, gente mergulhada em meio a tão grande quantidade de fezes que parecia ser a única latrina existente no mundo.
Enquanto o fundo desse fosso eu olhava, notei ali uma figura tão suja de detritos fétidos, que não pude distinguir fosse de clérigo ou de leigo. Ela então gritou-me: “Dizei por que tua vista de mim não se afasta, se há tantos outros imundos aqui!”. Respondi: “Se não me ilude a memória, já ti vi sem essa nojenta cabeleira; es Alessio Interminei, de Lucca. Por isto meu olhar é mais atento a ti”. Então, dando socos na face disse-me: “Aqui, lisonjas vis me submergiram nestas fezes. Enquanto no mundo estive, fui hábil na arte de bajular”.
Logo depois que essa voz se calou, disse-me o Guia: “Fixa o olhar para mais adiante e, procuras distinguir as feições de uma mulher petulante e desgrenhada que, com as asquerosas unhas se dilacera, mudando de posição a todo instante. É Taís a meretriz que mentira ao namorado quando este lhe perguntara: “Ainda me amas” e, ela respondeu: - “Muito e com sinceridade”! Agora vamos; já vimos o bastante”.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O INF - CANTO XVII

Enquanto Virgílio fala com Gerião, (que simboliza a faude) para convencer essa horrível fera a levá-los ao fundo do abismo, Dante se aproxima das almas dos violentos contra a arte. Dante reconhece alguns deles. A cada um pende o peito uma bolsa na qual estão desenhadas as armas da família. Volta depois o Poeta para o lugar onde está Virgílio, que assentado sobre o dorso de Gerion, põe-no diante de si, e assim descem ao oitavo círculo.
Texto do Tradutor

"Que buscas neste abismo?"
“Eis que surge o monstro de horrenda e pontiaguda cauda, que perfura muros, montes ou qualquer outra proteção e com seu bafo impuro, o mundo contamina”. Assim falou meu Guia; e logo acenou para a fera, indicando-lhe o lugar pedregoso, aonde deveria ficar. A imunda fera se aproximou e pousou o enorme busto, porém deixando pendente sobre o abismo a enorme cauda em forma de seta. As feições tinham a aparência de homem justo, tanto se mostrava benigno e brando! O restante do corpo era de serpente; os braços e as axilas inteiramente cobertos por excessivos, longos e duros pêlos; o dorso e o peito malhados eram, por mil manchas e nós entrelaçados; a variedade de cores nunca fora visto nos recamados estofados produzidos pelos tártaros e turcos nem nos variados tecidos de Aracnes. (Personagem da mitologia grega, transformada por Minerva, em aranha).
Como um barco ancorado na areia, tendo no mar a popa e em terra a proa, ou como o caçador quando observa o castor que está a pescar, e espreitando fica a fim de pegá-lo, assim se via o mostro deitado na orla que cerca o abismo. No ar, revolvia a extensa e venenosa cauda de ponta bipartida, - lembrando a de um escorpião – que preparada estava para o ataque.
Disse-me o Poeta: “Para que possamos prosseguir, convém que o caminho seja feito pelo atalho, desviando assim daquele onde a fera atroz, jaz estendida”. Para fugir do fogo e da areia ardente, descemos pelo lado direito da borda do precipício, guardando dez passos de distância do mesmo. Quando chegamos próximo ao monstro, avistamos um pouco além dele, um bando de almas condenadas sentadas na areia perto desse enorme abismo. “Para que fiques sabendo de tudo o que acontece neste recinto, aproxima-te do abismo e, procuras reconhecer quem são e porque aqui estão. Porém filho, apressa-te no discurso. Enquanto isso, tentarei convencer a abominável fera a emprestar-nos seus fortes ombros”.
Em obediência ao Mestre, vou seguindo pela borda do sétimo círculo em direção aos condenados. Procurando proteger-se do vapor que do ardente solo sobe em direção aos rostos, aquela aflita gente se socorre das mãos, agitando-as, enquanto dos olhos, constantemente lágrimas escorrem. E naquele pequeno espaço de tempo em que os condenados sentem algum alívio, com as unhas e dentes cavam o solo, iguais a cães amestrados na caça às lebres. E eu, olhando aqueles rostos doloridos pela tortura do fogo, vi que eram todos desconhecidos. Porém, notei que, pendentes dos colos de alguns, estavam bolsas cujas cores os distinguia uns dos outros. Contemplando-as, pareciam ficarem mais tranqüilos.
Aproximando-me e melhor observando, vi bolsa na qual em fundo dourado, bordado em azul havia a figura de um leão; noutra, a alvura de um ganso em fundo sangüíneo. Havia um que ostentava alva e pesada bolsa de couro presa à cintura onde estava bordada a figura de um javali azul, que perguntou-me: “Que buscas neste abismo?” Depois falou – “Retira-te daqui! Porém, fiques sabendo que, à minha esquerda, embora da bela vida ainda gozando, há um assento guardado para Vitaliano”. (Usurário paduano que ainda vive). Sou paduano e estou entre muitos florentinos que todo instante me atordoam os ouvidos bradando: “Venha nobre! Venha monarca dos usurários que na bolsa trás esculpido três bicos”. (Giovani Baiamonti, florentino que tinha como brasão três bicos de pássaros). Depois, qual boi sedento de água retorceu a boca, esticou a língua para fora e lambeu os beiços. Porém, não querendo eu causar desgosto a quem me ordenara maior brevidade, os condenados deixei. No entanto, ouvia seus gemidos.
Meu Mestre que já se encontrava sobre o dorso do feroz e possante animal, disse-me: “Sê forte! Preparas teu ânimo para tudo, porque devemos descer e chegar a uma escada. Sobe! Ficarás à minha frente, e eu, sentado estarei entre ti e a perigosa cauda”.
Como um doente ardente em febre, que, por estar em local ventilado, sentindo frio e pálido, supondo ter chegado ao fim da vida assustado fica, assim fiquei quando essa ordem recebi; apavorado, com o peito acelerado e quase desfalecido. Mas, diante do Mestre, me vem um pequeno alento, sentindo-me envergonhado por nele não haver plenamente confiado. Já sobre as costas do horrendo animal quero ao Poeta gritar: “Senhor, abraça-me!” Porém minha voz não corresponde à intenção. E ele, que em outras ocasiões, em outros círculos tanto me animara, sustentando-me em seus braços me protegeu dizendo para fera: “Gerião, fiques atento à nova carga que tens agora! Vai, em vôos largos, sem pressa, mas não pára!”.
Como um barco que se prepara para navegar, suavemente recua, movimenta-se para um lado, depois, para frete segue, assim moveu-se fera. Colocando a cauda na areia no lugar onde estava o peito e retesando-a como enguia, movimenta as patas, toma impulso e fende o ar. Nem Faetonte quando das mãos perdeu as rédeas, (filho de Apo que, ao guiar o carro do Sol, de lá, precipitou-se); nem Ícaro, quando sentia, pelo sol ardente, lhe cair da cera cada pluma e, ouvindo do pai o grito “Ah, filho! Erraste o caminho!” (filho de Dédalo, que voando, tendo as plumas das asas presas por cera e que foram fabricadas por seu pai, ao solo precipitou-se), de pavor não se encontraram mais repletos do que eu, nessa viagem fora do comum, quando me vi no ar e enxergava somente a parte posterior do pescoço da horrenda fera. Sabia que estava voando lentamente e para baixo, pois sentia em torno ao meu rosto, o vento que se agitava.
Já se ouvia à direita, bem distinto, o troar de grande e escabrosa cachoeira. Então volto o olhar ao fundo do recinto e, estremecendo, encolhi-me ante a pavorosa cena: o flamejar de outro fogaréu e o ecoar de prantos. Percebi que ao fundo chegávamos, pois de todos os lados ouviam-se terríveis lamentos.
Qual falcão que pairando no ar olha para baixo, demora-se muito e sem conseguir a almejada caça, cansado e temeroso dos reclamos do dono, longe pousa, assim pousou Gedeão no fundo do vale deixando-nos sobre as rochas. E vendo-se livre do peso que carregava, sumiu como flecha disparada.

