O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

domingo, 30 de dezembro de 2012

O Paraiso - CANTO VI

A alma do Imperador Justiniano fala ao Poeta e narra-lhe a história do Império, de Enéias a César, a Tibério a Tito, a Carlos Magno para mostrar-lhe a santidade da autoridade imperial. Diz-lhe que no Céu de Mercúrio estão os espíritos daqueles que se esforçaram para conseguir fama imortal. Discorre-lhe acerca de Romeu, que administrou a corte de Raimundo Beranguer, conde de Proença. Texto do Tradutor.

(Ainda em Mercúrio)
“Tendo Constantino conduzido a Águia contra o curso do Sol, essa Ave Sagrada permaneceu  naquele ponto da Europa, perto dos confins de Deus e vizinha dos montes donde partira, durante duzentos anos. (Depois que Constantino transferiu o império de Roma – a Águia é o símbolo do Império Romano; - Constantino a levou do Oriente para o Ocidente percorrendo o caminho oposto ao do herói que conquistou Lavínia - Enéia que se deslocou-se de Tróia para a Itália, seguindo o curso do Sol), Dali, sob a suave sombra de suas plumas teve o domínio de uma parte do mundo passando o cetro por diversos imperadores, até chegar as minhas mãos para governar o Império com bondade e mansidão.
Sou Juliano; fui eleito César duzentos anos depois de Constantino; movido pelo Espírito Divino e pelo amor a verdade, retirei das leis do Império tudo o que havia de injusto e supérfluo. Antes de me envolver com esse empreendimento, acreditava eu ter Cristo uma só natureza e nessa crença, perdido andava; mas a poderosa voz de Agapito que governava a Santa Igreja de Roma como zeloso pastor, levou-me a verdadeira fé. (Segundo a doutrina de Eustáquio, Cristo tinha somente a natureza humana. Justiniano foi conduzido à Igreja católica pelo Papa Agapito.) O que então ele me ensinou é verdadeiro, e isso hoje vejo tão claramente, quanto entre uma afirmação e outra percebe-se qual a que não oferece dúvida. Quando acreditei no que a Igreja afirmava, meu espírito logo à sublime empreendimento se dedicou. Passei o comando do exército a Belizário; e na vitória que lhe concedeu o Poder Divino, reconheci como uma ordem para que eu promovesse a paz. (Belizário: grande general de Juliano que, na Itália, combateu contra os Godos). Até o momento respondi uma parte da tua pergunta. Porém, esse assunto me obriga a maiores explicações o que estou propenso a dar-te afim de compreenderes como são infames as razões que induzem os que dizem estar falando em nome da Água romana e os que  se moverem com ela, tentando dela se apossar ou destruí-la. Pelos fatos verás quanto se tornou digna de respeito e reverência, desde quando Palante morreu pela honra e soberania do sagrado manto. (Palante foi companheiro de Enéias; morreu combatendo contra Turno). Sabes como se comportou ela em Alba (cidade fundada por Ascânio, filho de Palante, companheiro de Enéias; morreu combatendo contra os Turcos) por mais de 300 (trezentos) anos, até que lutaram três contra três, quando então foi levado dali. (combate dos três Horácios contra os três Curiácios). Sabes tudo sobre o que foi feito pelos sete reinados para que os povos vizinho fossem dominados; desde o rapto das Sabinas (rapto das mulheres dos Sabinos, efetuado pelos romanos) até ao ultraje a Lucrécia (mulher de Colatino; foi violentada por Torquínio; daí resultou a rebelião dos romanos contra a monarquia), que causou o fim dos Reinados. Tens conhecimento dos feitos de tantos heróis romanos nas batalhas contra Breno e Pirro, (o Breno foi general dos Galos e Pirro do Epiro; os dois  invadiram a Itália) e de muitos outros reis e suas coligações malignas que tornaram famosos a Torquato e a Quincio – que recebeu o apelido de Cincinato – aos Décios e aos Fábios a quem os amo e louvo. (Décios = pai e neto; morreram pela pátria; Fábios = ilustre família romana) derrubou o orgulho dos cartagineses comandados por Aníbal – o Africano, durante a travessia dos montes alpinos, de onde corre as águas do Rio Pó. (O Africano: general cartaginense que invadiu a Itália). Fez triunfar ainda na juventude  Cipião e Pompeu que lutavam à sua sombra; a colina perto da qual nasceste tornou-se violentíssima, porém algum tempo depois, quando o Céu havia decidido levar a paz ao mundo inteiro, iluminou-me, e me fez criar leis em conformidade com as de Roma e nas mãos de César entregou as nações. A coisas admiráveis que ele realizou do Varo ao Reno tiveram por cenário o Isara, o Erro e o Sena e esse vale imenso onde o Rio Ródano é o soberano. Depois que saiu de Ravena atravessando o Rubicão com César, sempre acompanhando da Águia; seus feitos foram tão grandes que é absolutamente impossível descrevê-los com precisão. Levou seu exército contra a Espanha depois contra Durazzo; em Farsália, sentiu-se perturbado pelos efeitos do calor do Nilo. Voltou então ao Simeonte (rio perto de Tróia) e ao Antandro  (cidade da Frésia) sua terra natal, e onde se encontram os restos mortais de Heitor. Mas movendo batalha contra Ptolomeu, qual raio, logo alcança Juba, destruindo-a; em seguida volta para as terras do Ocidente de onde escutou vozes de desafio enviadas pelos seguidores de Pompeu. Pelos atos infames praticados por aquele que depois o assassinou, (a morte de César foi vingada pelo Imperador Augusto) sofrem agora no Inferno, Brutus e Cassio ao lado de Perúgia e Modena; e também de Cleópatra (rainha do Egito que se suicidou) que, com o auxílio de uma serpente, teve morte atroz. A partir daí tudo, até o Mar Vermelho, esteve sob o domínio da soberana Águia, (a Águia é o Símbolo do Império Romano); foi então que a paz mais serena o quanto possível desceu sobre o mundo, até se fecharem as portas de Jano sobre Roma.
Tudo fez e faria a sagrada ave para trazer o desenvolvimento e equilíbrio financeiro a esse  império. E parece pouco em seus merecimentos quando com puro afeto e claro entendimento a vemos em mãos de Tibério. Pois foi ele quem, com viva justiça, permitiu a glória de aplacar a ira que nós lhe despertamos. Me ouvindo agora ficarás mais espanado ainda com o que vou te dizer: quis Deus vingar-Se servindo-Se daquela vingança praticada por Tito. (destruiu Jerusalém cujos habitantes tinham crucificado a Jesus Cristo = não ficara pedra sobre pedra). Quando a Santa Igreja gemia sob as presas lombardas, Carlos Magno salvou-a do perigo. (Desiderio, último rei Lombardo que foi derrotado por Carlos Magno). Portanto os crimes cometidos por aqueles a quem há pouco me referi, é que  foi o motivo para os males italianos; enquanto um partido tem hasteado lírio de prata (as armas da Casa de França) o outro a quer como símbolo de guerra. Portanto é difícil dizer qual seja o mais culpado. Que os gibelinos pratiquem suas iniquidades sob outra bandeira, pois esta que é santa, é contra os que desprezam a justiça. Que o novo Carlos (Carlos II de Anjou, chefe do partido guelfo) nem tenha intenção de usá-la em combate com os guelfos; deve ele ter sim medo das garras que souberam arrancar a juba inteira do poderoso leão. Mais de uma vez já aconteceu os filhos se envergonharem pela culpa dos pais; portanto, louca é a esperança de Carlos D´Anjou ao imaginar que Deus vai trocar a Águia pelo Lírio.
Nessa estrela em que agora habito, (em Mercúrio) estão muitos espíritos generosos que na terra se esforçaram para nela deixarem honra e fama. Quando esses desejos os inflamam em demasia, ao elevarem-se ao Céu a chama do verdadeiro amor se torna menos intensa e sua luz com menos brilho. Porém é parte do nosso destino compreender o valor dos méritos adquiridos e do prêmio recebido, não desejando que seja maior ou menor, mas, o justo. Assim sendo a divina justiça acalma e modela os nossos sentimentos deixando-os livres da inveja ou do ciúme. Assim como várias vozes produzem a harmonia dos sons, assim também os vários graus de santidade criam a harmonia do Céu; neste astro belo e polido em que estás, brilha a luz de Romeu que recebeu como pagamento pelos seus valiosos trabalhos apenas a ingratidão. (Segundo conta G.Villani, Romeu foi administrador de Raimundo Berenguer - conde de Provença - aumentando-lhe o patrimônio e conseguindo casar as filhas de Raimundo com quatro reis. Caluniado, não quis mais ficar na corte de Provença e, velho e pobre, desapareceu). Os provençais que o atraiçoaram não obtiveram nenhum benefício, pois quem julga tirar proveito do mal feito a outrem, muito se engana. Beranguer teve quatro filhas e todas se tornaram rainhas; todas foram beneficiadas por Romeu, homem humilde e obscuro. Preso na trama formada por calúnias, Berenguer pediu-lhe explicações acusando aquele que além de honesto, aumentou em cinco vezes os bens do patrão que o acusava de desonestidade. O velho Romeu, desgostoso, partiu pobre e injuriado; e o mundo que o viu mendigando, deveria vê-lo agora no brilho da glória eterna.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O PARAÍSO - CANTO V


