O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

domingo, 19 de setembro de 2010

O Inf. CANTO XXXIV


Na Judeca estão os traidores de seus amos e benfeitores. No meio está Lúcifer que, com três bocas dilacera três, entre os mais horrendos pecadores de um lado Judas, do outro, Brutos e Cássio que mataram Júlio César. Virgílio, a quem Dante se agarra desce pelas costas peludas de Lúcifer até ao centro da Terra. Daí seguindo o murmúrio de um regato sai, então os dois avistam as estrelas no outro hemisfério.

Texto do Tradutor


"... o imperador daquele terrível reino."

Vexilla Regis prodeunt inferni contra nós.(Avançam os estandartes do rei do Inferno) Olha para frente e poderás vê-los”; disse o Mestre.

Assim como a neblina se estende espessa ou como em nosso hemisfério a noite desce e ao longe um moinho cujas pás são movimentadas pelo vento prende nossa atenção, assim pareceu-me ver um enorme e desprezível edifício sacudido pelo vento. Tão forte era o vento que busquei abrigo por trás do Mestre, já que outro não existia. Estávamos na parte onde cada alma estava submersa no gelo, como se fosse esculpida em cristal; (somente em descrevê-lo, ainda fico trêmulo); algumas estavam de pé; outras curvadas sobre o peito ou com as frontes firmadas sobre os pés formando com o corpo, um arco. Quando próximo nos encontrávamos mas a uma distância que na compreensão do Mestre tornava-se segura, indicou-me ele a criatura que foi a mais bela, na Criação; e afastando-me para trás, disse: “Afasta-te! Eis, Lúcifer! Este é o horrendo lugar que em breve deves, com grande esforço, manter teu espírito protegido”.

Quanto apavorado fiquei diante daquele semblante, não me pergunte, caro Leitor, pois não saberei me expressar em linguagem humana. Não morri, porém vivo também não estava. Como me sentia, procure imaginar se a morte ou a vida em mim se encontrava!Estava eu vendo o imperador daquele terrível reino, tendo o peito fora da geleira. Compará-lo a um gigante não sereia possível, pois apenas um braço de Lúcifer poderia ser comparado a um gigante! Se um dia ele foi tão belo, quanto é hoje horrendo; se teve a ousadia de erguer a fronte contra seu Criador, verdadeiramente é ele a causa de todo mal que o mundo chora. Qual não foi o meu espanto quando vi que naquela estranhíssima figura a cabeça era formada por três faces! A que eu via de frente, era vermelha; as outras, cada uma surgindo dos escuros e largos ombros, mas lá sobre o crânio da infame criatura as duas se ajuntavam a primeira formando assim um só objeto; a face que à direita estava, tinha cor entre o amarelo e o branco; a da esquerda, a cor era morena escura como se fosse queimada pelo sol. Abaixo de cada face, erguiam-se duas tão extensas asas quanto convém em ave de tamanho porte. Vela de tamanho igual a essas asas, não existe em nenhuma embarcação por mais potente que ela seja. No seu agitar constante produziam os três ventos que mantêm congelado o Cocito. Pelos seis olhos chorava; pelas três saliências carnudas abaixo dos beiços inferiores, espalhavam-se lágrimas de sangüínea espuma; em cada boca estava um pecador, sendo que ao mesmo tempo eram eles esmagados, qual moinho a triturar o grão. Mas ao condenado que era devorado pela boca que estava à minha frente, o tormento era maior, porque com as garras, em atroz fúria, Lúcifer rasgava-lhe a pele. Disse-me o Mestre: “Esse que esperneia em dor mais cruciante é Judas Iscariotes; (o que traiu Jesus) tem ele toda a cabeça presa pela dilacerante boca. Aquele que, está pendurado na boca da face mais escura, é Brutos, que se contorce a cada dentada; e o que está na boca da terceira face e tem os membros bem robustos, é Cássio. (Brutos e Cássio, que mataram Júlio César.) Mas, a noite se aproxima; devemos então partir pois já vimos tudo que devíamos ver aqui”.