O INF. - CANTO XVI

Perto do limite do terceiro compartimento do sétimo círculo, os Poetas encontram outro bando de almas de sodomitas, no qual se destacam três ilustres compatriotas de Dante. Reconhecendo-o, falam da decadência das virtudes políticas e civis de Florença. Chegam à orla de outro precipício, onde a um sinal de Virgílio, sobe voando uma estranhíssima figura.
Texto do Tradutor

"Pára! Pelos teus trajes pareces ser alguém..."
Do lugar onde estávamos, ouvia-se o imenso ressoar de água caindo num outro círculo e o rumor igual ao zumbido de abelhas. Súbito, vi saírem correndo de um grupo que estava sob o terrível suplício da torrente de água que caia sobre elas, três almas que em nossa direção vinham, gritando: “Pára! Pelos teus trajes parece-me ser alguém vindo da nossa brava terra”. Ah! Que terríveis chagas novas e antigas lhes cobriam todo os membros e corpos, provocadas pelo fogo! Somente ao lembrar, sinto uma tristeza imensa.
O Mestre que as escutara, voltando-se para mim, disse: “Não prossiga! Cumpre-te esperar e mostrar-lhes que és amigo. Não estivesse o fogo as atingindo como requer este lugar, a pressa caberia mais a ti do que a elas”.
Paramos. Voltando a conversar, as três almas se reuniram próximos a nós e, de mãos dadas, formaram um círculo. Como fazem os atletas lutadores que, após untarem os corpos com óleo e, antes de iniciarem a luta procuram descobrir o ponto fraco do adversário para disso tirarem proveito, assim elas; revolvendo-se em vários giros, olhavam-me de tal modo que, seus pés ficavam em posição contrária aos rostos. Então, uma delas falou: “Se a miséria que nos aflige, se o triste aspecto de nossa queimada face te move a desprezar nossas súplicas e brados, nossa fama, o teu valor ultrapasse. Dize-nos pois quem és que orgulhoso ao Inferno pisas, antes que tenhas quebrado o fio de tua existência. Esse que diante de ti está, com o corpo esfolado e nu, mais do que acreditas, teve no mundo alto conceito. Da famosa descendência Gualdrada, seu neto foi; chamava-se Guido Guerra, que em vida, por seu esforço e prudência, digno se tornou, de reverência. (Florentino que combateu em Monteperti; foi ilustre pela mente e mestre pela espada.) A Tegghiaio Aldobrandi (também compatriota florentino) que veio para cá depois de mim, por sua palavra, por seus bons feitos, deverá a pátria ser-lhe agradecida. Eu que também aqui sofro, fui Jácopo Rusticussi; (valoroso cavaleiro florentino, que também combateu na batalha de Montaperti) as maldades da minha esposa, foram a causa dos meus pecados”.
Se houvesse como me proteger da pavorosa chuva de fogo, como piedoso desabafo da alma, a eles me lançaria e Virgílio teria consentido nisso; tenho certeza. Mas, vencido pelo temor de naquelas chamas me lançar, fiquei apenas com o vivo desejo de abraçá-los. Então, disse-lhes eu: “Nesse momento, me tem movido, não o desdém, mas a piedade que não se extingue, pelo padecer em que vos vejo. Tanto que o meu Mestre tem proferido palavras afirmando que, neste temido lugar eu encontraria almas ilustres. Da vossa terra sou; sempre exaltei vossos feitos que tanto honraram vossos nomes e, todos conhecem o apreço que vos tenho. Quanto a estar eu aqui conduzido pelo meu Guia, com verdadeira esperança, vou deixando o amargor desse lugar, pelas doçuras eternas; por isso, estamos visitando primeiro, o lugar onde vós habitando estão”.
Ela então respondeu: “Que no teu corpo a vida longamente permaneça! Que a fama do teu nome seja sempre de luz resplendente!” - E continuou: “Em nossa pátria, ainda continua acesa a chama da honra e do valor que ali existia ou esses valores foram apagados com o ódio e a infâmia? Pois, Guilherme Borsieri que aqui chegou a pouco e vai chorando nesta fogueira, afligiu-me muito, contando tudo o que viu”.
“Novos habitantes, súbita opulência! Florença, em ti foram acesas as chamas do orgulho e do vício, que tu mesma temes a influência!” - Assim gritei erguendo a fronte. - E as três almas que me eram atentas, diante da minha resposta se entreolharam, como se essas verdades a elas fossem ditas, assim me responderam: “Se, sempre te custa tão pouco, aos outros expor com franqueza teus pensamentos, feliz tu és! Tais modos de agir, te honrarão. Ao voltares à luz do firmamento, - se conseguires sair deste horrendo lugar – não permita que a humanidade se esqueça de nós!” Então, desfazendo o círculo por elas formado, fugiram velozmente como se asas tivessem e, desapareceram, mais rápido do que se gasta para proferir “Amém”.
Logo os meus passos seguiram o do meu Mestre. Dali, a pouca distância, ouvimos os sons de água e tão próximo de nós estava, que para ouvir o que falávamos era necessário, se fazer em voz bem alta. Igual ao rio que em Veso nascendo, corre em direção ao oriente, ao lado esquerdo dos Apeninos e, a partir daí passa a se chamar Aquaqueta e assim permanecendo até chagar a Forti, depois, diversos nomes recebe; de repente, se transforma em cascata e cai pela vertente, quando se aproxima de São Bento, o grande mosteiro que se pudera, asilo calmo daria a mil pessoas, assim desce essa torrencial cascata das alturas de um elevado penhasco com suas águas avermelhadas e, com tão alto estrondo, que quase me ensurdece.
Estava ainda comigo a corda com que tentara eu prender a pantera de pêlo malhado. Obedecendo as ordens do meu Mestre e sentindo-me seguro, desenrolei-a do meu corpo e, a ele entreguei. Voltando-se à direita, próximo a borda do longo despenhadeiro, ele então lançou a corda para o horrendo abismo. Pensei: “Aquela ação nunca antes praticada, deve haver motivo; para mim parece estranho mas, não ao Mestre que tem sua atenção a ela voltada”.
Quanta cautela e jeito ele mostrava! Tratando como se visse não somente os movimentos, mas também o que oculto estava. “Brevemente aparecerá”; – disse-me o Mestre – “é o que espero. O que estás pensando, logo aos teus olhos ficará evidente”.
Embora pareça absurdo, devemos sempre falar a verdade mesmo sofrendo desconfiança; evitando o homem proferir mentiras, de culpas estará isento. Por isto, caro leitor, nada posso omitir nesta “COMÉDIA” a fim de que ela seja para sempre, objeto de aplausos. Juro, que vi subindo sobre uma pequena âncora presa à corda, voando por aquele ar escuro e pesado, como que levada por uma perigosa onda e se desprendendo de ocultos embaraços, uma horrenda figura de aparência medrosa e ao mesmo tempo intrépida e segura, tendo as pernas encolhidas e os braços estendidos.