Continuando no discurso do canto anterior, Beatriz explica a Dante que o voto é um pacto entre o  homem e Deus. Pode mudar-se a matéria do voto, mas deve ser substituída, por oferecimento de maior mérito. Beatriz lamenta a leviandade dos cristãos. Beatriz e Dante voam depois para a esfera de Mercúrio, onde estão as almas dos homens que viveram uma vida digna, adquirindo fama no mundo.Um espírito fala ao Poeta. Texto do Tradutor.

                                                  O Planeta Mercúrio
“Se me vês resplandecente mais que o comum ao ser humano; se diante do meu olhar teu olhar desfalece, não te espantes; este efeito tem origem na Suprema Visão que aos nossos olhos o bem revela; e o compreendendo em aperfeiçoar-se apressa. Já distingo bem claramente quanto na tua inteligência resplandece a Divina Luz, a qual apenas percebida acende para sempre a chama do Divino Amor. E se outro objetivo humano atrai teu espírito seu vestígio é bem pouco percebido refletindo-se apenas na matéria. Estais querendo saber se um voto não cumprido pode ser por outros atos piedosos, substituído e se ao julgamento divino, são aceitos”.
Desse modo começou a falar Beatriz; e como quem no raciocínio não pára, assim continuou no seu santo discurso: ”O maior dom que Deus concedeu à humanidade, aquele que revela a Sua maior bondade e o que em maior e mais alta conta Ele tem, é certamente o desejo a liberdade que a toda criatura inteligente foi dado; o livre arbítrio. Daí, por dedução, fica evidente o alto valor do voto, quando feito por acordo entre Deus e a razão humana. Por contrato firmado entre Deus e o ser humano, esse tesouro que é vítima imolada e ao sacrifício vai com semblante jubiloso pode, por ventura, ser ele substituído? Fiques, pois ciente de um ponto fundamental: com a dispensa ou anulação da promessa feita, a Igreja, em tal caso, parece estar agindo de modo contrário ao que escutaste. Porém convém que te detenhas um pouco mais, aguardando o auxílio que pretendo te oferecer, afim de melhor compreenderes o que ouviste. Ao que te explicarei, prestai bem atenção e guardai-o na memória, pois não é inteligente se escutar o que depois vai ficar no esquecimento.
“Do sagrado voto é exigido a essência, isto é: aquele objeto dado em sacrifício e do próprio contrato a consistência. E este jamais pode ser extinto, apagado, ainda que sob tortura; bem clara demonstração, sobre este ponto te dei. Aos Hebreus rigorosa Lei determina oferecer piedosos sacrifícios, mas lhes fica concedida, a permuta da oferta. No voto a permuta é permitida quando necessidade própria se apresenta, sem ser por isto falta cometida. Mas não se muda a essência quando bem se quer. Somente se a Igreja, tendo usado das chaves de ouro e prata, o concedesse (somente se a Igreja, que possui a chave de ouro – da autoridade – e a de prata – da ciência – o permitir). Acredita-se que toda permuta é passo errado quando no novo não se inclui o antigo, bem como em seis o quatro está contido. Se na grandeza da promessa o peso for de tal forma que obrigue a se inclinar toda a balança, não há outra promessa que a substitua.
“Mortais, não façais promessas que não possam ser cumpridas! Cumpre-as, mas não imitando Jefte a quem louca promessa lhe trouxe desgraça. (Juiz de Israel que prometeu a Deus que se vencesse os Amonitas, sacrificaria a primeira pessoa que encontrasse no caminho; e esta foi a sua filha). “Fiz mal”! – dissera ao voto seu faltando por não cumpri-lo piedosamente. Porém mais insensato foi o poderoso Rei dos gregos, quando ao ver a filha, chorou, e a piedade comoveu a todos que ouviram falar naquela abominável promessa. (Agamenon prometeu - e cumpriu - aos deuses o que possuía de mais belo. Depois chorou a beleza de sua filha Ifigênia).
“Cristãos, pensai bem nas razões que vos levam a certas atitudes! Não sejais como plumas soltas ao vento! A água não apaga todas as nódoas. Tendes o Velho e Novo Testamento e, da Igreja o Pastor que guia vossos passos! Que mais desejais para vossa salvação? Se a ambição por bens materiais o peito vos inflama, sede homens e não animais irracionais! Que estando entre vós o avarento, de vós não escarneça. Não façais simplesmente como o cordeiro que, prejudicando a si próprio rebelde luta, não querendo mais o leite materno”.
 Assim falou Beatriz; depois, ansiosa e arrebatada em êxtase voltou-se para o alto de onde jorra toda a Luz que o universo recebe. Diante do encanto em que se transformou, calou-se o meu desejo de resolver outras questões já prestes a serem expostas. E, qual flecha que atinge o alvo antes mesmo de ter a corda voltado ao ponto inicial, no segundo céu (em Mercúrio) velozmente entramos. Eu via a amada Beatriz tão jubilosa penetrando na luzes daquele céu cujo planeta se tornou maior em esplendor; e se o astro sorriu se transformando, como não fiquei eu que, por consequência da natureza humana, sujeito a fantasiar essas impressões? Como em viveiro de água mansa e limpa, na esperança de que algum alimento se oferecido sofregamente os peixes procuram o anzol, entre mais de mil luzes, vindo às pressas, uma voz a nós se dirigiu dizendo: “Eis que chega quem maior incentivo ao amor nos traz!”.
 O sentimento de felicidade de cada espírito ao se aproximar de nós, se mostrava no aumento da sua luminosidade. Caro leitor, qual não seria a tua ansiedade, se por acaso a narração de quanto então se via, interrompida fosse? Podes por tanto imaginar o que eu teria de conhecer sobre aquela linda multidão que ante meus olhos aparecia.
Assim falou. “Ó ditosa criatura que antes mesmo de haver findado a cansativa batalha terreal estás a conhecer os tronos do triunfo eterno. Estamos envoltos na luz que irradia por todo o Céu; se, desejas, te daremos muitas informações sobre todos nós que aqui estamos”.
“Responde que assim queres”. - ouvi Beatriz dizer – “Faz tuas perguntas com tranquilidade e franqueza e acredita como divino o que compreenderes”.
“Vejo que estás encoberto pela própria luz que de ti irradia, pois o brilho do teu olhar e do teu sorriso isso revela; mas não sei quem és, ó bela alma, nem por que estás a ocupar esta estrela que nos clarões de outra aos mortais se oculta” Assim disse dirigindo-me à luz de onde surgiu voz, e que naquele momento refulgia mais tremulante do que quando antes a vi. E, como o sol quando ao fecharem-se as cortinas do dia, encobre em seu próprio esplendor o que excede de luzes e no poente se esconde, repleta de felicidade, a santa visão desapareceu nos seus próprios raios luminosos; e envolta na sua luz que se tornava cada vez mais intensa, contou-me o que conto no próximo Canto. 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O PARAÍSO - CANTO IV


Duas dúvidas agitam o espírito do poeta. A primeira é relativa à doutrina platônica, segundo a qual todas as almas retornam para as estrelas donde saíram; a outra, se a violência tolhe a liberdade, como pode ser justo que as almas forçadas a romper os votos tenham desconto de glória. Beatriz responde a primeira dúvida restringindo o sentido da doutrina platônica. Relativamente à segunda diz que aquelas almas não consentiram no mal, mas não o repararam, voltando ao claustro quando tiveram possibilidade de fazê-lo.
Texto do Tradutor.