Seguindo as determinações do Mestre, a ele me abracei fortemente. E tendo ele, escolhido o momento e a posição mais acertada – exatamente quando Lúcifer estendendo as asas se colocou de pernas para o ar, o Mestre, e preso eu a ele, nos longos pêlos do peito do horrendo animal se agarrou; depois subiu segurando-se aos pelos das ancas que se encontrava sobre o lago congelado; chegando à altura onde os quadris se unem às coxas, percebi que meu Guia, ofegante e exausto, agarrando-se a terrível besta, tinha a cabeça voltada na direção em que antes apontavam os pés, como se quisesse subir ao invés de descer. Aterrorizado pensei que estivesse voltando às amarguras do Inferno. “Te segura com firmeza!”. – disse-me Virgílio cansado, mas com imensa alegria - “porque somente por este estranho caminho é possível se sair do Império do Mal!”. Saindo então por grande fenda de uma rocha, cautelosamente fez-me sentar. Depois, junto a mim, ficou vigilante.

De onde eu estava curioso ergui os olhos para ver Lúcifer na posição em que o havia deixado, no seu pouso; e o que via? Via Lúcifer tranqüilo, de pernas para ar. E à confusão e vergonha que se formou em mim deixo ao povo julgar mesmo sem compreender qual era a grande fenda da rocha por onde saímos. (A fenda formada pelo encontro das duas nádegas de Lúcifer.)

Então disse o querido Mestre: “Ergue-te e vamos! A metade do dia o Sol já percorreu. Longa é a jornada e difícil o caminho; não temos que passar por salas de palácio; mas por rudes paredes de escuras cavernas é que devemos dirigir noss

os passos”.

“Antes que deixe todo esse abismo escurecido pelo mal, Mestre meu, esclareça-me algumas dúvidas.” – disse eu erguendo-me um pouco mais seguro. “Onde está o gelo? Por que se apresenta Lúcifer assim nessa posição, se antes eu o via de pé? E por que tão rápido a noite desaparece e o Sol nos ilumina?”.

Respondeu-me o Mestre: “Acreditas que estejamos ainda no centro da Terra onde ao pêlo do infame verme me agarrei. Sobre o que me pergunta, faça com que seja divulgado: estás voltando do centro onde a gravidade atrai o peso da terreal esfera. Foste transferido para o lado oposto aquele em cujo cume (em Jerusalém) foi crucificado o que nasceu e viveu sem pecado (Cristo). Tens agora os pés firmados sobre um determinado ponto de espera oposto a Judeca. (Sobre um pequeno globo fora do Inferno) É noite lá; e aquele, em cujo pêlo nos agarramos servindo-nos de escada, continua ali na mesma ridícula posição. Aqui ele caiu, vindo da sublime altura; mas a terra, que ele em vôos rasantes tentara alcançar, do mar fez um véu e dele se desviando deslizou para outro lado; então, o mais belo dos anjos transformado em terrível monstro caiu nesse hemisfério que também de medo fugiu deixando-o num vácuo; e ao fugir levou toda a matéria, formando a enorme montanha que ao longe se avista”. Lá, nas profundezas desse hemisfério, há um lugar que fica bem distante tanto de Belzebu como do espaço por ele dominado e que a vista não alcança, porém escuta-se o murmúrio de um arroio, que serpenteando desce por uma fenda escavada na rocha um pouco inclinada. Para voltar à face iluminada do mundo, seguimos o barulho manso das águas e penetramos nessa escura vereda sem que nenhum de nós procurasse descansar. Virgílio e eu fomos subindo, subindo, até que por uma abertura circular pude ver a maravilhosa beleza firmamento. Depois saindo, tornamos a ver as estrelas!

Fim da primeira parte.

O Inf. CANTO XXXIII


O conde Ugolino della Cherardesca conta a Dante a sua trágica morte na torre dos Gualandi. Na Ptoloméia o poeta encontra Frei Alberico de Manfredi, o qual lhe explica que a alma dos traidores cai no inferno logo depois de consumada a traição e que um diabo toma conta do corpo até chegar o tempo do seu fim no mundo.

Texto do Tradutor.


"Torre da fome"...