O INF. - CANTO XV

Continuando, os Poetas encontram um grupo de violentos contra a natureza. Entre eles está Brunetto Latini, que reconhece o discípulo e lhe pede para aproximar-se dele, a fim de conversarem. Falam de Florença e das desventuras reservadas a Dante. Brunetto dá ao Poeta ligeiras notícias a respeito das almas que estão danadas como ele e foge para reunir-se à elas.
Texto do Tradutor

"Filho meu! Sê complacente comigo!"
Íamos por uma das margens pedregosas. O vapor que do riacho se elevava e as bordas altas, nos resguardavam das chamas. Essas margens eram iguais aos diques que os flamengos (habitantes de Flandres, na Bélgica e França) erguiam, temendo o avanço das forças marítimas, entre Bruges e Cadsand; ou como aqueles que os paduanos levantam para impedir o avanço das águas do rio Brenta quando em Quarentina o gelo se desfaz. Assim eram as bordas desse horrendo rio, que devido à altura e largura, nenhum construtor acharia ser necessário.
Já distante da selva – tão distante estávamos que, volvendo o olhar para traz não se podia vê-la - encontramos numerosa multidão de almas que, marchando sob as chamas, ocupava toda a margem; e nos olhava continuamente como faz o caminhante ao encontrar com outro quando a luz do dia quase já desapareceu. Para nos ver, contraia tanto as pálpebras como faz o alfaiate quando precisa enfiar a linha na agulha.
Assim íamos nós sendo observados pela multidão quando reconhecido fui por um deles, que me vendo trajando roupa repetia: “Ó maravilha! Que maravilha!” Enquanto seus braços a mim se estendia, prestei atenção ao seu rosto que apesar de queimado, não impedia a mim fossem suas feições bem lembradas. Diante dele, inclinei-me, dizendo: “Messer Brunetto, vós aqui?” (Brunetto Latino, autor do “Tesouro” e mestre de Dante) E ele desconsertado respondeu: “Filho meu! Sê complacente comigo! Consente que teu amigo Brunetto, deixando a companhia dos demais, vá caminhando ao teu lado”.
Respondi: “Se isso for possível ficarei vos escutando por quanto tempo desejardes e o guia dos meus passos assim consentir.” Então, explicou-me: “Por muito tempo não é possível; pois se qualquer um de nós que padecemos por nossas culpas ficasse um só momento imóvel, parado, por cem anos seríamos pelo fogo torturado. Caminha que te irei seguindo; depois irei juntar-me aos que pranteiam no eterno tormento.”
Sair da estrada para ir caminhando ao seu lado, não ousaria; mas reverente, para ele inclinei fronte. Então continuou ele: “Que ventura ou que destino para aqui te conduziu antes da morte? Durante esta jornada, de quem recebeste orientação”?
Respondi: “Mesmo não tendo completado o tempo da minha existência lá na Terra e levando vida tranqüila, num tenebroso vale me encontrei perdido. Ele - Virgílio -me acudiu, quando eu estava tentando votar, e agora me conduz assim por esta estrada. Ontem, pela madrugada, comecei a me afastar do terrível vale”.
Continuou ele: “Quando ainda gozava eu da beleza da vida, te profetizei: ‘Uma estrela há de te conduzir ao glorioso porto’. Se não tivesse eu morrido antes de completar teus conhecimentos, vendo que o Céu te era tão benigno, te teria auxiliado mais nesta tua jornada. Mas, esse ingrato povo de Fiésolli (pequena cidade perto de Florença) e que pertence à mesma geração, tem de pedra o coração ferino, porque és bom, serás mal considerado entre eles e se tornarão teus inimigos, tornando-se bem claro que, entre os ásperos ramos do sobreiro, não se espera colher o doce figo. Existe um dito popular assim: “quem não fecha os olhos à soberba, à inveja, à avareza e deles não se afasta, pode se contaminar, pois eles são contagiosos”. Te aguarda a sorte honras de tal grandeza, que hás de ser cobiçado pelos partidos; mas das suas garras fiques longe; conservem neles próprios e em seu gado, os instintos bestiais; não toques na planta que na lama podre tenha germinado, mesmo que a semente tenha vindo dos ramos que ali restaram, e brote perfeita, pois foi germinada cercada de podridão”.
Respondi: “Se o céu, meus rogos escutando, vos concedesse agora a luz da vida, meus olhos o veriam com carinho pois minha mente ainda lembra saudosa vossa doce fisionomia e o paternal desvelo com que, hora a hora me haveis ensinado como pode o homem se tornar imortal; e enquanto eu vivo for, demonstrarei ao mundo o quanto vos sou agradecido. A vossa profecia juntamente com a outra, há de me ser explicada pela sábia Dama, se à sua presença eu comparecer. E, como a consciência não me pesa, saberei que, quando a sorte me estiver contrária, atento estarei à todo o mal que ela planejar. O que me dissestes, não penseis que seja para mim novidade pois, alguém já me havia alertado. Mova-se a roleta como a sorte a lança. Dela não me preocupo como não me preocupo de que modo o lavrador cuida da terra”.
Então Virgílio que se aproximava, voltando-se para a direita, virou-se para mim e disse: “Bem compreende quem boa lembrança tem”. Porém não me impediu que eu prosseguisse na conversa;
Enquanto caminhávamos pedi a Brunetto que me falasse sobre seus amigos mais famosos; e ele atendendo ao meu pedido disse: “De alguns falarei; de outros porém, convém saber que, sendo a maioria, louvável será deles não se fazer comentário; mesmo porque o tempo está passando e não podemos prolongar nosso discurso; quanto aos primeiros, muitos foram letrados e alguns até clérigos famosos, que se mancharam num mesmo pecado. No meio daqueles desditosos estão: Acúrio (Francisco d´Accúrsio, jurisconsulto bolonhês) e Prisciano (gramático, de Ceraréia) e se quiseres, poderei mostrar-te outro inescrupuloso e repugnante. Ali está aquele que foi transferido do Arno para Bacchiglone, como quis o servo dos servos, (o Papa), tendo ele lá mesmo terminado seus dias. Não posso mais continuar conversando e nem ficar ao teu lado, pois já percebo vir surgindo no areal, uma outra multidão de almas e, não devo andar com bando diferente. Peço-te me concederes um grande favor: cuide do meu “Tesouro”, porque somente nele ainda sou lembrado”.
Para voltar ao seu grupo saiu correndo tão rápido, como correm os participantes nas disputas festivas de Verona pela conquista do pálio verde; e assim correndo, parecia mais ser um vencedor do que um derrotado.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O INF. CANTO XIV