Igual a uma pessoa que diante de dois saborosos pratos, não sabendo por qual começar a comer morreria de fome; ou a um cordeiro que entre dois lobos vorazes, temendo ser atacado não se moveria do lugar, ou ainda em comparação com um cão caçador que ente duas raposas a nenhuma atacaria, assim estava eu. Conservava-me calado, passando de um pensamento a outro, sem querer revelá-los; porém, o desejo de perguntar, no semblante se percebia. O constrangido silêncio denunciava melhor o meu querer, do que se o tivesse revelado com palavras. Tal como fez Daniel para moderar as manifestações de ira que à prática do mal se encaminhava Nabucodonosor, assim fez Beatriz a mim, dizendo: (Beatriz interpretou o pensamento de Dante, do mesmo modo como Daniel interpretou o sonho de Nabucodonosor, quando este queria mandar matar os seus sábios, por não terem eles conseguido interpretar seus sonhos).
“Desejando melhor compreender cada uma das questões, tua alma se sente cada vez mais confusa; e estando em tais laços envolvida, o raciocínio se torna mais difícil. Por isso, deves analisar assim: Se a vontade perseverava no bem e somente a violência fez dela se afastar, por acaso pode, por essa violência, os méritos dessas almas terem diminuído? E ainda: se a alma retorna ao seio das estrelas como afirma o filósofo Platão. (Segundo a teoria platônica, as almas são criadas antes dos corpos e habitam as estrelas, a elas retornando depois da morte dos corpos). São essas duas questões, que tanto te perturbam. Começarei por te esclarecer a mais importante. Tanto os Serafins, como Moisés, Samuel e o João (o Batista ou o Evangelista) e também Maria, usufruem a mesma claridade Divina que esses espíritos que vistes aqui. Não há lugar diferente para estes ou aqueles; todos habitam o mesmo Céu e gozam em maior ou menor grau a felicidade eterna e suprema, de acordo com o maior ou menor grau de amor, por eles sentido. Se os vistes habitando nessa esfera celeste, certamente não foi por lhes ter sido destinado alguma honra especial ou inferior e sim, para que teu entendimento compreenda melhor o significado das coisas. É por isso que nas Sagradas Escrituras Deus é representado com mãos e pés, mesmo tendo ela certeza de que assim não é, pois a mente humana compreende somente o que é percebido pelos sentidos. Pelo mesmo motivo a Igreja representa os Arcanjos Gabriel e Miguel e aquele que curou Tobias (o Arcanjo Rafael curou a cegueira de Tobias) sob forma humana. Timéu contesta esta verdade acerca do destino das almas, ou seja, que após a morte do corpo, a alma retorna ao astro de onde viera, se é que, o que ele escreveu tenha sido bem interpretado, portanto não merecendo ser escarnecido por isso. Se, concordando com sua afirmação de que aos astros fora atribuído o poder de influenciar sobre vida humana na honra ou na desventura, certamente seu alvo não ficou muito longe da verdade. Sendo sua teoria mal interpretada, isso prejudicou quase o mundo inteiro quando, insensatamente, adoração prestou a Júpiter e Marte. A segunda dúvida, se apresenta menos prejudicial porque o mal que nela encerra não deve afastar tua alma de mim. Que lá na Terra, para o ser humano, a Justiça Divina pareça injusta, é argumento de fé, e não motivo para polêmica. E já estando o entendimento humano capacitado a compreender esta verdade, vou te apresentar o que tanto desejas saber. Se contra a vítima houver coação e ela em luta, resiste, isenta de culpa ela fica. Sendo persistente a vontade não será dominada; a chama tremulante mil vezes resiste a força que a retorce; mas se a vítima sentir-se vacilante muito ou pouco, desculpa ela não tem; essas almas poderiam ter voltado ao santo abrigo do claustro, assim que se viram livres da força da violência. Se a sua vontade tivesse sido conservada inteira como a de São Lourenço sobre a grelha ardente, ou a de Múcio, quando deu sua mão ao castigo (Lourenço foi condenado a morrer queimado vivo e Múcio, para punir-se fez queimar sua mão sobre um braseiro). Sendo livres para escolher, a estrada do dever zelosos seguiram. Mas, tal atitude é rara na humanidade. Se, prestaste bem atenção no que eu disse, viste que poderosas razões apresentei para teres suas questões resolvidas. Mas diante de ti vês elevar-se questão ainda mais complicada que sem auxílio não poderás resolver. Já te mostrei bem claramente que a ditosa alma não pode te enganar, pois está sempre na presença as Suma Verdade. Narrou Picarda que Constança fora “extremosa” no seu amor aos votos, e não “cautelosa” como eu disse o que parece uma contradição. Acontece que, durante a existência terrena há mais de uma circunstância em que, por receio a consequências maiores se praticam atos que a consciência não aceita. Foi por isso que Alemeom por compaixão ao pai, tirou a vida da própria mãe; por piedade tornou-se impiedoso. (Ver Pugatório XII – Alemeon filho de Anfiarau, matou sua mãe Eurífelis.) Fique, pois teu espírito convencido de que ao acontecimento a vontade anda unida, não havendo portanto desculpas para a falta cometida. A vontade absoluta é inimiga declarada do mal; mas quando ameaçada se retrai, temendo que sejam cometidos maiores males. Ao falar de Constança, Picarda referiu-se a vontade absoluta; e eu falava da outra vontade – a relativa – mas ambas estamos defendendo a verdade".
Aquelas palavras vindas da Fonte da Verdade esclareceram todas as minhas dúvidas; então exclamei:
“Ó do Primeiro Amante (de Deus) sublime amada! Ó bondosa senhora! Vossas palavras me encorajam, me iluminam, me estimulam, e aquecem a minha alma. Por mais que meu afeto por vós ao extremo se eleve, não é ele suficiente para vos agradecer plenamente; por isso, suplico ao Senhor que tudo pode, que preencha o que em mim falta! Não há nada que satisfaça ao espírito se esta Verdade ele não compreende e fora da qual nenhuma outra existe. E uma vez nela penetrada, a alma ali se fortalece e tranquila fica, qual a fera ao recolher-se em seu esconderijo. Nada proíbe ao ser humano buscar compreendê-la; se assim fosse, todos os esforço seriam vãos. Por isso, qual broto de arbusto a dúvida nasce ao pé da certeza; e assim nos leva de grau em grau até a sublime altura. Com toda a reverência que vos devo senhora, ouso pedir-vos que esclareça outra verdade que me está obscura: os votos rompidos pelo homem podem ser substituídos por outros com méritos diferentes, mas que se igualem em proporção, ao que foram rompidos?”

Beatriz me olhou. Tão refulgente e divino estava seu olhar que dele me desviei sentindo faltarem-me as forças; então quase prostrado, a fronte inclinei.
  

