O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

domingo, 24 de outubro de 2010

O Purg. CANTO III

O INFERNO - CANTO III

"AI DE VÓS, Ó CONDENADOS"

Os Poetas chegam à porta do Inferno na qual estão escritos terríveis palavras. Entram e encontram o caminho que leva ao Aqueronte onde está o barqueiro infernal, Caron, que transporta as almas dos condenados à outra margem para o suplício. Texto do Tradutor

“Por mim se vai à morada das dores”.

"Por mim se vai ao padecer eterno”.

"Por mim se vai à gente condenada”.

"Moveu justiça meu Autor Eterno... Criado fui por Divinal Poder, Sabedoria sem igual e Supremo Amor!... Durante a existência terrena, não sendo eterno, sem amor, de mim se aproxima e eu permaneço para sempre eterno!

"Vós que aqui entrais deixai lá fora toda a esperança".

No alto de uma porta, vi escrito essas palavras.

“Mestre" - disse eu - "não consigo compreender o que isso significa".

Perito no assunto assim respondeu Virgílio: "Aqui, convém não restar dúvida; todo ser desprezível deve se sentir desterrado. Eis o lugar de que te falei feito de dores, onde hás de ver tão atormentada gente, a ponto de perder a razão". E rápido segurando-me pela mão com gesto corajoso, me levou a conhecer aqueles mistérios. Pelo espaço sem estrelas, totalmente escuro irrompia soar de prantos, de ais, de gemidos e gritos dilacerantes. Somente em ouvi-los meu pranto corria. Inquietação, lamentos, vozes roucas, - em vários idiomas - brados de ira, de punhos cerrados, rumor de mãos contorcendo-se nos ares, sempre rodopiando, provocavam ruídos semelhantes ao tufão nos desertos de areia. Diante daquele horror que me perturbava a mente, perguntei a Virgílio: "Ó Mestre, o que ouço agora? Quem são esses a quem a dor está subjugando?"

Respondeu-me: "Desse modo terrível choram e se lamentam aqueles que viveram ser ter merecido louvor algum e as piores coisas que deles se digam, não vem a ser difamação; são mais vis que os anjos mesquinhos que contra Deus se rebelaram. Não sendo rebeldes nem infiéis porém indiferentes, desprezando os Céus foram por eles desterrados; nem os maus se gloriam de os ter como amigos; nem o mais profundo dos infernos os aceitou”.

 Continuei lhe perguntando: “Que dor tão intensa sentem eles que lhes provoca choro e gritos terríveis?” "Serei breve em responder-te” - garantiu-me - "É tão vil sua desgraça, a ponto de sentirem inveja de qualquer outro sofrimento, porque terão de viver assim eternamente. No mundo seus nomes não deixaram boas lembranças. A Clemência e a Justiça os desdenharam. Mas, não falemos mais deles; olha-os e continua andando”.

Súbito avistei ao longe uma bandeira a tremular; movia-se tão rápido, que parecia não querer parar e após ela tão imensa multidão a seguia, que não dava para se acreditar fossem mortos. Alguns deles eu já havia reconhecido: de repente, olhando para um daqueles espíritos reconheci nele aquele que, despresívelmente renunciou ao grande cargo. (O Papa Clemente V; tendo por sucessor o Papa Bonifácio VIII, inimigo de Dante e de seu partido) logo compreendi tratar-se, aquela multidão, do partido das almas desonradas que até os maus odeiam e Deus os repele. Nunca tiveram vida, as desgraçadas; agora, sempre nuas, se viam torturadas por ferroadas de vespas e zangões. Seus rostos regados de lágrimas misturadas com sangue que, caindo aos seus pés, serviam de alimento aos vermes. Voltando o olhar à margem de um largo rio avistei um verdadeiro enxame de almas. Perguntei: "Mestre, te rogo; explique-me que quem são elas e por que tanta pressa tem de passar para o outro lado?