No terceiro compartimento ao qual agora chegam os Poetas, é um campo de areia ardente, devastado por grandes chamas de fogo. Aí estão os violentos contra a natureza e contra a arte. Entre os primeiros está Capaneu, que desafia a Deus. Continuando a andar, Dante e Virgílio chegam a um regato de sangue. Deste e dos outros rios do Inferno, Virgílio narra a origem misteriosa.
Texto do Tradutor


"Do mesmo modo que fui quando vivo, ... continuo sendo"
Comovido por seu amor pela velha pátria, reuni os ramos que estavam espalhados e coloquei junto às raízes daquele arbusto, que de tão fraco quase não se escutava sua voz.
Dali fomos seguindo até o limite do terceiro recinto, onde a justiça divina impõe horrível punição.
Para descrever claramente o que vi, digo que chegamos a um lugar onde vida vegetal não havia, em parte alguma. De um lado era cercado pela terrível selva dolorida; do outro, por um riacho de sangue. Ali, próximo à margem, eu pisava. Era aquele chão tão árido e quente, que me fez lembrar daquele que Catão pisara quando em sua fatigada jornada.
Ó justiça divina! Quem não te reverencia ao compreender o que meus olhos viram e a minha mente recorda! Eu vi infinita quantidade de almas, cada uma sofrendo de modo diferente e de acordo com sua culpa, miseráveis, insignificantes, se lamentando. Umas se mantinham deitadas de costas; outras, dobradas sobre os membros; muitas estavam sempre correndo. Dessas últimas era imensa a multidão e que maior dor demonstravam nos lamentos; e menor a quantidade das que estavam sofrendo prostradas.
Sobre o areal caiam chamas de fogo em todos os lugares, igual a neve caindo sobre as montanhas quando não há vento. Nas regiões da Índia, Alexandre viu chamas caindo no campo de batalha sobre o exército, e ordenou aos seus soldados que pisassem as chamas no mesmo instante que elas no chão caíssem. (Alusão a uma das aventuras de Alexandre Magno) Assim caia o fogo do Céu, que a menor fagulha, como isca, à areia se prendia, para aumentar o sofrimento. E cada uma sem parar se retorcia, envolvendo com os braços cada chama que do ar em sua direção vinha.
“Mestre” – falei – “tu que vais vencendo tudo, inclusive a legião furiosa que em Dite, impedindo a entrada estava, diz-me: quem é esse grande espírito, que parece não sentir as chamas e, indiferente permanece como quem furioso e insolente?”
Reconhecendo o condenado ser ele próprio o objeto da minha pergunta, irado grita: “Do mesmo modo que fui quando vivo, depois de morto continuo sendo! Pode Júpiter cansar o seu dileto fabricante de armas de quem recebe o cortante e agudo raio, para em mim saciar seu desprezível rancor! Podem seus ciclopes desmaiarem de cansados, lá na negra oficina de Mongibello (Ciclopes: gigantes de um só olho e no meio da testa, que fabricavam armas para Júpiter –Vulcano: o vulcão Étina, na Sicilia) ou ele sair gritando: “ Bom Vulcano, me salve ou me matarão“ como fez na batalha de Flegas! Pode ele me fulminar cheio de ódio e de fúria, que mesmo assim, não sentirá o gozo da vingança”.
Virgílio então com voz sonora e forte, como creio, nunca ter eu ouvido antes, grita-lhe: “Capanéu,(um dos sete reis que sitiaram Tebas) se a morte não fez diminuir no teu peito a soberba, sofrimento maior terás; não há castigo, pior do que a ira que te aflige”. E voltando-se a mim com gesto amigo falou: “Foi um dos reis que sitiaram Tebas; inimigo de Deus, se declara; por isto, no inferno os seus crimes se agravam; já havia lhe avisado - quem as blasfêmias e os furores no peito traz, prêmios dignos dele, recebe. – Agora, vem me seguindo com cuidado; não pises na areia incandescente; indo próximo a selva, evita-lhes os ardores”.
Fomos caminhando em silêncio, até onde do bosque avistei um riacho tão vermelho e quente, que só ao me lembrar fico trêmulo; veio-me à lembrança, o Bulicame ; (fonte de água quente perto de Roma). As margens e a orla, de cada lado, eram feitas de pedra, como também o seu leito. Pisando nelas levemente, percebi que poderia servir de caminho.
“De tudo o que te fiz conhecer depois que atravessamos aquela porta cuja entrada a todos dá acesso, nada de impressionante te foi mostrado que se compare à desse riacho que imediatamente apaga qualquer chama que em suas águas venha a cair.” Assim falando, o Mestre desperta em mim o desejo de mais coisas saber; então, rogo-lhe: “Mestre, diga-me mais coisas”!
E continuou: “No meio do mar existe um país triste e solitário chamado Creta que, quando sob o reinado de Saturno, conheceu a glória e a prosperidade. Há ali uma montanha que tem por nome Ida. Esquecida e desprezada, com suas ruínas, outrora ornada de verdes fontes e que foi berço preferido para o filho de Reia que com seus gritos e alaridos, encobria o chorar da criança. (Reia, mulher de Saturno e mãe de Júpiter). Nas entranhas do monte, erguida está a estátua de um velho. (O Velho de Creta, símbolo da humanidade e, segundo outros, da monarquia que em princípio boa e reta, vai depois se degenerando) Tem ele as costas voltadas para Damieta e o olhar embevecido para Roma, como a um espelho. De ouro é a fronte e as faces; de pura prata são os braços e o peito; o busto em formas bem definidas, lembra Enéias; o restante do corpo é feito de ferro, com exceção do pé direito que feito de argila; e mesmo sendo de material tão frágil, todo o peso do corpo está sobre ele. Exceto na parte onde é feita de ouro, em todo o mais escorre constantemente um fio de lágrima que perfurando a gruta, rápida atravessa os negros vales, desce por esse estreito canal, transforma-se depois nos rios Stingie, Aqueronte e Flegetonte e vai até ao fundo do Inferno onde se forma a nascente do Cocito; o rio que mais tarde irás conhecer, não havendo portanto necessidade de eu agora explicar”.
Disse-lhe eu: “Se desde o nosso mundo ele vem, ó Mestre, por que razão somente neste triste abismo o rio seja visto?” E ele respondeu:
“Tendo este lugar a forma circular e, embora tenhamos percorrido extensa região, descendo tu à esquerda, não terás completado inteiramente o círculo. Não fiques portanto desde já dominado pelo espanto, pois coisas novas verás como também estranhos acontecimentos”.
Perguntei-lhe ainda: “Mestre, por onde passam os rios Flegeronte e o Letes? Sobre este, nada falaste; do outro, disseste ser afluente desse rio de lágrimas humanas”. Respondeu-me:
“Muito me agrada o que dizes sobre esse riacho de águas rubras e ferventes; porém, sobre o Letes, lhe explicarei que o verás fora do Inferno; em suas águas as almas vão banhar-se depois que a penitência lhes conceder o perdão”. E continuou. “É tempo de se deixar a selva. Acompanhas sempre os meus passos. Pela margem do riacho podemos andar pois ali se extingue toda a sanha do fogo.”

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O INF. CANTO XIII

Os dois poetas entram no segundo compartimento, onde são punidos os violentos contra si mesmo e os delapidadores dos próprios bens. Os primeiros são transformados em árvores, cujas negras folhas as Harpias dilaceram; os outros são perseguidos por cães famintos que os despedaçam. Dante encontra Pedro des Vígnes , de quem ouve os motivos pelos quais se suicidou e as leis divinas em relação aos suicidas, Vê depois o senês Lano e o paduano Jacob de Sant´Andrea. Ouve enfim, de um suicida florentino, qual é a causa dos males de sua pátria.
Texto do Tradutor