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O PARAISO - CANTO III

Na Lua, estão as almas daqueles que não cumpriram plenamente seus votos religiosos. Aparece ao Poeta a alma de Picarda Donati, que resolve uma sua dúvida sobre o contentamento dos espíritos bem-aventurados. Narra-lhe como foi violentamente tirada do mosteiro. Indica-lhe a ala da imperatriz Constância. Texto do Tradutor

"Ali vi rostos querendo falar comigo"

O Sol que em tempos passados fez meu peito arder de amor, (esse Sol é Beatriz) agora, aprovando e desaprovando meus conceitos, com argumentos mostrava-me a beleza da sublime realidade. Reconhecendo o erro do meu raciocínio e convencido da verdade, para ela ergui a fronte o mais alto que pude afim de isso lhe afirmar, mas fui atraído por tão impressionante visão que fez me esquecer inteiramente o que pretendia lhe dizer. Bem como em vidro transparente, ou à flor da água tranquila e límpida ao ponto de ver no fundo algo quase invisível como pérola sobre alva pele, assim aconteceu. Ali vi rostos querendo falar comigo; então admirando aquela fonte caí no erro contrário ao de Narciso; pensando que aquelas feições estivessem sendo refletidos por um espelho, rápido voltei-me para saber de quem eram aqueles rostos. Mas não vi ninguém! (Narciso vendo sua imagem refletida na água dela se enamorou, pensando tratar-se de outra pessoa. Dante caiu no erro contrário, pensando que a imagem na água fosse o reflexo de alguém, voltou-se para ver quem era). Então, minha doce guia que trazia no olhar o esplendor do santo amor, a sorrir me disse: “Não fiques admirado por me ver sorrir; a causa é teu novo engano. Na verdade teu pensamento anda trilhando por falsos caminhos, como claramente se percebe; por isso fiques sabendo que as faces que aqui vês são reais; e o que as trouxe para aqui foi o não cumprimento dos votos proferidos. Pergunta-lhes o que desejas saber, pois a luz que as conduz não permitirá que se afastem da verdade”.Então me dirigi àquela face que se mostrava mais disposta a falar; a princípio nervoso depois mais calmo, eu disse: “Ó espírito eleito que desfrutas as doçuras da vida eterna e que somente compreende quem as experimentou, grande favor me farás se me disseres teu nome e o motivo por estares aqui”.
Sem hesitar e sorridente explicou-me: “Não posso deixar de satisfazer ao teu desejo, porque temos que seguir a principal lei imposta por Deus a todos que aqui habitam que é a da caridade, a do amor. No mundo, fui virgem monja; e, se tua memória não falha verás que agora sou mais bela do que quando lá estava. Prestando bem atenção ao olhar-me, reconhecerás pelas minhas feições que sou Picarda. (Picarda Donati; monja da Ordem de Sta. Clara; irmã de Forese e de Corso; foi obrigada pela família a deixar o convento e a se casar com Rosselino della Tosa). Nossos sentimentos, que somente a inspiração do Espírito Santo os inflama e guia, elevam-se à maior perfeição ao cumprir as ordens que nos foi determinada. Estamos felizes aqui nesta esfera celeste que é a mais lenta de todas; fomos designados para este céu que parece ser inferior, uns pelo mau cumprimento de votos religiosos;  outros  pelo total esquecimento de tê-los pronunciados”.
Respondi-lhe: “Em vosso semblante refulge algo de divino que torna vossas feições diferentes do que foi quando estáveis na Terra. Por isso não fui rápido em reconhecer-vos. Porém, o que dissestes sobre vossa pessoa me ajudou a lembrar o que houvestes sido. Mas, dizei-me, mesmo sendo felizes aqui, não sentis o ardente desejo de subir ao mais alto dos céus e lá usufruir felicidade ainda maior?”.
Voltando o olhar para as companheiras sorriu docemente; e radiante de alegria como se envolvida no mais puro amor, respondeu-me: “Irmão, a caridade é a virtude que comanda nosso querer permanecer em constante harmonia com o amor divino; assim, desejamos somente o que possuímos e nada mais. Desejando ir mais alto do que estamos, seríamos rebeldes à vontade d’Aquele que decidiu neste lugar habitarmos. Em nós não pode surgir tal sentimento, que é virtude oposta à santidade. É condição para se ter a felicidade eterna, cumprir as ordens do Onipotente; aqui, os nossos e os Seus desejos tornam-se um único desejo. Cada parte refulgente do Seu e todo o reino, é governado pela vontade do Divino Rei que modela nossa mente com a Sua Lei. Nossa paz é adquirida ao mantermos obedientes aos Seus preceitos; Ele é o mar para onde todas as águas se encaminham e ao Seu comando, toda a natureza foi criada”.
Compreendi então que no Paraíso habita quem está em qualquer parte do Céu; e também, que a graça divina não é manifestada por igual, em todas as partes dos Céus. Mas, se de um alimento nos sentimos saciados, de outro o apetite permanece; então a ele buscamos e nos alegramos ao encontrá-lo. Assim fiz; expressando-me com palavras e gestos, quis saber qual o motivo que a impediu de cumprir os votos que fizera. Respondeu-me: “Em vida, foi perfeita em virtudes e elevados méritos e agora no mais alto dos Céus está, quem determinou (Santa Clara) as normas, vestes e véus com que a monja promete pertencer inteiramente ao Esposo que aceita todo voto que Lhe é consagrado por amor. Querendo seguí-la, ainda adolescente, submeti-me ao seu rigoroso regulamento e do mundo me afastando jurei estar sujeita aos seus preceitos. Contudo, pessoas cruéis, impelidas mais pela maldade do que a praticar o bem, tiraram-me da paz do claustro e somente Deus sabe qual foi o meu viver e quanto sofri! Veja esta alma que à minha direita resplandece com a maior intensidade que é possível aos que estão nesse nosso astro; o que eu narrei sobre mim, a ela se aplica. Tendo sido também monja, foi-lhe arrancado o santo véu que o voto lhe prendia à fronte. Tendo sido forçada a voltar ao mundo, que aos seus piedosos costumes ofendia, guardou sua alma fiel aos sagrados votos pronunciados. Essa que aqui resplandece, é Constança, a que deu ao Imperador da Suábia um herdeiro, cuja dinastia foi nele extinta”. (Constância, filha de Rogério - rei das Apúlias - e de Cecília; casada com Henrique VI e mãe de Frederico II) “
Tendo assim falado, pôs-se alegremente a  entoar a “Ave Maria”; e assim cantando, desapareceu diante dos meus olhos, qual pesado corpo que mergulha em águas profundas. Queria acompanhá-la com o olhar, mas, por desejo invencível atraído, eles se fixaram em Beatriz; mas era seu semblante tão resplandecente, que aquela intensa luz ofuscou-me os olhos.
               E pelo efeito daquele espetáculo maravilhoso, nada consegui lhe falar.