Respondeu-me: "Explicações minuciosas te darei assim que tivermos atingido a tenebrosa margem do rio Aqueronte”. Então, de vista baixa fui em direção ao rio, em silêncio, recolhido receando estar ao Mestre incomodando com tantas perguntas. Lá chegando vi se aproximando em uma barca, um vulto de fartos cabelos e barba brancos, que se levantando gritou: "Ó condenados, ai de vós! Do outro lado, o Céu nunca vereis. Por mim sereis transportados ao fogo e ao gelo eternos. E tu que aqui estais ó criatura viva, se afasta dentre estes que são mortos”. Como não dei atenção ao que dizia, ele acrescentou: "Por outro caminho irás ao porto onde acharás fácil transporte; lá passarás em barca menos lenta". Disse-lhe meu Guia; - "Não se preocupe Caronte! Isso já foi decidido lá onde ordena Quem pode”. Mais calmo o idoso navegador silenciou; e da temível lagoa movimentava os olhos em círculos de fogo chamando as passageiras. As desnudas almas compreendendo o doloroso gesto rangiam os dentes e com vozes raivosas blasfemaram Deus, maldisseram a espécie humana, a pátria, o tempo, a origem de suas origens, os pais de quem nasceram.

Todas, num terrível pranto, aflitas, se encolhiam juntas apavoradas sabendo o lugar dos maus destinos esperados e que não tem volta. Caronte revolvendo os olhos de fogo lhes acenava e a todas  recebia chutando e empurrando. De remo em punho atacava as que se atrasavam batendo-as violentamente.

Como no outono a árvore começa a perder as flores e folhas até ficar totalmente despida dando a terra o que à terra pertence, assim as pervertidas almas filhas de Adão, uma após outra da praia se afastavam qual ave atraída pelo chamado do caçador.

Sobre as turvas águas navegavam; não tinham ainda do outro lado chegado, já no lado oposto imensa multidão em desordem se amontoava. “Aqui meu filho” – disse o amado Mestre - “de toda parte da terra chegam os que, tendo em vida provocado a ira de Deus foram inesperadamente acolhidos pela morte. Tanto a Justiça Divina os tortura e incita as consciências, que prontamente buscam a sorte que os espera neste rio tornando-se isso desejo ardente e forte! A alma inocente jamais por aqui transita! E se Caronte tanto te odeia é porque está ciente de que nunca se aproximará da tua, e isso o irrita".

            Assim que meu Mestre terminou de falar a escura planície tremeu; e tão forte foi o terremoto que só ao lembrar do medo que senti, o suor escorre pelo meu corpo. Da terra lacrimosa rompeu impetuoso vento na forma de clarão vermelho. Paralisado então de todos os sentidos cai em profundo sono. (Dante perdendo os sentidos atravessou o rio Aqueronte, sem saber de que modo.)

 

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O Purg. CANTO II


Estão os Poetas ainda na praia, incertos em relação ao caminho, quando chega uma barca guiada por um Anjo, da qual saem almas destinadas ao purgatório. Uma delas, o músico Casella, amigo de Dante, a convite do Poeta, começa a cantar uma sua canção, Os dois Poetas e as outras almas, ficam a ouvir o canto harmonioso. Sobrevém o severo Catão que as repreende; e as almas fogem para o monte.

Texto do Tradutor


"Respeitoso, dobra os joelhos..."

Naquele lugar onde estávamos já resplandecia o Sol no horizonte; mas na Terra, onde fica o monte de Solina, a noite se iniciava, enquanto no rio Ganges se elevava a Constelação de Libra a qual, durante a lua cheia, sua visão desaparece. (Dante, colocou o Purgatório num lugar do Universo onde seu hemisfério fica oposto ao da Terra; lá onde ele estava o Sol parecia despontar, enquanto em Jerusalém (Solina) a noite descia.) Neste momento a branca e rósea cor da bela aurora se transformava em outra entre vermelho e dourado.

Nessa hora ainda estávamos distantes do mar; andávamos como alguém que, no pensamento se apressa em ir, mas nos passos se demora; de repente, através das névoas da manhã enrubescida, qual planeta Marte refletindo seu brilho no alto das ondas, vi uma luz – queira Deus que eu a veja novamente! – deslizando sobre o mar, tão veloz que, não há vôo de ave que a ela se compare. Olhei para o meu Guia a fim de fazer perguntas sobre ela; quando me voltei novamente para contemplar seu brilho, maior e mais fulgurante se mostrava.