Na cabeleira do crânio que acabara de roer o feroz pecador limpava os restos do violento alimento que comera. “Queres renovar em mim a dor que só em pensar me dilacera o coração”; - começou ele a falar - “porém, se o que eu disser for semente que brote infâmia ao traidor que acabo de devorar, mesmo debulhado em lágrimas, falarei. Não sei quem és, pois não consigo enxergar tuas feições; e nem sei como aqui chegaste; porém ouvindo teu modo de falar, sou forçado a acreditar que és um florentino. Deves saber que fui Conde Ugolino e este que acabo de devorar foi o Arcebispo Rogério. Narrar como fui traído pela confiança que nele depositava, não é necessário mas, a razão para o meu cruel destino, te direi. Preso e levado ao cárcere lá fui morto por maldade deste infame. Não conheces porém a atroz tortura que antecedeu ao meu fim. Estejas bem atento ao que vou expor e saberás se alguém já foi tão cruelmente torturado”. (O Conde Ugolino della Gherardesca, de Pisa, foi acusado pelo arcebispo Ruggiero delle Ubaldini de ter traído sua cidade natal. Ficou preso numa torre com dois filhos e dois netos, onde todos morreram de fome).

“Muitas vezes, na torre que depois passou a ser chamada “Torre da Fome”, por pequena fresta eu via passar muitas luas; numa dessas noites quando estava a luz da lua em pleno crescimento, em horrível sonho o véu do futuro rasgou-se como um pressentimento. Vindos do monte que fica entre Lucca e Pisa, vi um lobo e seus filhotes a correr. Logo atrás, magros, ágeis, e ferozes cães incitados eram, pela família dos Galandis, Sismondis e Lanfrancos cujo chefe da caçada era esse aqui. De repente o lobo e seus filhotes cansados, mancando e já muito feridos pelos galgos, pareciam estar em últimas agonias. Ao primeiro clarão do dia acordei com o choro dos meus queridos que comigo estavam e que ainda adormecidos, pediam pão. És cruel, se tua alma não sofrer ao imaginar a dor que me aguardava; se não choras com o que estais a ouvir, que sofrimento há que te comova? Despertaram; já chegava a hora em que nos traziam o escasso alimento. O sonho, a cada um nos aterrorizava. Da horrível torre então se ouviam martelos a cravejarem as portas. Eu, mudo e paralisado, nos filhos encarei; já esmoreciam. Eu não chorava; o peito parecia uma rocha. Eles choravam. Então, Anselmúccio disse: “Do que tens medo pai? Porque nos olha assim?” “Não chorei nem palavra alguma eu disse durante o dia e a noite que seguiu lenta, até que novo dia surgiu. Quando a luz ainda escassa a iluminar o doloroso cárcere se apresentou, pude ver meu semblante nos rostinhos das quatro crianças. Delirante de agonia e ódio mordi minhas mãos; pensando eles ser aquele gesto, efeito da fome, suplicantes disseram: “Menos mal nos será feito pai, se nos comeres; nos vestistes, nos deste a carne e a vida; agora, sirva-se de nós pai”! Contendo-me, evitei não mais entristecê-los. Passaram-se dois dias e todos nós em perfeito silêncio... Ah!... Por que, terra, não te abriste evitando tamanha desgraça?... No quarto dia, a luz do sol clareou o ambiente do cárcere. Caddo, caiu-me aos pés desfalecido, os lábios murmurando: “Pai, socorra-me!”. E morreu. E assim como me estais vendo agora, enlouquecido me senti ao presenciar, durante o quinto e o sexto dia um a um, os três, morrerem de fome! Apalpando procurei seus corpos! Não enxergava! Estava eu cego. Durante vários dias, repeti seus nomes, até que a agonia da forme, pior que a agonia da dor, acabasse comigo.”

Após essa terrível narração calou-se; depois furioso e com os olhos revirados com antes, cravou os dentes no crânio do maldito; e igual a cão faminto o foi destruindo.

Ah! Pisa! És a vergonha dos que habitam a bela Terra onde seus corpos repousam! Por que os povos vizinhos são tão lentos, em ti punir, Depressa se movam Capraia e Górgona (ilhas, na foz do Arno) fechando-te a foz do Arno à saída, a fim de que teu povo pereça sob as águas represadas! E se ao infeliz Ugolino foi atribuído a traição de entregar sua pátria aos inimigos, por que, de modo tão cruel tirar a vida dos seus filhos? Oh! Nova Tebas! Pela tenra idade Ugoccione e Brigata inocentes eram, assim como os dois irmãos, para com quem usaste tamanha ferocidade!