sábado, 20 de outubro de 2012

O PAR. CANTO II

Sobem à Lua. Exortação aos leitores. Dante pergunta a Beatriz se as manchas da Lua dependem da maior ou menor densidade do astro. Beatriz corrige o erro. Todos os astros são iluminados pela virtude que o primeiro móvel se difunde aos céus sobpostos. Na Lua a virtude é menor que nos outros céus.
Texto do Tradutor.
Ó vós que em frágil barca navegando, ansiosos por ouvir estais a seguir minha embarcação que entre Cantos velejando vai, voltai aos portos de onde haveis partido; o alto mar evitai porque se eu me perder podereis perder vosso rumo também. Ainda ninguém percorreu mares iguais ao que eu vou navegando. Inspira-me Minerva, Apolo me conduz e o rumo a seguir, indicam-me as Musas. (Frágil barca: pouquíssimo conhecimento; Dante fala aos leitores que não possuem preparo suficiente para diferenciar a realidade da fantasia; conhecimento necessário para compreender seu Paraíso). E vós, os raros entre os outros, que a tempo concentrastes a mente a esse Pão dos Anjos (ciência divina; na teologia = Deus) que ao espírito alimenta, mas, não sacia a quem ainda sobre a terra está, sem temor vossa nau levai ao extenso oceano seguindo nas águas a minha esteira, enquanto nela o seu sulco se apresenta. Ficareis mais atônitos do que Jasão ficara em Colcos quando, após ter semeado a terra surgiu gente guerreira. (Os argonautas, que se espantaram quando Jasão arando o campo com dois touros que expeliam fogo pelas narinas e semeando na terra os dentes do monstro que havia matado, surgiram do solo, guerreiros. = Ovídio, Met VIII).
O incessante desejo de buscar as alturas (buscar Deus) nos impulsionava. Beatriz olhava para o alto, eu a olhava; subia mais rápido do que a seta ao se desprender do arco indo em direção ao alvo. De repente fui atraído para algo maravilhoso, quase um diamante atingido pela luz do sol. Beatriz, conhecendo meus pensamentos voltou-se em minha direção e tão alegre quanto bela disse: “Agradecido, eleva teu pensamento a Deus, pois acabamos de chegar à primeira estrela” (à Lua). Senti-me como se estivéssemos cobertos por espessa nuvem brilhante sólida e polida qual diamante; no centro daquela pérola eterna penetramos como um raio de luz penetra na água que o recebe no seu interior sem abrir fenda. 
Se eu era corpo, aqui na terra não se poderia compreender como é possível que um espaço seja ocupado por outro espaço ao mesmo tempo, sem que um corpo penetre outro. (Tendo Dante um corpo sólido, portanto, um espaço ocupado, e sendo a lua igualmente sólida, portanto, um espaço também ocupado, como se poderia compreender ter Dante penetrou no corpo da lua, com a matéria - o corpo físico - unificada ao espírito). Esse prodigioso mistério despertaria em nós o desejo de ver a Suprema Essência que uniu a Natureza Humana com a Divina (Jesus Cristo). Ali a realidade se apresenta com a aparência daquilo que se acredita por força da fé, sem exigência de provas, considerando-a como verdade principal a que o homem se deve prender.
Então, comovido eu lhe disse: “Com o espírito devotado curvo-me humildemente perante Àquele que me tem distante do mundo dos mortais. Mas, explique-me o que são as manchas escuras que neste céu aparecem, fazendo com que na Terra criaram-se fábulas referentes a Caim”. (segundo uma crendice popular as manchas da Lua representavam Caim carregando um feixe de espinhos). Ela então sorrindo respondeu-me:
“A inteligência humana sempre erra quando não usa a chave da sabedoria para lhe abrir as portas do conhecimento. Em ti, correto seria não ficar admirado; pois, já tens noção de como pouco se aprende quando a inteligência busca apenas aquilo que os sentidos alcançam. Mas, dize-me: Que idéia, fazes sobre essas manchas?”.
Então lhe respondi: “Acredito que isso aconteça, por alguns corpos serem grossos (densos, isto é: onde a massa é compacta), outros finos (raros, isto é: onde faltam massas)”.
Ela então replicou: “Se ficares atento ao que te apresentarei bem claramente verás, que esse teu entendimento não corresponde à verdade. Na oitava esfera (oitavo céu) brilham muitos astros que se diferenciam uns dos outros pelo aspecto e qualidade da luz, por eles emitidos. Se a densidade, ou a raridade fosse a origem das sombras ou das luzes, todos os astros celestes possuiriam as mesmas propriedades e teriam aparências mais ou menos iguais. Para que existam variedades de aspectos (efeito), é inevitável que sejam procedentes de princípios formais diversos (causa); mas, de acordo com seu modo de pensar, todos os princípios da causalidade, menos esse que você acredita, deveriam ser destruídos; e também, se as manchas que aqui aparecem fossem causadas por falta de matéria lunar, em algum ponto deste planeta (da Lua) poderia se ver partes vazias, ocas, como se pode observar no corpo de um animal entre o músculo e a gordura; se assim fosse, por ocasião dos eclipses, sob os efeitos da luz, esses espaços vazios seriam bem visíveis. Mas não é o que acontece. (Se a Lua tivesse partes transparentes não haveria a possibilidade de se verificar o eclipse do Sol. Se as partes rarefeitas fossem transparentes, deveria haver o oposto delas, como num espelho, partes densas que impedem a transparência. Nesse caso último, porém os raios externos como espelho, deveriam refletir-se) Quanto a ideia de que o denso e o raro estão em camadas alternadas, poderei demonstrar que também está errada. A parte menos densa não sendo transparente, neste corpo deve haver um limite por onde a luz não possa ser atravessada e, sobre si a luz, bem como a cor, se tornará intensa. É o que acontece com o vidro quando o chumbo é colocado em um dos lados. Dirás que ai a densidade do chumbo, impediu a passagem da luz, podendo ser à maior distância refletida. Por ser o Sol fonte de toda a existência, dele poderás fazer uso como experiências: se de três espelhos, colocares dois a um intervalo de modo que o terceiro fique mais distante dos dois primeiros, estando uma luz colocada de forma tal que em todos eles esteja refletida, olhando-as, verás que, apesar da imagem refletida no espelho mais distante pereça menor, com igual intensidade a luz resplandece. Como pelo calor do sol o orvalho se derrete e se esvai deixando surgir o que ela ocultava, assim teu engano desapareça. Lá no Céu da Paz Divina (no Empíreo) gira a enorme força cuja virtude tem a capacidade de comandar tudo o que nele está contido, pois ela é a origem da vida. (O primeiro móvel que influencia os outros céus e situa-se acima de todos eles). No céu seguinte repleto de astros, aquela força ou ser se divide por várias naturezas distintas, mas que nela se encerra. Os outros Céus, um sempre abaixo do outro – por várias influências – dispõe de diferenças que lhes fornece tudo o que é necessário aos seus fins e conseqüências. Estais percebendo, pois que cada parte desse conjunto, segue divisões de espaço que não varia. O que abaixo acontece vem sempre do de cima. Já compreendeste como é seguro o caminho por onde deves seguir para chegar à desejada verdade; depois poderás atravessar o vau sem necessidade de guia. A atividade dos Céus desta forma revelada deve ser atribuída aos santos motores (aos anjos que agem em cada nível dos Céus) como ao artífice é atribuída a força do martelo. E o Céu que tantas estrelas no seu espaço movimenta e o faz belo, a imagem do Supremo Ser recebe, e nele a imprime como selo. E, como a alma que a humana argila atuando por todo o corpo, capacidades diversas lhe transmite, assim a Inteligência nos milhões de astros se multiplicando sobre sua Unidade a Sua benevolência, vês girando”.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

MINHA INTRODUÇÃO AO “PARAÍSO”

Queridos amigos seguidores e leitores:
Foi postado neste blog o “Canto XXXIII” do Purgatório que é o último da 2ª Parte da “Divina Comédia” – cuja interpretação minhas palavras não conseguiram transmitir o que foi criado pela minha imaginação.
A partir de agora darei continuidade, com a 3ª Parte: os Cantos referentes ao “Paraíso”.
Tal como Dante mas não o plagiando, suplico ao Ser Supremo o dom da Compreensão  para essa difícil pretensão. Todas as vezes que releio o que foi escrito sinto que as palavras ali colocadas não alcançaram o seu verdadeiro sentido por isso peço a todos vocês que soltem o pensamento deixando a criatividade completar o que não me foi possível fazer.
Desejo a todos boa leitura.
Ritta de Cássia Dantas

O PARAÍSO CANTO I
Invocando Apolo, o Poeta conta como do Paraíso Terrestre ele e Beatriz se alçaram ao Céu atravessando a esfera de fogo. Beatriz explica-lhe como possa vencer o próprio peso e subir. É atraído pelo invencível amor. Seguindo as teorias de Ptolomeu, Dante põe a terra imóvel no centro do Universo e, em redor dela, em órbitas concêntricas, os céus da Lua, de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de Marte, de Júpiter de Saturno, a oitava esfera, que é a das estrelas fixas, nona, ou primeiro móvel, e finalmente o Empíreo, que é imóvel. Transportado pela força que faz rodar os céus e pela luz sempre crescente de Beatriz, Dante eleva-se de um céu para outro, e em cada um deles aparecem-lhe os espíritos bem-aventurados que, quando vivos, possuíram a virtude própria do respectivo planeta.   
Texto do Tradutor