Aos poucos fui percebendo que de cada lado da resplandecente luz havia algo muito branco, parecido com asas. Vi também mais abaixo, outros vultos de igual cor. Meu sábio Mestre permaneceu calado até que reconhecendo o navegador, disse: “Respeitoso, dobra os joelhos e junta as palmas das mãos; eis um mensageiro de Deus; de agora em diante, ditoso, hás de ver outros. Vê os meios que o Céu usa para chegar aos humanos! Nem remos, nem velas, mas rápidas asas a se movimentar. Em poucos instantes, veremos como ele se eleva ao Céu agitando suas plumas que são eternas; não mudam nem caem, com as dos seres mortais”.

Quanto mais se aproximava, mais claramente eu distinguia a ave divina. Diante daquela luz ofuscante abaixei a vista. Logo o anjo inclinou a nave para cima, tão rápida, tão leve, que parecia estar voando na amplidão do mar. De pé na popa, o celestial barqueiro demonstrava tanta felicidade, como se essa palavra estivesses escrita na sua fronte. E a multidão de almas que com ele vinha, a uma só voz cantava: ”In exitu Israel de Egipto” (primeiro verso do Salmo 114) e mais outros salmos. Depois, o anjo, traçando sobre elas o sinal-da-cruz, determinou a todas que se dirigissem à praia; e em seguida rapidamente retornou.

Algumas delas correram em direção ao monte; e as que ficaram, olhando ao redor, pareciam possuídas de espanto. O Sol já enviava seus raios dourados para o firmamento atingindo Capricórnio com sua cor púrpura, quando as almas que ali ficaram nos perguntaram: “Sabeis nos indicar por onde se sobe ao monte?” Respondeu Virgílio: “Vos alegra julgar-nos conhecedores deste lugar, mas somos peregrinos como vós. Aqui chegamos um pouco antes, por caminho tão árduo e temeroso que, comparando a ele, esta subida será agradável”.

Então aquelas almas notando pelo meu respirar que eu estava vivo, ficaram paralisadas de surpresa. E, qual multidão que em tempo de guerra, curiosa, coloca-se ao redor do mensageiro que vem anunciar o retorno da paz e com grande confusão procura por notícias, assim a venturosa multidão de almas, alvoroçadas, em meu rosto fixava o olhar com tal atenção, que quase pensei ser eu personagem famosa. Tendo uma delas se adiantado das demais, correu a me abraçar com tanto afeto que, de igual impulso fui eu arrebatado. Mas, inútil foi meu gesto! Pois a alma era somente sombra; verdadeira somente na aparência. Três vezes quis nos braços estreitá-la, três vezes, abracei-me o peito. Ante o espanto que o gesto me causou, sorriu e se afastou; foi então que comecei a acompanhá-la. Mas ela delicadamente me pediu que não o fizesse. Então, reconhecendo-a, pedi que falasse comigo.

Respondeu: “Do mesmo modo que te estimei quando vivo eu estava assim continuo te estimando. Vou procurar atender ao teu desejo! Para onde vais?” Disse-lhe eu: “Caro Casella, estou aqui, mas hei de retornar ao mundo. Por que demoraste tanto para chegar aqui se há muito tempo faleceste?” (Casella, músico florentino amigo de Dante, que havia musicado alguns de seus versos.) Respondeu-me: “O anjo que recolhe e transporta as almas em sua barca, ele é quem escolhe a quem transportar, e quando. Assim sendo nenhuma injustiça fez quando retardou minha entrada aqui, pois obedecia a Justo Querer. Há apenas três meses que ele transportou para aqui quantos ele achou que deveria transportar. Encontrava-me na região onde o Tibre lança suas águas ao mar de suave movimento e ali se reúnem as almas que não estão sujeitas às penas do Aqueronte, quando o anjo me retirou de lá”.