Seguindo mais adiante – na Ptoloméia, encontramos outros que, encravados no gelo, padeciam duro sofrimento. Tinham eles as cabeças pendidas para trás, impedindo-lhes que o pranto da dor rolasse pelas faces; ficando ela reprimida, transformava-se em gelo que obstruía toda a cavidade interior dos olhos.

Com a intensidade do frio meu rosto tornara-se insensível; mesmo assim, desde que a essa eterna geleira cheguei, percebi como sendo um sopro ou branda aragem, a me tocar as faces. Curioso, perguntei: “Mestre, qual a origem deste leve vento? Se aqui não há vapor de ar, de onde ele vem?”. (Naquela época, acreditava-se que o vento era produzido pela evaporação da Terra; se a luz e o calor do Sol não chegavam ao fundo do Inferno, não poderia haver evaporação). Respondeu-me o Mestre: “Irás aonde teus próprios olhos resposta correta te darão. E ali chegando, saberás como é produzido esse suave vento”.

De repente, um dos padecentes que ali estavam nos disse gritando: ”Ó almas cruéis! Ó almas condenadas que no extremo do abismo estais, tirai dos meus olhos essas gélidas camadas e deixa-me chorar até desafogar o peito aflito, antes que eu tenha as lágrimas novamente congeladas”. Respondi: “Se queres que te ajude, diz-me teu nome; e se eu não cumprir o que estou prometendo, seja eu retirado desse lugar gelado onde estou e levado ao abismo infernal onde estás”. Logo me respondeu: “Sou frei Alberto; pelos famosos frutos do meu amaldiçoado pomar, aqui recebo tâmara, quando me prometeram figo”. (Frei Alberto Manfrede, de Faenza; convidou dois parentes, para comerem em sua casa; no fim do jantar, ao pedir que trouxessem as frutas, os criados entraram na sala e mataram os hóspedes.) Exclamei surpreso: “Oh! Então morreste!”.

Respondeu-me: “Não sei; não sei se meu corpo está vivo lá no mundo, nem como ele está. Essa relação entre alma e corpo, pelas regras da Ptoloméia, é muito freqüente. Pode a alma estar (das três Parcas; a que cortava o fio da vida humana.) E para que estas vitrificadas lágrimas sejam por ti prontamente removidas te direi como isso acontece a quem, como eu, tem a mente corrompida pela traição. No momento exato do ato o corpo do traidor passa a pertencer ao demônio que o governa, até o último momento de vida, quando na terra a lúgubre sepultura alívio dá ao corpo, cujo espírito já esteja aqui trêmulo a padecer. Se recém-chegado és, fiques sabendo que esse traiçoeiro que ali está, se envolveu em infernal confusão há muitos; é Bianca d´Ório”. (Genovês que convidou o sogro Miguel Zanche a jantar em sua casa, armando-lhe uma cilada: matou-o para ficar com o castelo de Logodoro.) Respondi: “Este é mais um de seus enganos; Bianca d´Ório desfruta alegremente da vida; come, bebe, dorme e veste roupas”. Então ele continuou: “Não é a de Miguel Zanche, porque sua alma está na negra caverna em Malebolge, submersa no viscoso piche; e esse criminoso aqui, deixou entrar no seu corpo um demônio; o mesmo acontecendo a um seu parente que na traição foi sócio, tirando disso grande proveito”. Depois gritou: “Agora, presta clemente auxílio com tuas mãos abrindo-me os olhos!”.

Mas nada fiz pois compreendi haver cometido grave erro ao querer tratar com cortesia, tal bandido.