"Homem fui; hoje sou o lenho que estás vendo!"
Nesso não havia ainda chegado ao lado oposto, quando penetramos em uma floresta tão cerrada que não havia o menor sinal de trilha. A copa das árvores verde, mas escura; seus ramos não eram lisos mas, embaraçados e nodosas; não tinham frutos, mas pontas aguçadas e venenosas. Os animais ferozes que nos campos de Cerina e Corneto buscam abrigo, naquelas brenhas estariam escondidos e protegidos.
Ali morava aquele horrendo bando de Harpias, que incutiram nos troianos a necessidade de abandonarem as ilhas Strófades, profetizando o mal que os aguardava; têm elas largas asas, colo e rosto humano, garras nos pés, enorme ventre plumoso e seus uivos insanos ressoavam por toda a floresta..
Disse-me o Mestre “Convém que fiques informado de que no segundo compartimento onde vais entrando, até que chegues ao horrendo areal, verás espetáculo disforme. Ficas atento! Então acreditarás na narrativa que fiz, quando ainda no mundo eu estava.”
Então eu ouvia gritos aflitivos que vinham de todos os lados, mas não via os que assim gemiam. Fiquei parado e ainda mais perturbado. Creio que meu Mestre estivesse pensando, que acreditava eu serem esses lamentos, enviados aos ares pelos padecentes que aos meus olhos se escondessem; pois me disse: “Se quebrares apenas um galhinho dessa árvore, ficarás ciente do erro que confunde teus pensamentos.”
Então estendi o braço à um galho da árvore e o quebrei. O tronco assim ferido tingindo-se de negro sangue disse gemendo: “Por que razão me arrancas? Por que me rasgas?" – e gemendo mais ainda continuou: “Nunca tiveste sentimento de piedade? Homem fui; hoje sou o lenho que estás vendo! Mais compassiva tua mão seria, se fosse a alma de um monstruoso dragão.”
Como lasca de lenha verde quando queimando está, numa extremidade se retorce, na outra estala chiando e a umidade para fora envia, assim brotava a voz e o sangue daquela árvore. A minha mão já soltara o ramo e, no entanto o horror no meu peito, continuava. Disse-lhe então meu Guia: “Alma ferida, se este que comigo está tivesse acreditado no que eu em meus versos lhe escrevi, para te ferir sua mão não teria sido erguida; eu mesmo, pouco acreditava nisso tanto que o induzi ao feito que agora me culpo e me arrependo. Dizei-lhe quem foste e tira-lhe as dúvidas. Tua fama será no mundo lembrada, compensando-te assim do mal que ele, contra ti, praticou.”
Respondeu-lhe então o tronco: “A compaixão que sentes, alivia tanto a minha dor, que de bom grado a ele explicarei, diminuindo-lhe assim a tristeza que seu sentimento demonstra”. E continuou: “Fui quem do coração de Frederico tive as chaves e com tanto jeito a usei fechando e abrindo, que seu peito, rico era em fé por mim. Nesse cargo fui constante e leal, nele perdendo a paz de espírito e a saúde. Porem a torpe meretriz (a inveja) que nos palácios reais sempre aparece, volvia olhares ardentes ao trono real. Contra mim acendeu-se o ódio de todos. Então voltou-se também contra mim a cólera de Augusto, que de ledas honras, transformou-se em horrível mágoa. Ressentindo-me então do mundo injusto, para fugir dos seus desprezos busquei a morte. (Pedro des Vignes, secretário de Frederico II que se suicidou por ter sido acusado de trair o seu rei). Eu que era justo, fui maldoso para comigo mesmo; juro pelo tronco em que padeço agora, que jamais infiel fui ao meu Rei, e que tive sempre como norma a justiça. Qualquer um de vós que à luz voltar, suplico que salve a memória do meu nome honrado, que ferido foi pelo duro golpe da inveja”.
O Poeta esperou um pouco para que ele continuasse; depois me disse: “Por que estás calado? Pede-lhe que conte mais coisas se ainda desejas ouvir, pois o tempo está passando.” Respondi: “O que desejo ouvir, perguntas tu mesmo, pois me sinto impedido pela enorme comoção que me invade a alma.” Disse-lhe o Mestre: “Para que teu desejo seja nobremente atendido por este que ainda vivo está, ó encarcerada alma, explica-lhe por que o espírito se une ao tronco e se é possível soltar-se um dia, quebrando-lhe o vínculo?”