Disse-lhe eu: “Se lei nenhuma te proíbe recordar e cantar o amoroso verso que adoçou as amarguras do meu viver, peço-te amigo, confortar um pouco minha alma que está cansada e aflita, e que ainda se encontra envolta no humano corpo”.

Amor que em minha mente presente estás...”, começou ele a entoar com tamanha doçura, que o agradável tom ainda me envolve a alma. Ao Mestre, a mim e aos espíritos ali presentes a brandura do saudoso cantar tanto enlevava, que nossa mente com nada mais se ocupou. Estávamos todos envolvidos na canção, quando ouvimos o venerando ancião bradar: “Que fazeis aí descuidosos? Por que estais assim, parados, preguiçosos? Rápidos deverão ir à montanha purificar-vos das impurezas que estão impedindo-vos de contemplar Deus”.

Como pombos espalhados na vastidão do campo, entretidos na verdadeira paz esquecem o perigo que os rodeia e subitamente levantam vôo como que pressentindo iminente perigo, assim aqueles espíritos o canto esquecem e em direção ao monte, correm.

E o meu correr não foi menos rápido que o deles.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

2ª PARTE = O PURGATÓRIO

CANTO I

Saindo do Inferno, Dante respira novamente o ar puro e vê fulgurantíssima estrela. Encontra-se na ilha do Purgatório. O guardião da ilha Catão Uticanse, pergunta aos dois Poetas qual é o motivo da sua jornada. Dá-lhes instrução com relação ao que devem fazer antes de iniciar a subida ao monte.

Texto do Tradutor


Agora, a barca da minha imaginação ergue as velas para correr em mar aberto com a popa voltada ao desapiedado abismo. E esse reino que para a alma é merecida a prisão pois a liberta do imundo pecado antes de ser recebida no Céu, pela ordem, cantarei como o segundo! Ó santas Musas a quem sou devotado, desperta em mim a beleza da poesia que está adormecida! Cléope, (musa da “Epopéia”) cuja voz sonora e sublimada, não permitiu às Pegas que o atrevimento lhes fosse perdoado, suplico-te! Vem unir-se, agora, ao meu cantar! (As filhas de Piério desafiaram as Musas para contar com elas; e vencidas, foram transformadas em pegas espécie de pássaro).

A suave cor da safira oriental que irradiava pelo tranqüilo horizonte indo até onde gira o primeiro Céu, alegrava-me o olhar e aumentava minha felicidade por ter eu sido retirado daquele tenebroso lugar onde dores e lágrimas me causaram profunda aflição ao olhar e ao peito. Já a bela estrela, (Vênus) o maior símbolo do amor, acompanhada pela constelação de Peixes, iluminava todo o poente.

Com o pensamento dirigido apenas ao presente, voltei-me à direita e avistei o outro pólo. Foi então que vi quatro estrelas, que somente foram vistas pelos primeiros seres humanos. Ao seu esplendoroso brilho mais alegre pareceu-me todo o firmamento. Ó setentrião! (região Norte) Não te foi dado a oportunidade de contemplar tão fulgurantes astros!

Depois de admirá-los demoradamente, voltei o olhar em direção oposta a que o sol havia surgido e eis que vejo bem próximo a mim um ancião que reverência tanta merecia quanto deva dar um filho ao pai ao se colocar na sua presença. Tinha alvas as longas barbas assim como os cabelos que em dupla trança ao peito lhes caíam. O brilho resplandecente daqueles astros tanto lhe clareava o semblante, que o vi como se estivesse iluminado pelo sol.

“Quem sois que, dominando o escuro e triste rio, tenham conseguido fugir dos laços do eterno cárcere? – disse-me, movendo rápido, as respeitáveis barbas. “Quem os guiou iluminando os passos a fim de que pudesses deixar a profunda noite que cobre de luto os espaços infernais? Por acaso foram quebradas as leis do abismo, ou o Céu revogando seus decretos deu ordem para que nos meus domínios os maus tenham estrada?”