Ah! Genoveses! Raça impura e avarenta que nas ações tem tamanha mancha! Quem, da face da terra vos extinguirá? Vi, entre o pior espírito da Romanha um tão grande traidor, que sua alma no Cocito já se banha, enquanto no mundo, seu corpo, vivo está!

sábado, 18 de setembro de 2010

O Inf. CANTO XXXII

Os Poetas se encontraram no círculo em cujo pavimento de duríssimo gelo encontram-se presos os traidores. O círculo é dividido em quatro partes. Na Caina, de Caim - que matou o irmão - estão os traidores do próprio sangue; na Antenora, de Antenor - troiano que ajudou os gregos a conquistar Tróia, estão os traidores da pátria e do próprio partido; na Ptoloméia, de Ptolomeu – que traiu Pompeu, estão os traidores de amigos; na Judeca, de Judas – que traiu Jesus, estão os que traem os benfeitores e os superiores. Dante fala com vários, enquanto atravessam o gelo, indo em direção ao centro.

Texto do Tradutor


"Pode arrancar-me o pêlo mil vezes..."

Se eu pudesse usar palavras torpes e grosseiras para descrever o lúgubre e assustador poço que é à base de sustentação de todo o Inferno, faria sem constrangimento; mas tais palavras me faltam ao vocabulário; é, pois timidamente, que me proponho a fazê-lo; e é tão pesado esse trabalho que me esmorece o ânimo. Descrever com rimas o centro mais profundo e terrível do Universo não é tarefa fácil de cumprir. Se o puder mágico das Musas pudesse auxiliar nos meus versos como ajudou a Anfião em Tebas, a ele recorreria; (Anfião foi auxiliado pelas Musas, na edificação dos muros de Tebas)mas, não sendo isso possível, fiel e verdadeiro serei nessa empreitada.

Ó malfadada turba! Quão terríveis são os castigos deste abismo; melhor destino te aguardaria se transformada fosses em bando de gado selvagem.

Descemos ao fundo do enegrecido poço que ficava muito abaixo dos pés dos gigantes. Impressionado olhava eu o alto muro que circundava todo aquele abismo, quando ouvi alguém dizer: “Tenha cuidado, ó caminhante! Não pises as frontes de teus irmãos desventurados!”. Voltando-me, olhei para baixo. Sob meus pés vi a imensa superfície de um lago gelado que poderia dizer fosse feito de cristal, não de água. Na Austrália durante o inverno, as águas do Danúbio não seriam tão enrijecidas nem as do rio Don, na Rússia, seriam tão geladas. Tão petrificado era esse gelo que, se sobre ele caísse o Tambernich ou o Pietrapana (dois gigantes) com todo seu peso, não o romperia. Qual rã que no pântano coaxando tristemente, ergue um pouco o focinho enquanto a camponesa respingada fica ao tentar apanhá-la, assim gemiam aqueles condenados enterrados no gelo até a cintura, arroxeados, batendo o queixo com a mesma velocidade com que as cegonhas batem o bico. Com a cabeça a pender sobre o peito e a boca a tremer de modo impressionante, indícios bem claros davam do frio que sentiam e nos olhos, a amargura refletia!

Quando comecei a observar ao meu redor, vi aos meus pés duas almas em tal abraço unidas, que os cabelos se entrelaçavam. Então lhes perguntei: “Quem sois que tão unidas se encontram nesse estreito abraço?” Voltando-se, num curto espaço de tempo me fitaram; porém quando dos olhos as lágrimas lhes brotaram, entre os cílios ficaram, em forma de neve. Nunca dois pedaços de madeira presos por pregos se uniram tanto quanto aqueles dois; porém irados, um contra o outro se investiam, quais carneiros cabeceando-se com furor.

Nesse instante uma terceira alma a quem, de geladas lhes caíram às orelhas, sempre de cabeça baixa disse: “Por que estás a nos olhar de modo tão curioso? Desejas saber quem são os dois, que não responderam? A eles e ao seu pai Alberto pertenceu o vale onde o bisso é produzido em alta escala. (filhos de Alberto dei Alberti, que durante uma briga, se mataram um ao outro; Bisso, vegetal que produz tecido igual ao linho).Nasceram de um só ventre; tu, certamente, não encontrarás em Caína outros mais dignos de estar aqui com seus corpos cobertos pelo gelo. Nem aquele a quem a mão assassina de Artur, com um só golpe de lança, transpassou o corpo e a alma; (Mordec, filho do rei Artur; foi morto pelo pai, cuja espada o atravessou de lado a lado) nem Foccaccia; (Focaia dei Cancellieri, matou alguns parentes que pertenciam ao partido inimigo) nem esse que ali está de cabeça inclinada impedindo-me de vê-lo e que se chamara Mascheroni Sasso; (florentino que, traiçoeiramente, assassinou um de seus primos) nome bem conhecido principalmente de ti que és toscano. Agora, esperes mais um pouco, para ouvir o que tenho a te dizer: sou Piazzi (Camacion dei Piazzi, que atou seu primo Ubertino); porém, meus crimes não serão considerados os piores, quando aqui chegar Carlim”. (Carlino dei Piazzi; traiu seus companheiros, entregando várias fortalezas ao partido dos gelfos.)