A gloria d’Aquele por Quem tudo foi criado penetra e resplandece em todo o universo sendo que em alguma parte com maior brilho e com menos brilho em outra.  No Céu onde Sua luz é mais intensa coisas maravilhosas vi, que explicar não sabe ou não pode  quem na terra está, porque ao querer relembrar as coisas divinas, a mente humana não consegue encontrar palavras que expresse tamanha perfeição.
Porém, os tesouros do santo reino, que meu entendimento pôde arrecadar será o tema do meu novo Canto. Faze bom Apolo (Deus da poesia) que neste meu empreendimento final eu esteja repleto de inspiração e  meus versos recebam o teu louvor. Até aqui, bastou-me um dos picos do Parnaso; agora, necessitado estou dos dois para chegar vencedor nesta proposta. (O monte Parnaso tinha dois cumes; num moravam as Musas com Baco; no outro, chamado de Elião ou Cirra, morava Apolo). Penetra em meu peito! Encoraja este que te suplica; concede-lhe a mesma força que usaste quando arrancaste de Mársias, a pele! (O satírico Mársias desafiou Apolo a quem tocasse melhor e foi esfolado pelo Deus). Quando, por divinal puder, na celestial morada dei entrada, a visão do esplendor celestial ficou gravada em minha alma; e para descrevê-lo exatamente como o vi se faz urgente, pois assim o assunto exige. Com teu auxílio, poderei receber de tuas mãos o merecido louro da vitória. São poucos os podem receber tal recompensa; apenas os que triunfam como guerreiros ou poetas. - Isso acontece por culpa da pequena vontade em querer lutar. A tríplice divindade exulta de alegria quando um ser humano deseja ardentemente ter sobre a fronte os gloriosos ramos de louro. Os grandes incêndios se iniciam por pequena faísca; acredito, portanto, que esta minha atitude servirá de estímulo aos poetas a buscarem em Cirra maior inspiração.
De vários pontos da terra a luz o Sol se apresenta a toda a criação, mas, com mais intensidade naquela parte onde quatro círculos se encontram em linha, formando três cruzes, (1°círculo: do horizonte = linha circular da terra, que limita nossa observação visual na qual o céu parece encontrar-se com a terra; 2º círculo: do equinócio = linha circular da terra perpendicular aos pólos, quando a noite e o dia, têm igual duração; 3° círculo: da eclíptica: = linha circular da órbita terrestre; 4°círculo: o do equador = linha circular máxima da esfera terrestre que a divide em dois hemisférios). Procedente de fortalecedora estrela e percorrendo livremente o caminho - estando a atmosfera limpa – pode essa luz dar consistência e forma à mundana cera (matéria terrestre). Dali (no hemisfério do purgatório) surgia o dia; daqui (no hemisfério terrestre) iniciava a noite; assim, enquanto um dos hemisférios branquejava e o outro as trevas o enegrecia, vi ao meu lado Beatriz  a olhar fixamente o Sol - qual raio que de si luz desprende refletindo outro raio que para as alturas retorna - como um peregrino ansioso por regressar. Águia alguma jamais firmara  tanto  o olhar na ofuscante luz desse astro! Essa atitude de Beatriz e o estímulo do seu olhar encorajaram-me a imitá-la; e o fiz mais do que é permitido a qualquer ser humano. Muito do que na Terra é proibido, no Paraíso é ofertado à raça humana, pois fora por merecimento, prometido. Fitar o Sol por muito tempo, não pude; mas o suficiente para vê-lo brilhar no espaço a lançar faíscas qual ferro em brasa; nunca imaginei que algum dia pudesse ver o Sol a resplandecer no céu, com outro, como se Deus tivesse criado um segundo sol em um só espaço. Beatriz mantinha o olhar absorvido na resplandecente luz. Mas, os meus que do Sol os desviei, extasiados imobilizaram-se no seu semblante. Contemplando-a, meu ser se transformou, qual ocorreu com Glauco quando, ao comer poderosa erva marinha se tornou igual aos Deuses do mar. Não podendo explicar claramente o que seja essa “transformação” a palavra seja suficiente a quem, recebendo tamanha graça, o experimente. Ó Deus! Por Tua Graça fui elevado e bem sabias que meu corpo ainda estava ligado ao meu espírito; mas, enquanto conduzido aos Céus por entre os astros, meu pensamento se deteve na harmonia com que os governa. Vi que grande parte do céu estava banhada pela luz do Sol. Na Terra nunca, os rios nem as chuvas formaram lago igual. Aquelas luzes, aqueles comoventes sons que jamais havia escutado, despertaram em mim intenso desejo de saber de onde viam.

E Beatriz que via no meu íntimo sentimentos que só eu conhecia, para me acalmar o ânimo agitado, sem que eu tivesse pronunciado uma só palavra disse: “Teu espírito se perde em falsa imaginação; se assim não fosse, estarias vendo o que não vês. Te enganas ao acreditar que estás sobre a Terra, O raio não desce para a terra com tanta velocidade como tu que para o céu estás subindo”.
Se com suas explicações essa dúvida desapareceu, a voz seguida pelo riso outra dúvida maior confundiu-me o entendimento. Então eu lhe disse: “Minha confusão diminuiu; mas agora o que mais me surpreende, é sentir como vou atravessando esses corpos leves” (corpos leves: Dante se refere ao ar e a luz). Ouvindo-me, Beatriz suspira ternamente e me olha com piedoso semblante de mãe que orienta ao filho: “Toda a criação, conforme a condição que lhe impõe a natureza, mantém entre si constante ordem; essa é a semelhança existente entre o universo e Deus. Um espírito elevado percebe nele, claramente, a marca da perfeição divina, finalidade suprema que essa lei busca. (A lei da Ordem Universal). Percorrendo diferentes caminhos pelo vasto mar da existência, cada qual segue os instintos que Deus lhe concedeu. Por eles, o calor consegue alcançar a Lua; por eles, os corações dos mortais pulsam e a terra continua em movimento. O poder dos instintos não atua somente sobre os seres irracionais qual impulso do arco sobre a flecha, mas também sobre os que receberam o dom da inteligência e da gratidão. Tudo em perfeita ordem o Onipotente Criador, com sabedoria, mantém o céu sempre aquietado, onde gira o que vai com maior velocidade (mantém o céu imóvel, isto é: parado, embaixo do mais veloz dos céus). Para lá, como o arco a um ponto determinado, a poderosa força desse arco impulsiona a flecha do amor divino em direção aos que, esse amor busca. Mas, como a maior parte das vezes, rebelde, a forma não responde a perfeita intenção da arte porque a matéria teima em não executá-la, assim o ser humano que foi criado para segui o bem, tendendo a se afastar desse caminho, poderá desviar-se para sempre. E se falsos prazeres, desvia aquele impulso do divino, qual raio se desprendendo de nuvem rapidamente das alturas cai. Portanto, não se surpreenda por estar sendo elevado; como é natural que as águas do alto monte desçam para o vale, para o mundo estrelar estás subindo; para ti espantoso seria se não subisses, pois estás completamente livre de impedimento. A chama não fica imóvel sobre a terra”
               Após assim dizer, voltou novamente o olhar para o firmamento.


sábado, 22 de setembro de 2012

O Pug - CANTO XXXIII


Beatriz anuncia com linguagem misteriosa, que brevemente aparecerá quem libertará a Igreja e a Itália da servidão e da corrupção. Impõe-lhe que escreva o que viu. Pede depois, a Matilde que o mergulhe nas águas do Rio Eunoe. Dante, depois da imersão, se sente mais forte e disposto a subir às estrelas.
Texto do Tradutor. 