Voltou-se a mim Virgílio, aconselhando-me com gestos de mãos; compreendendo-o, curvei os joelhos baixando os olhos. “Por vontade própria, não vim”. – respondeu Virgílio. “Atendendo aos rogos de uma Dama que do Céu descera, presto socorro a este homem servindo-lhe de guia; porém, como desejas que nossa condição seja mais bem definida, cumpre-me dar verdadeiras explicações”. E continuou: “Este homem ainda mantém em si a aura da vida, mas de tanta imprudência, esteve a ponto de perdê-la, eternamente. Já vos disse por que tive pressa em salvá-lo; mas para evitá-lo do perigo, tive que dirigir seus passos. Mostrei-lhe aquela gente que, por ter praticado a maldade, no Inferno padece. Agora, tenho a intenção de mostrar-lhe os que estão se purificando aqui neste lugar, onde vós sois o guardião. Direi-vos por qual motivo o vou guiando: é que a força que me impele a trazê-lo aqui para vos ver e ouvir vem das Alturas. Dignai-vos, pois, ser benigno para com ele que deseja ardentemente a liberdade de espírito, que tão difícil é. Conhece-a bem quem por ela desistiu da vida. Para alcançá-la, não foi amarga vossa morte em Utica, onde vosso corpo foi guardado e que, no Juízo Final, há de ser iluminado. (Catão uticense que, para não se entregar a Júlio César, suicidou-se, em Utica) Não estamos violando as leis divinas, por que ele ainda vive. E Minos não me impediu, pois sou do círculo onde se encontra vossa Márcia, (esposa de Catão) que em casto olhar parece rogar que ainda a tenhais como esposa. Lembrando-a, sede sensível a nossos rogos deixando-nos atravessar vossos reinos; então, agradecido, hei de dizer a Márcia o quanto sois benigno, se assim me permitires”.

Disse Catão: “Márcia!... tanta alegria trouxe aos meus olhos que, no mundo, lhe concedi tudo que desejou. Agora, estando eu no lado oposto ao seu, ir além do escuro riacho não posso; esta ordem me foi decretada quando deixei o Limbo. E vós, se por celestial Dama fostes eleito para trazer este homem até aqui, desnecessária se torna minha interferência. Ide, pois, sem demora! No ponto mais baixo desta ilha onde é banhado pelo mar e alastra-se uma camada de lodo natural, há um viçoso juncal. Não pode vegetal de caule forte ou frondoso ter vida ali, porque não se dobraria ele ao embate caprichoso das ondas. Envolvendo este homem com as palmas do junco, lavai-lhe o semblante para que toda a impureza seja posta fora. Isto é necessário para que nenhuma névoa lhe impeça a visão, quando diante do anjo que descer do Céu, ele estiver. De lá seguireis em direção ao monte. Ao surgir do Sol, descobrireis o melhor caminho” – e desapareceu.

Ergui-me então sem demora e em silêncio; com o olhar fixo no semblante de Virgílio, no seu braço me amparei. “Vem comigo, filho”. Disse-me. “Voltemos pois daqui se vai em direção ao mar”.

Fugia a noite ante a claridade matutina. Apesar de distante já se apresentava aos nossos lhos o movimento do mar. Pela planície deserta andávamos, como que perdidos e temendo não encontrar o caminho certo.

Chegando ao lugar onde o Sol ainda não pudera desfazer o orvalho porque à sombra o vento se torna mais suave, meu Mestre vagarosamente desliza as mãos sobre a relva molhada; vendo-lhe o gesto e compreendendo-o, prontamente as lacrimosas faces lhe apresento. E o passar das mãos molhadas de orvalho sobre meu rosto, recuperou nele o vigor perdido no ambiente do Inferno.

Com passos rápidos chegamos à deserta praia. Nunca suas águas haviam sido tocadas por homem vivo algum. Então fui envolvido pelos juncos, conforme Catão ordenara. Mas, oh! Milagre!... No lugar onde a humilde planta foi arrancada via-se que ela renascida estava; e tão crescida como antes eu a havia visto no solo, sem diferença alguma entre as outras.