Recordo-me de ter visto o rosto de outros mil condenados, arroxeados tremendo de frio. E desde aquele momento somente ao lembrar que estive diante daquele horrendo vale gelado fico tomado de arrepios, e também quando me lembro que, tremendo de pavor, no centro onde a gravidade mantém o Universo em equilíbrio, nas trevas eternas do Inferno entrei.

Aconteceu que sem querer, por sorte ou por desprezo, ao caminhar por entre tantas cabeças presas no gelo, em uma das faces pisei. “Por que me pisas?” – reclamou chorosa – ”Além de estar eu pagando pelo que ocorreu em Monte Árpeti, ainda me maltratas desta forma!”. Imediatamente falei: “Mestre, espera-me aqui; este infeliz me deixou em dúvidas por isso quero compreendê-lo; depois, se estiver ficando tarde, voltarei correndo”.

Parou então o Mestre; e ao pecador que agora feroz proferia terríveis blasfêmias, perguntei: “Quem és tu que tão severamente me repreendes?”. Respondeu-me: “Dize-me primeiro quem és tu que na Antenora, a face me espezinha! Se vivo fosses, certamente menos cruel seu golpe seria”. Respondi: “Sou vivo; e posso nos meus escritos publicar a fama do teu nome, se louvores te dão prazer”. Exclamou: “Quem te fala quer somente ser esquecido. Vai-te! Estás me aborrecendo demais; aqui não há lugar para lisonjas ou intrigas”. Então, agarrando o pecador pelos cabelos disse-lhe: “Ou me diz rápido teu nome, ou perderás todo o cabelo!”. Aos berros respondeu-me: “Podes arrancar-me o pêlo mil vezes, porém não terás o prazer de saber qual foi meu nome ou apelido e, nem de ver meu rosto”.

Já havia eu enrolado as mãos nos desgrenhados cabelos e lhe arrancado parte deles; porém mesmo ganindo ele abaixou ainda mais a cabeça, enquanto outro gritou: “Ó Boca! Não vais parar com isso? Não te é suficiente bater os queixos, agora ficas também latindo? Que demônio tem, em ti?!” (Bocca deli Abati; na batalha de Montaperti em 1.260, causou a derrota dos florentinos, passando-se para o lado inimigo). Reconhecendo-o no mesmo instante lhe disse: “Não exijo nada mais de ti, ímpio traidor. O que de ti estou vendo a todo o mundo contarei por ser isso mais infamante”. Respondeu-me cheio de ódio: “Vai! Se puderes sair deste horrendo abismo fala o que quiseres, não esquecendo porém do linguarudo que aqui está; podes dizer: "eu vi Roso Duera acompanhado de muitos outros; agora chora pelo ouro que recebeu da França em pagamento por sua traição". E se perguntares quem são esses outros, a resposta terás se olhares agora ao te redor; verás Beccaria, que Florença mandou degolar. Ainda há poucos instantes passou por aqui Gian del Saldanier com Ganellon e Tribaldello, aquele que abriu as portas da cidade de Faenza enquanto seus habitantes dormiam, traindo sua cidade natal”.

Depois disso, deixei-o; e enquanto me afastava em direção ao Mestre, subitamente vi numa caverna de gelo dois condenados; a cabeça de um e do outro era um só cabelo. Os dois, como esfomeados ao pão se agarrando, um sobre o crânio do outro os dentes aferrava mastigando-lhes o cérebro e os ossos, como Tideu que, enfurecido, a dentadas triturava o crânio de Menolipo, já morto.