Daquela árvore saiu forte sopro que se transformando em voz nos disse: “O quanto me é possível, breve resposta darei: quando um ser humano na confusão de seu furor destrói a sua própria vida, Minos, logo o envia ao sétimo círculo. Cai, como lhe permite o destino, em qualquer lugar dessa selva; daí, qual semente de centeio, germina, vai crescendo até se tornar enorme árvore que servirá de alimento as Harpias, causando-lhe imensa dor que se transforma em lamentos. No dia do Julgamento Final iremos como todos os outras, iremos procurar nossos corpos, os encontraremos, mas não poderemos nos revestir deles; serão então arrastados por nós e ficarão pendurados nos galos da árvore onde como vedes, nossa almas estarão eternamente padecendo”.
Permanecíamos ainda próximo à árvore pois tínhamos a intenção de algo mais ouvir, quando escutamos um rumor igual ao que o caçador ouve dos cães os latidos e das ramagens o estalar violento, e reconhece que o javali se aproxima. súbito vejo à minha esquerda, fugindo espavorido, rompendo o negro bosque, dois espíritos nus e dilacerados. Gritava o primeiro: “Vem ó morte! Acode aos desgraçados”! (Era Lano de Siena, que morreu em Pieve Del Toppo, na batalha entre sienenses e atenienses); o segundo que parecia andar lentamente, gritava também: “Ninguém ó Lano, nem nas batalhas de Toppo, te viu com tão ágeis passos!” Porém, já tendo perdido todas as forças, escondeu-se num moita que ali estava. Corria em sua procura um bando de cadelas negras, ferozes e famintas como se houvessem fugido de algum canil. Atirando-se sobre aquele espírito fugitivo, a furiosa matilha o fez em pedaços e logo após uivando, levou consigo. Então meu Guia, segurando-me a mão, conduziu-me à moita, onde um arbusto em vão chorava e pelos seus cortes jorrava negro sangue. “Ó Giácomo de Santo Andréa” – ouvia-se dizer tristemente – “ poderia eu ter te protegido? E a tortura ter sido aplicada a mim, como sendo responsável por teus crimes“. Quando já estava mais próximo, perguntou-lhe o Mestre: “Quem és tu que, por tantos golpes estás coberto de sangue e sofrendo tantas dores”?
Respondeu-lhe: “Ó alma que, compadecida falas! Te unes ao teu companheiro e juntos aliviai o meu sofrimento recolhendo os ramos quebrados e colocando junto às raízes. Nasci na cidade que trocou seu protetor pelo Batista; protetor esse que tanto amava a arte da guerra; hoje afastado entristece, pois do seu culto apenas um vestígio existe na Ponte do Arno e que sem ele, talvez a sua existência não seria lembrada, e os esforços teriam sido sem resultado quando a reergueram das cinzas provocadas por Átila. Foi ali e na minha própria casa que me enforquei”. (Giacomo de Santo Andréa, nascido em Florença, antes de tornar-se cidade protegida por São João Batista, e que foi destruída por Átila; tinha como protetor, Marte, do qual restava uma estátua sobre a Ponte Vecchio).

sábado, 24 de outubro de 2009

O INF. CANTO XII

O Minotauro está de guarda no sétimo círculo. Vencida a ira dele, chegam os Poetas ao vale, em cujo primeiro compartimento vêem um rio de sangue fervendo, no qual são punidos os que praticavam violência contra a vida ou as coisas do próximo. Uma esquadra de Centauros em volta do pântano, vigiando os condenados, flechando-os, se tentam sair do rio de sangue. Alguns desses Centauros pretendem deter os Poetas, porém Virgílio os domina, conseguindo que um deles os escolte e transporte na garupa a Dante. Na passagem o Centauro que é Nesso, fala a respeito dos danados que sofrem a pena no rio de sangue.
Texto do Tradutor

"Vai, e serve-lhe de guia..."