“Deus, venerunt gentes”, (Salmo 78 no qual Davi lamenta a contaminação do Templo de Jerusalém: “Senhor as nações entraram no teu domínio e contaminaram o Templo”), alternando-se em dois coros e com os olhos lacrimejando cantaram as ninfas em suave melodia.  Beatriz ouvia; mais dolorida do que ela estava somente Maria, ao pé da Cruz. Quando lhe foi possível elevar a harmoniosa voz, de pé entre as formosas virgens com faces incendiadas por tão santo ardor, disse-lhe: Modicum, et non videbilis me, (“ Pouco tempo passará e não me vereis”, João;XVI,16) amadas irmãs, et interum,”continuou –   “modicum et vos videbitis me!” (“e novamente, pouco tempo passará e me vereis”. Provavelmente referindo-se ao pouco tempo que a Santa Sé teria ficado em Avinhão.) Depois, fazendo com que as sete ninfas se colocassem à sua frente, acenava a mim, a Matilde e ao Poeta para que a acompanhássemos. Assim íamos. Acredito que não havíamos dado dez passos, quando seu olhar se encontrou com o meu; então, com tranquilidade me disse: “Chegue mais perto, pois quero falar contigo se estiveres disposto e me escutar”. Assim que me  coloquei ao seu lado, ela continuou: “Irmão, por que não fazes a pergunta que tantas desejas, já que estás ao meu lado?” Fiquei, como aquele que falando ao seu superior e tímido se sentindo apenas balbucia, disse com voz confusa e entrecortada:"Conheceis bem, senhora, tudo quanto desejo saber e o que me seja necessário conhecer”.
E ela continuou: “De agora em diante, deixa o temor e a vergonha; estando ao meu lado, pára de falar como quem está sonhando. O carro que foi profanado pelo dragão, já  não está mais ferido. O castigo que Deus imporá aos criminosos não será esquecida através da sopa. (Segundo uma lenda, o culpado que em sinal de expiação, tomasse sopa sobre o túmulo do assassinado, durante nove dias, não sofreria condenação.) Não faltarão ambiciosos herdeiros da águia que cobriu com suas penas o carro tornando-o monstro, depois presa fácil. Olhando o futuro vejo o que os mais próximos astros anunciam, sem que nada impeça ou modifique o que está  por vir. Profetizam  eles que o Céu enviará um “quinhentos, dez, cinco” para punir a corrompida e o gigante. (DXV, isto é um chefe, um capitão enviado por Deus, o qual punirá a Cúria Romana e o rei de França). O que estou expondo é enigmático é obscuro e talvez não o entendas, como aconteceu com Temis (que o decifrou de forma obscura, a Deucalião que a foi consultar) e a Esfinge (que propôs o enigma a Édipo) e contudo, os fatos o farão compreender; assim como aconteceu com Náiade, (Édipo que solucionou o enigma) sem contendas, darão a chave do enigma sem causar dano ao trigo e ao gado. Que isto fique gravado em tua memória e estas mesmas palavras, repete aos vivos que na ansiedade em buscar os prazeres terrenos, intranquilos chegam ao fim da vida. Narra-lhes a aflição que sentistes ao veres o estado em que ficou a árvore, quando sofreu dois espantosos ataques. E avisa que todo aquele que mutila ou mata a sagrada planta, afronta a Deus que a criou perfeita, somente para Sua glória. Na verdade, ousadamente o ofende. A primeira alma (Adão esperou durante cinco mil anos a vinda de Jesus Cristo, que tomou sobre si o seu pecado) por ter experimentando o fruto da desobediência, esperou gemendo durante cinco mil anos por quem tomou sobre si, as culpas do seu pecado”.
“Se não consegues compreender a única razão porque tem a árvore tão alta e tão larga copa, é porque tens o espírito a dormir. Se a satisfação produzida pelos pensamentos inúteis como as águas Elsa, (confluente do rio Arno) não tivesse produzido efeito sobre sua mente tornando-a escura qual suco de amora, terias compreendido; o que te expliquei já foi suficiente para compreenderes o justo ensinamento que Deus deixou na velha árvore. Como a luz de minhas palavras te confunde porque o entendimento não permite ver o efeito que isso causa sobre a culpa, quero que guarde na memória uma comparação: as palmas que enfeitam o bordão do peregrino lembram que ele deve regressar”.
Respondi-lhe: “Vossas palavras ficarão gravadas em minha memória qual cera conservando a marca impressa pelo carimbo. Mas, porque vossas palavras se elevam com tamanho excesso que não consigo alcançá-las?”. E ela continuou: “Veja, portanto, em que pervertida escola tens cursado, pois seus ensinamentos não desenvolverem em ti a capacidade de alcançar o sentido das minhas palavras;  teu caminho está mais distante do divino, do que a distância existente entre a terra e o céu”.
Respondi à minha sublime amada: “Não me lembro de ter me afastado das vossas leis; a vigilante consciência, disto não me acusa”. “Possível é que estejas enganado” - respondeu-me a sorrir – “não te recordas que ainda há pouco, bebeste do Letes a água e de acordo com o dito popular, a fumaça é sinal de fogo. Que tua vontade andou perdida no erro, teu esquecimento demonstra isto seguramente. De agora em diante o sentido de minhas palavras serão mais claras para ti”.
Com passo mais lento e brilho mais intenso o Sol já atingia o círculo que divide os climas, tornando-os diferentes, (era meio-dia; o Sol atingia o círculo imaginário do equador) quando as damas, qual guia que indo à frente da tropa pára de andar e disfarçado espia, caso se anuncie alguma novidade, assim pararam. Haviam chegado a um lugar de espessa sombra parecido com os frios bosques alpinos de árvores verdejantes e troncos escuros e pareceu-me ver não muito distante delas, brotando da mesma fonte o Tigre e o Eufrates e em seguida separando-se lentamente, como sendo dois amigos. (O Letes e o Eunoe; pareciam esses dois rios com o Tigre e o Eufrates, pois nasciam na mesma fonte e depois se afastavam aos poucos, um do outro).
“Ó glória! Ó esplendor da humanidade! Dizei-me que água é essa que corre dividida depois de sair de uma mesma nascente!” Disse-me então Beatriz, “Deve essa pergunta ser respondida por Matilde”. Então me respondeu a dama: “Já estive lhe explicando tudo! A lembrança na memória se apagando esse efeito não deve ter vindo do Letes”.
E Beatriz continuou falando a Matilde: “Talvez a falta de interesse pelas coisas belas e maravilhosas pode ter perturbado sua mente fazendo com que a compreensão se torne difícil. Eis as águas do Eunoé; nele imergindo-o seu coração adormecido se reanimará”.
A alma nobre que à obediência jamais rejeita faz do querer do outro o próprio querer mesmo através do simples sinal. Matilde me conduziu para junto de Estácio dizendo-lhe com altivez e majestade: “Segue-o também!” Caro leitor, ao ser mergulhado naquelas águas o sabor do doce licor que experimentei não desapareceu do meu paladar; e eu o descreveria em texto especial se ainda tivesse espaço suficiente nesta página; mas como as páginas destinadas a este Canto já foram todas ocupadas, a arte da poesia impede de satisfazer esse desejo. Por isso canto assim:
Como da plantas as flores renovadas
Mais frescas na haste mostram-se mais belas,
Puro saí das águas consagradas
Pronto a me elevar às lúcidas estrelas!


FIM DA 2ª PARTE

domingo, 12 de agosto de 2012

O Purg. - CANTO XXXII

Dante olha com amor a Beatriz. No entanto o carro, seguido pela procissão dos bem-aventurados se move em direção a uma árvore elevadíssima e despida de folhagem. O Grifo ata o carro à árvore e esta logo cobre-se de flores. O Poeta adormece. Ao despertar vê Beatriz rodeada das sete damas, sentada ao pé da árvore. Acontecem depois, no carro, fatos maravilhosos que causam ao Poeta, surpresa e medo. Texto do Tradutor.