E eu vendo aquela terrível cena, exclamei: “Ó tu que de tão cruel ódio possuído estás a ponto das carnes do inimigo ferozmente dilacerando-o, diga-me o que causou tudo isso. Se eu souber que a razão está contigo e tiver conhecimento de tua culpa e condenação, quando ao mundo eu voltar prometo que farei tua defesa se por Força Superior não for eu impedido de falar”.

O Inf. CANTO XXXI

Dando as costas ao oitavo círculo caminhavam os Poetas para o centro onde se abre o poço pelo qual se desce ao nono. Em torno do poço estão os gigantes rebeldes cujas figuras horrendas, Dante descreve. Um deles, Anteu, a pedido de Virgílio, toma nos braços os dois poetas e suavemente os põe sobre orla do último reduto infernal.

Texto do Tradutor

Prestimoso toa-o entre as mãos...

As palavras que foram ditas por Virgílio caíram sobre mim como bálsamo, aliviando o ardor que nas minhas faces acusavam a vergonha. Assim fizera a poderosa lança de Aquiles e de seu pai que, segundo dizem, curavam as feridas abertas, causadas por elas mesmas.

Sem proferir palavra alguma deixamos o desditoso círculo atravessando sobre a borda do muro que contornava aquele escabroso lugar. Não sendo ainda noite e não tendo desaparecido completamente a luz do dia, pouco se podia ver à distância; eis então que escuto o som de uma trompa e tão alto era que ultrapassava o maior retumbar de trovão. Assustado, voltei-me em direção a aquele som, nele concentrando toda a minha atenção. A trompa tocada por Orlando não soara tão forte após a derrota final da santa batalha de Carlos Magno, quanto essa. (Orlando, ferido em Roncisvalle, após a derrota da batalha tocou tão alto, o trompa, que o som foi ouvido por Carlos Magno, a oito milhas de distância.)

Olhando a distância e com atenção percebi várias e imensas torres; então perguntei a Virgílio: “Mestre, que enorme fortaleza é aquela?”. Respondeu-me: “Vejo que estás cometendo erro no seu julgamento; mas, isso é normal; pela distância e pouca luz, é impossível se enxergar com perfeição. Ali chegando verás quanto à visão nos engana. Por enquanto convém andar mais rápido”. Então, segurando-me pela mão, com voz afável continuou: “Antes que adiante vás, te livrarei dessa ilusão; o que imaginas ser torres, na verdade são gigantes; eles estão mergulhados no poço até a cintura; do tronco para cima elevam-se, em torno ao espaço livre”.

Como ao surgir o dia o sol faz desaparecer o grosso nevoeiro e pouco a pouco vai se definindo tudo quanto o vapor noturno à nossa visão ocultava, assim, ao me aproximar mais e mais da borda e penetrando o olhar por entre o escurecido nevoeiro, mais desaparecia o engano e aumentava em mim o horror; pois do mesmo modo que as coroas guarnecem as torres que se elevam ao redor dos muros do castelo de Montereggion (castelo do vale d´Elsa), assim, ao redor do infernal poço estão os horríveis gigantes onde somente se vê a metade do corpo e se escutam suas estrondosas vozes ameaçando o Céu.

Já conseguia distinguir bem um deles (e fiquei transpassado pelo horror) seu rosto, os braços, o peito, e a parte do ventre que à borda do poço ultrapassava. Bem fez a natureza quando deixou de criar tais monstros, e de iguais seres destituiu o guerreiro deus Marte. Se a selva e o mar estão povoados de elefantes e baleias, corretamente pensa, quem julga a natureza sábia e justa; pois se tais seres fossem dotados de instinto perverso, seriam para todos perigo permanente. O gigante que eu via pereceu-me ter a face tão larga e comprida como a pinha de bronze exposta na Praça de São Pedro, em Roma. Nos outros membros, a proporção se dá; a parte do corpo que acima da borda do poço se via elevava-se tanto no espaço, que a imensa altura de três frisões (habitantes da Frísia, de elevadíssima altura) poderia apenas medir o tamanho da cabeça; tamanho esse foi por mim calculado em trinta largos palmos, somente do colo ao fim do pescoço.