O caminho para a descida era de difícil acesso e tão pavoroso que somente ao vê-lo causava medo, e me fez lembrar o enorme precipício existente do outro lado de Trento, sobre o Ádige, provocado por terremoto ou pesadas enxurradas. Olhando-se de cima, a ladeira era tão íngreme que descê-la, parecia-nos quase impossível; e à borda do penhasco em ruínas, montando guarda àquele lugar, se encontrava o pavoroso monstro nascido de falsa vaca. (O Minotauro, nascido de um touro e da falsa vaca Pisafa; foi morto por Teseu.) Apenas ele nos viu, começou a se morder furiosamente, como quem pelo ódio é devorado. Então meu sábio Mestre gritou-lhe: "Estás pensando que este que está comigo é o príncipe de Atenas, o que valentemente vencendo te arremessou ao solo, levando-te à morte? Vai-te monstro! Este jamais recebeu lições de tua irmã. Está aqui para ver o castigo que receberam os que são iguais a ti."
Qual touro que ao receber mortal golpe desorientado fica e não podendo correr, vacilante salta e cai, assim o Minotauro. Então meu Guia em meu socorro vem, gritando: "Corre, corre rápido para a entrada e desce, enquanto em convulsão ele se debate!" Então rapidamente descíamos àquela imensa ladeira forrada de pedras soltas, que sendo por meus pés calcadas movia-se, cedendo; e eu preocupado estava!
Disse-me então o Mestre: "Estás pensando no penhasco em ruínas e no horrendo monstro cuja ira já foi vencida. Deves saber que, da outra vez que desci ao extremo do Baixo Inferno, não vi esta rocha como estás vendo agora ; mas, pouco antes de vir, se bem me lembro, - quando Aquele tornou a cidade Dite a grande prisioneira lá no círculo sobre o Inferno, as profundezas deste vale tremeram tanto, que pensei estar o Universo novamente sentindo o ato de Amor da Criação, como alguns dizem ter a certeza de que ao caos, muitas vezes será transformado. Foi nesse instante que o velho penhasco se dividiu em vários pedaços, e ficou mergulhado nas trevas. Mas, olha o vale; não está distante o rio de sangue fervente, onde verás aqueles que cometeram violência contra os seus semelhantes”.
Ó louca ira, ó ambição, que na nossa curta existência nos incita e arrasta ao inferno, e para sempre nele nos submerge! Eis então que divisei um enorme fosso que abrangia a planície inteira, como já previra o Mestre. No lugar onde o penhasco sobressai, grande quantidade de Centauros correm agitando suas flechas, como faziam quando estavam vivos. Nos vendo descer em direção ao bando, três dentre eles nos apontavam os arcos se preparando para o arremesso. De longe, escutamos os brados de um deles que dizia: "Ó vós que aqui vieste dizei, qual o vosso castigo; falai daí ou serão disparadas as flechas!" Virgílio respondeu: "De perto, sem demora, nossa resposta será dada a Quiron. (Centauro morto por Hércules, quando do rapto de Dejanira.) E tu, estás sempre se dando mal com a pressa e a ira que de ti se apoderam" .
E tocando-me de leve disse: "Quem nos fala é Nesso, o que morreu por Dejanira; mas se vingou de quem lhe trouxe tamanha desgraça. Esse do meio que tem o olhar voltado para o próprio peito, foi escravo de Aquiles; é o famoso Quiron; o outro é Folo, que está sempre irado.” Uma quantidade enorme de Centauros, andava em volta do sangüíneo rio, flechando as almas que tentavam se aproximar das margens do horroroso líquido.
Chegamos perto daqueles monstros que rápidos se movimentavam. Quiron com a flecha afastou a barba que lhe cobria os lábios . Quando a larga boca tinha ficado livre da barba, falou aos companheiros: “Repararam no que vem por último? Onde ele pisa tudo se move! Nunca assim pés de morto tinham caminhado"! Então meu Guia que bem próximo a aquele ponto do centauro onde a parte animal se encontra com a parte humana, o agarrou dominando-o e falou: "! Ele está vivo! E vem comigo a visitar o vale maldito e escuro, pois alguém lá no Céu interrompendo os cânticos celestiais, me ordenou que o acompanhasse. Não é ele um ladrão, nem eu um espírito impuro; em nome do Poder por quem eu movo os meus passos, peço-te que envie algum dos teus, escolhido por ti, para nos mostrar a parte mais calma do rio por onde possamos atravessar, e no seu dorso preparado para voar, transportar este a quem eu guio, pois não sendo somente alma, por si só não pode voar". Quiron então, voltou-se à direita e ao feroz Nesso falou: "Vai e serve-lhe de guia. Cuida para que outro bando, o caminho não lhe atrapalhe".
Já havíamos partimos na fiel companhia costeando as sangrentas ondas quentes, quando ouvimos agudos gritos que ao ar subia. Vi padecentes submersos naquelas águas, até a altura dos olhos. Disse o Centauro: "São os tiranos e os que premeditaram assalto sangrento contra o próprio povo. Chora-se aqui por feitos desumanos. Aqui está Alexandre (Tirano de Fere, na Tessália, ou Alexandre de Macedônia) e também Dionísio, o que fez a Sicília gemer durante tantos anos. Aquela cabeça que vês de cabelos negros é a de Azzolino (Ezelino III de Romano, tirano de Marca Trevisana) e a de cabelos louros que ao seu lado está, é Obizzio d´Este, (tirano de Ferrara) de quem o pérfido enteado roubou-lhe a vida".
E o Poeta, a quem me voltei me disse: "Primeiro, dês atenção a ele; a mim é reservado o segundo lugar". Pouco além parou Nesso e nós subimos em suas costas; de cima podíamos ver um imenso grupo de espíritos que, estando nas sangrentas águas, mantinha toda a cabeça para fora; disse então Nesso, indicando uma alma que se mantinha afastada das demais: “Ali está uma que sob o olhar de Deus feriu um bondoso coração e que Londres ainda o venera”. (Guido de Monfot, que matou Arrigo, irmão de Eduardo I, rei da Inglaterra cujo coração foi colocado num monumento). Vi também umas que apenas o peito ou a cabeça, estavam fora daquelas águas ferventes. E muitas daquelas feições eu reconheci.
Chegamos a determinado lugar onde o leito do sangrento rio era mais raso e mal cobria os pés. Ali atravessamos sem dificuldade. "Nesta parte do rio o fervedouro é mais raso"; - disse Nesso - "porém na parte oposta até juntar-se à parte mais profunda e escura como já viste, é doloroso o castigo para os tiranos. Lá, a Divina Justiça castiga Átila, que foi açoite da terra; (Rei dos Unus, chamado de Flagelo de Deus"). Pirro, (filho de Aquiles, que matou Príamo) e dobrada é a agonia dos Rinier - de Pazzi e de Cometo - que, com grande crueldade fizeram guerra nas estradas como salteadores".
E, encerrando a conversa depois de ter atravessado o vale, se foi sobrevoando o rio tranqüilamente.