"Onde está Beatiz?..."

Com ansioso olhar saciava eu a sede que desde aos dez anos me abrasava a ponto de desaparecer dos meus outros sentidos qualquer ação. Como entre muralhas, meu olhar mergulhado no seu sorriso e nos laços que outrora a ela me prendiam, estavam indiferentes a tudo. Fui tirado repentinamente desse êxtase pelas vozes das três damas que ao me lado diziam: “Tens a mente contemplativa demais; observe ali!” Virei-me, mas nada conseguia ver, pois tinha os olhos ofuscados pelo mesmo efeito causado a quem ao sol diretamente olha. Quando a pouca luz fiquei acostumado, - digo pouca luz, comparando ao deslumbrante clarão do olhar de Beatriz - vi que para a direita voltava o triunfante exército, estando à frente os sete candelabros e o flamejante sol (Beatriz). Como esquadrões que antes de retornar erguem a bandeira, mas não prosseguem, e apenas girando mudam de direção, assim a celestial milícia seguiu desfilando, antes que o carro começasse a se mover. Pelas damas, cada roda estava protegida; e o Grifo a santa carga levando, apenas agitava as plumas levemente. Aquela que pelo rio me arrastara, Estácio e eu acompanhávamos o carro pelo lado onde à roda dá a menor volta. Íamos caminhando pela extensa floresta que solitária era, por culpa daquela que acreditou na serpente. Pelo ritmo dos cânticos regulávamos nossos passos. Tínhamos caminhado à distância de três vezes uma seta disparada, quando Beatriz desceu do carro; e murmurando, o santo cortejo disse: ”Adão!” E todos se aproximaram de uma árvore totalmente desprovida de flores e folhas; (a árvore do bem e do mal, cujo fruto Adão comera; pelo que foi expulso do Paraíso Terrestre) seus ramos eram mais longos à medida que eram mais alto; prodígio que deveria causar espanto aos próprios índios acostumados com grandiosas árvores. Ao redor daquele enorme tronco, cantou a procissão: “Glória a ti ó grifo, que por estares isento de culpa não provaste o doce sabor de seus frutos, que causou tanta dor e tormento”. E o grifo respondeu: “Assim, justo é que permaneça para sempre onde está”. Depois, voltando ao carro que fora conduzido pela floresta, levou até ao velho tronco que dele faz parte, deixando nele atado.

Quando, após o luminoso signo dos Peixes o Sol surge poderoso juntando seus raios aos dele, antes mesmo de ter com a estrela se encontrado, espalha sua brilhante luz sobre as plantas fazendo, rapidamente, brotar as flores com suas cores renovadas, assim subitamente cobriu-se de flores aquela seca árvore, com variações de cores entre o rosa e o violeta, formando abundante copa. Então, um cântico escutando como na Terra foi cantado, não pude resistir a tão suave melodia. Se eu pudesse narrar como se fecharam os olhos do impiedoso Argos ao ouvir o doce cântico Sírius, (como adormecendo se fecharam os olhos de ao ouvir o canto de Mercúrio a respeito de Sírius) e por este demasiado sono alto preço pagou, e me visse assim nesse estado de profunda sonolência, julgaria ter sido igual; mas julgue-o quem souber qualificá-lo.

Passo a narrar então, do momento em que fui despertado por intenso fulgor ao mesmo tempo em que ouvia dizer: “Desperta! Que fazes?” Como João, Pedro e Tiago foram levados a ver se cobrir de flores a macieira cujo fruto é oferecido nas bodas eternas e aos anjos extasia, e depois da prostração fortificaram-se ao ouvir a voz que despertou sonos mais profundos; e ao se reanimar perceberam o Mestre acompanhado de Elias e Moises enquanto tinha as vestes iluminadas, (como os apóstolos João, Pedro e Tiago, ao assistirem à transfiguração de Jesus Cristo no monte Tabor e ao vê-Lo em companhia de Moisés e Elias, desmaiaram, e despertando depois O viram em sua forma natural havendo os dois profetas desaparecido), assim eu; ao ser despertado por forte esplendor olhei ao redor e vi próximo ao rio, sobre a relva e as flores, a dama que me guiou até ao bosque. Envergonhado, perguntei-lhe: “Onde está Beatriz?” Matilde me respondeu: “Vês! Está sentada à sombra da renovada árvore, sobre as raízes e rodeada pela sua corte. Seguindo o grifo, todos os outros ao Céu subiram, acompanhados pela mais doce e sublime canção”. Não sei dizer se ele continuou falando, pois tinha diante dos meus olhos, aquela em quem meus pensamentos mergulharam. Sentada sobre o abençoado chão, sozinha, como se estivesse ali guardando o prodigioso carro que o grifo deixou amarrado ao velho tronco. Ao seu redor formando lindo círculo, estavam sete ninfas que seguravam os candelabros, ficando assim protegidos do Austro ou do ruidoso Aquilão (Ventos fortes e perigosos).

“Permanecerás nesse bosque por pouco tempo, pois irás comigo à morada eterna, essa Roma onde Cristo reina. (O Paraíso). Observa bem o carro, e atento a cada acontecimento guarda-o na memória, para depois ser descrito, e ao mundo apresentado”. Assim falou Beatriz; e tendo eu posto aos seus pés o entendimento e o querer, para o carro voltei o olhar e o pensamento.

Vindo dos longínquos extremos do espaço com tanta rapidez não rasga o raio a espessa nuvem, como pelo meio da alta ramagem destruindo casca, folhas e flores, surgiu feroz águia (A águia simboliza o Império Romano) lançando-se contra o carro, que pelos golpes tomba, qual navio atingido por fortes ventos e ondas. Em seguida vi uma raposa como que enlouquecida pela fome, lançar-se para dentro do carro. (A raposa simboliza as que ameaçavam a Igreja.) Acusando-lhe a vida criminosa Beatriz, dali expulsou-a; e a raposa fugiu com tanta velocidade quanto era a sua magreza. Depois de ter atacado o carro, a águia retornou por onde havia descido deixando nos assentos do carro grande parte de suas plumas. (Provavelmente Dante se refere ao poder temporal concedido por Constantino à Igreja de Romana.) E, igual a gemido que no peito a dor produz, ouvi uma voz vinda do Céu que dizia: “Ó minha barca, que péssima carga te impuseram agora!” Então, pereceu-me ver que por entre as rodas a terra se abria dela surgindo terrível dragão, que com o ferrão de sua longa cauda perfura o carro; em seguida esticando e retorcendo-a arranca o fundo do sagrado carro, e sai se arrastando, igual a terrível serpente. Como em terra fértil renasce a relva, assim o que restou do carro cobriu-se das plumas da águia, talvez ali deixadas com a pura intenção de protegê-lo. Igualmente se cobrem com as plumas o leme e as rodas, mais rápido do que um suspiro para chegar aos lábios. E em vários lugares daquele santo carro, assim transformado, sugiram cabeças; três no leme e outras quatro estavam colocadas uma em cada canto. As três primeiras tinham chifres como os de boi; As outras possuíam apenas um chifre. Monstros iguais jamais foram vistos. (Nesta descrição Dante imita as do Apocalípse e pretende simbolizar os funestos efeitos provocados pelas riquezas oferecidas à Igreja. As sete cacças do monstro simbolizam os sete pecados capitais originados pela corrupção). Em pé sobre o carro qual rochedo em alta montanha, estava uma meretriz nua (a Cúria Romana) cujo sensual olhar, ao redor volvia. E como para que não pudesse ser dali arrebatada, ao lado estava um gigante, com quem trocava indecentes beijos. E a torpe amante requebrava os olhos para mim; e o barrigudo gigante percebendo suas insinuações, feroz a espancava da cabeça aos pés. Depois, incendiado de ciúme e ira retirou-a do carro e para o bosque a conduziu tão depressa, que rapidamente desapareceram a prostituta e o mostro infame.