“Rafael maí amech zábi almos”, assim bradava a pavorosa boca que não sabia mais entoar doces salmos. Ouvindo-o assim pronunciar, gritou-lhe meu Mestre: “Ó alma grosseira e brava! Toca a trompa se com ela alivias a chama ardente das paixões ou ódio,que ti consome. Ao redor de tua orgulhosa cabeça, coloca o louro a que se prende sua confusa alma! Vê, como agora se curva humilhado teu altivo peito”. Depois, voltando-se a mim diz: “Do que lhe disse, ele mesmo se acusa. É Nemrod;(que edificou a torre de Babel, da qual surgiu a confusão das línguas) por tomar para si estulto empreendimento, o mundo já não usa uma só linguagem. Deixemo-lo pois; falar-lhe é perder tempo. Como não compreende o idioma dos outros, o que ele usa, ninguém consegue compreender”.

Íamos então pelo caminho que a esquerda se estendia quando nos encontramos com outro gigante acorrentado, mais feroz e mais alto do que o primeiro. Admito não saber dizer quem conseguiu prender as mãos do monstro daquela forma; pois tinha ele o braço direito preso às costas, e o outro, desumanamente apertado, preso ao peito por correntes que lhe envolviam, dando tantas voltas, que lhe cobriam todo o espaço do enorme corpo. Disse-me Virgílio: “Esse soberbo que quis medir forças com o soberano, Javé (Júpiter); aí está o resultado do orgulho que lhe dominava. É Efialtes; (Um dos gigantes que guerra contra os deuses; era famoso caçador de leões; foi morto por Hércules) com seu terrível plano, consegui aterrorizar os grandes deuses; a partir daí, jamais pode mover os braços”. Respondi-lhe: “Ó Mestre, me sentiria muito feliz se conseguisse ver o gigantesco Briareu”. (Gigante, com cem mãos) Porém, ele me respondeu: “Verás Anteu; ele é muito famoso; (gigante que lutou com Hércules) Está solto por aí, e não demora a aparecer. De bom grado há de nos levar ao fundo desse fosso. O outro,de quem falaste, está longe daqui; e esse que próximo está, tenha certeza que em força e estatura a ele se iguala, porém é mais feroz na aparência e mais esperto em maldade!”.

Jamais terremoto em plena atividade é tão forte e abala tanto os edifícios, como Efialtes ao se movimentar. E eu assombrado e já sem voz pensai ter chegado o momento da morte; e de pavor sem dúvida teria eu morrido, se não estivesse o pavoroso gigante preso, e bem preso.

Rápido, fomos ao lugar onde estava Anteu, cuja cabeça se elevava acima da borda do penhasco, em cinco braças. Vendo-o, disse-lhe meu Mestre: “Ó tu que no venturoso vale onde Sipião colheu os louros da vitória no dia em que Aníbal somente desgraças e humilhações causava, para vangloriar-se ousadamente mil leões capturaste; e se ao invés dessa exibição tivesse ajudado aos teus irmãos naquela sangrenta guerra, talvez a história registrasse a vitória dos destemidos filhos da fecunda Terra! Mas não fiques irritado conosco e, por favor, transporta-nos para o fundo, onde se iniciam as frias águas. Preferimos-te à Tifeu e a Ticio; (outros gigantes) Curvando-me diante de ti, peço que atendas ao meu pedido, pois este homem que ao meu lado está pode te dar o que mais desejas; pode te restituir a fama lá no mundo, pois ele ainda vive e espera longa vida ter, a menos que a Divina Graça o chame antes do tempo”.

Anteu nem sequer refletiu; prestimoso toma-o entre as mãos que ao próprio Hércules fizera sentir a feroz força. E quando sobre as palmas das mãos Virgílio se viu, disse-me: “Aproxima-te depressa, para que te abrace!”. Então ao Mestre prontamente obedeci; e como aquele que olhando a Carisenda (a trorre inclinada de Bolonha) do lado em que se inclina e ao ver passar rápida uma nuvem tem a impressão de que ela tomba para o outro lado, assim vi o enorme Anteu se inclinando em nossa direção. Naquele momento, por preferência, queria eu estar em estrada bem distante. Mas Anteu suavemente nos colocou no fundo do fosso, diferente da grosseira postura que teve quando serviu de assento a Judas e a Lúcifer, que pelo imenso peso, o arqueava.

Depois, qual mastro altivo, ergueu-se rapidamente.