O INF. - CANTO XI

Os Poetas chegam à beira do precipício onde se vê o sétimo círculo. Sufocados pelo mau cheiro que se levanta daquele inferno, param atrás do sepulcro do Papa Anastácio. Virgílio explica a Dante a configuração dos círculos infernais. O primeiro, que é o sétimo, e é o círculo dos violentos. Como a violência pode dar-se contra o próximo, contra si próprio e contra Deus, o círculo é dividido em três compartimentos, cada um dos quais contém uma espécie de violentos. O segundo círculo, que é o oitavo, é o dos fraudulentos e se compõe de dez círculos concêntricos. O terceiro, que é o nono, se divide em quatro compartimentos concêntricos. Fala-lhe também acerca dos incontinentes e dos usurários. Depois seguem para o lugar de onde se desce para o precipício.
Texto do Tradutor

Chegamos a beira de um horrendo precipício,
cujas grosseiras rochas formavam um círculo; de lá mais terríveis tormentos, presenciamos. Do fundo do abismo brotavam exalações tão fortes que fomos obrigados a nos proteger junto a um enorme túmulo onde na tampa estava inscrito: "Sou a sepultura do papa Anastácio a quem os erros de Fortino o transviaram." (O Papa Anastácio foi levado à heresia por Fortino, que era diácono de Tessalônica.)
"Desçamos dessa altura lentamente” - disse-me o Mestre - "assim o olfato se acostumando com o mau cheiro, sentiremos menos sua ação impura”. Respondi: “Então Mestre, faça com que o tempo perdido na espera não seja sem proveito". Respondeu-me. "Já percebeste, ó filho, que no meio dessas rochas há três círculos pouco menores do os outros que viste. Eles estão cheios de condenados malditos. Repare: os que ali estão, logo hás de conhecê-los; direi os crimes e as dores que aqui se padece. Todo mal que acende a cólera Divina, justiça há de ser feita a quem, usando de fraude ou violência causa dano a alguém. Por ser a fraude um ato comum em meio ao homem, o fraudador é punido com maior rigor; por isso é ele colocado no lugar mais cheio de aflições, para sofrer maiores tormentos.
O primeiro círculo é dos violentos; foi construído em três compartimentos, cada um dos quais contêm um tipo diferente de violência: a Deus, à si próprio e ao próximo conforme te explicarei e hás de me compreender. Quem ao próximo fere com morte ou dor; também os que se apossam de seus bens, com violência física ou não. Os homicidas, que usam de ferocidade; ladrões devastadores e agressores, estão no primeiro círculo, em terrível tortura sem piedade”.
E continuou. “No segundo círculo estão aqueles que cometeram violência contra si mesmos ou contra os próprios bens. Os que praticaram violência contra Deus, negando-O, blasfemando-O, menosprezando Sua Natureza e os Seus Dons, no terceiro círculo serão lançados e, tal como aconteceu à Sodoma, serão marcados com nefando sinal.
A fraude, é cometida por traição à confiança conquistada ou por trama premeditada e causa graves danos a quem desprevenido, com o fraudador se envolve; quem pratica a fraude vai contra os laços fraternais do amor que é parte do ser humano; portanto recebe seu castigo no segundo círculo.
Fazem também parte dessa laia imunda os aduladores, os hipócritas, os falsários, os alcoviteiros e todos os que tiram proveito dos afetos verdadeiros que são inspirados pela natureza, e que é o princípio da mútua confiança em nossos semelhantes. Por isso esses traidores recebem o pior castigo no último dos círculos, onde Dite tem o seu trono e lá eles padecem eternamente”. "Mestre," - disse eu - "expuseste com muito clareza teu pensamento fazendo-me compreender exatamente esse lugar de suplício e essa gente que nele está presa. Mas, dizei-me: Por que, os que habitam a lagoa imunda, os que o vento e a chuva inimiga flagela, os que se encontram em terrível agitação, não acenderam eles também a ira divina e não recebem seu castigo lá em Dite? Se não, por que então a aflição tanto os flagela"?
Respondeu-me o Mestre: "Estás delirando? Por acaso foram varridos de tua mente os sãos princípios a que estás habituado a seguir? Que rumo tomou tuas idéias? Esqueceste, por ventura, a bem esclarecida lição da filosofia? Ela ensina que são três as disposições que o Céu condena - malícia, incontinência e a bestialidade, sendo a segunda a que menos castigo recebe. Se estás atento à essas verdades tão profundas, se lembras quem são aqueles que padecem lá em cima, compreenderás então ser justo não sofrerem punição igual; porque sendo menos grave a culpa, punição menos pesada, recebem”.
Então falei: "Tuas explicações são como o Sol; iluminam meu entendimento e me fazem tanto bem que, tanto o duvidar como o saber, me alegram. Tornando ao que disseste, peço, explique-me por que motivo, Mestre, a usura ofende tão gravemente à "Divina Bondade".
"Quem estuda filosofia tem aprendido que a natureza tem sua origem no Divino Intelecto e em Sua Arte. Na "Física", (de Aristóteles) existe conhecido preceito o qual é necessário lembrar-te: "para fazeres qualquer coisa com perfeição, sempre que possível deves seguir a natureza - a mestra obediente, neta de Deus - se é permitido chamá-la assim. Se lembrado estás, no começo do "Gênesis" diz como devemos seguir com perfeição a natureza: “colhe o teu sustento de cada dia..." A usura escolhe caminho bem diferente; menospreza a natureza e não dá valor ao que ela ensina. - E continuou – “Agora andemos; é preciso continuar; já no horizonte surge Peixes, (a constelação dos Peixes) a Ursa sobre a claridade já repousa (o dia estava clarenado), e além, a rocha dando passagem está".