O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

sábado, 28 de julho de 2012

O Purg. - CANTO XXX

Acolhida festivamente pelo anjos e pelos bem-aventurados, desce do Céu Beatriz (a divina sabedoria) e pousa no carro. Nisto Virgílio (a a humana sabedoria) desaparece. Ela dirige-se a Dante e lhe exproba os seus desvios. Dante chora e os anjos se compadecem dele. Beatriz, dirigindo-se a eles, expões mais particularmente quais foram as suas faltas depois da sua morte. Texto do Tradutor

In te Domine, speravi”

Quando o setentrião do primeiro Céu - o qual permanece sempre visível e não conheceu outro nevoeiro senão a da culpa fazendo com que, ali, cada um esteja ciente do seu dever a cumprir, assim como o setentrião do mundo é guia permanente aos navegantes quando procuram um porto seguro - parou a santa procissão que seguia acompanhando o Grifo voltando o olhar para o carro, símbolo da paz (os sete candelabros, símbolos dos sete dons do Espírito Santo, que habitam o primeiro Céu – o Empíreo - são comparados com as sete estrelas da constelação da Ursa Maior chamadas de setentrião e sevem de guia aos navegantes que ao chegarem ao porto param, cientes do dever cumprido); e um entre eles, como se fosse arauto do Céu, cantou por três vezes Veni, sponsa, de Líbano! (Convite do esposo a esposa, no Cântico dos Cânticos, de Salomão). E os outros respondiam em coro. Então, como no dia do Juízo Final os eleitos irão ressurgir e com voz vigorosa entoarão louvores, assim uma multidão de Anjos surgiu do carro entoando ad vocem tanti senis, Benedictus qui venis! E lançando flores ao redor do carro: Manibus, o date, lilia plenis! (Espalhai lírios as mãos cheias).

Já vi o brilho resplandecente do amanhecer tingindo de rosa afogueado uma parte do céu enquanto em outra parte totalmente azul o sol aparece envolto em leve névoa permitindo assim que se possa olhar o seu esplendor. Deste mesmo modo vi uma nuvem de flores lançada por mãos de anjos que se erguia do carro e a ele mansamente retornava exalando agradável perfume; e através dessa névoa de flores pude perceber que ali estava uma linda mulher coroada de ramos de oliveira, envolta em um manto verde tendo as vestes da cor da chama do fogo .

E meu espírito que jamais presenciara tal encanto deixou-me extasiado e como que petrificado, depois trêmulo de espanto diante daquela maravilhosa visão. Mas, mesmo sem que as feições se apresentassem aos meus olhos, meu espirito sentiu o poderoso efeito, pela força oculta do antigo amor que me dominou nos primeiros anos da minha existência quando as potências da alma avassala e vence. (Dante se apaixonou por Beatriz quando tinha a idade de 9 anos).

Então, igual a uma criança correndo aos braços da mãe se a dor ou o medo ameaça-lhe a inocência, rapidamente me dirigi a Virgílio. Pensava em dizer-lhe: “Em minhas veias, cada gota do meu sangue se agita e queima nas chamas do antigo amor!” Mas, oh! Virgílio havia desaparecido! Virgílio, o doce e amoroso pai! Virgílio, a quem confiei minha salvação Ao perder este magnífico lugar Eva não derramou tantas lágrimas como as que no meu rosto se espalharam e milagrosamente me purificaram.

“Não fiques tão aflito por Virgílio ter-se ido. Não te entregues agora ao pranto, ó Dante. Para dor maior, deves estar preparado”. Como faz o hábil almirante, quando nas difíceis manobras examina a nau e cuidadoso observa a ação dos seus marinheiros, assim fiz voltando-me após ouvir meu nome; e aqui deixo registrado tal como foi pronunciado; ao percorrer com o olhar todo o lado esquerdo do carro, vi a mesma dama que estava envolta em véus em meio ao divinal cortejo, do outro lado do riacho tendo o olhar para mim voltado. Apesar de ter somente a fronte coberta pelos ramos de oliveira tão agradáveis à Minerva, não se podia ver-lhe a face; mas, com a soberana altivez que apresentava, desta forma prosseguiu; porém, o que mais queria atingir, guardou para o final. Continuou: “Olha! Sou eu, sim! Estás vendo Beatriz! Como ousaste subir a este monte sabendo que este lugar é designado somente aos ditosos?”

Baixando o olhar às águas puras do rio, vi minha imagem ali refletida; rapidamente desviei o olhar para um lado, tanto a vergonha me queimava as faces. Beatriz pareceu-me com mãe que repreende ao filho em tom magoado, porque se torna amarga ao castigado, a piedade que o pune. Ela então se calou e a límpida voz dos anjos entoou: In te Domine, speravi” mas após pronunciar “Pedes meos”, silenciou. (Salmo XXX; até as palavras “pedes meos”, exprime o arrependimento e a esperança na misericórdia de Deus). Nas altas montanhas da Itália quando atingidas por fortes ventos, o gelo se acumula entre as árvores; depois, ao quente sopro do vento que do sul procede se derrete e escorre como caudaloso rio. Assim fiquei enregelado e como que paralisado; mas, ao ouvir o angelical cântico pertencente às esferas eternas e sentindo nesse cântico mais compaixão do que se houvesse dito “Senhora, porque tão severamente o repreende?”, no meu peito o gelo se derrete transformando-se em pranto e soluços.

Ela então de pé sobre o carro voltou-se para a direita e disse aos piedosos espíritos que lá se encontravam: “Vós que vigilantes estais por toda a eternidade e a quem nem o sono ou noite podem vos impedir de ver o que acontece no mundo, minha resposta vai dirigida àquele que agora derrama lágrimas; a sua culpa seja medida pela dor que ele sente. Não é pela ação do astro presente no momento em que se deu início à vida que cada criatura é conduzida a um determinado fim e sim pela abundância de graças divina que são lançadas sobre nós, de tal altura, que não pode ser alcançada nem pela nossa mente. Este homem, na aurora da sua existência, foi ornado de tantas graças divinas, que poderia ter alcançado o mais alto grau em virtudes. Porém, mesmo em terreno bom, má semente for lançada, ali ervas daninhas irão crescer. Junto a mim, conservou-se puro e sereno. Meu olhar de menina o conduzia por caminho seguro e ameno, tanto que no início da segunda idade e quando em espírito fui transformada, a beleza e a virtude em mim cresceram, mas para ele não tive nenhum valor, tanto que me esqueceu, atraído por outros encantos. Seduzido por fingidas imagens fugiu do verdadeiro caminho enveredando-se por trilhas tortuosas, onde jamais se alcança o que se espera. Em vão procurei guiá-lo através de sonhos, de insônia mostrando-lhe o caminho do bem; completamente cego, seguiu pelo caminho errado. Sentindo o fracasso de todo meu esforço, para salvá-lo do perigo eterno quis que ele conhecesse o reino dos miseráveis. Foi com esse propósito que desci até ao mundo dos mortos e dirigindo-me ao espírito que lhe serviu de guia, fiz o meu eterno e lacrimoso pedido. As leis divinas teriam sido desrespeitadas se ele tivesse atravessado ou provado as águas do Letes, sem pagar com prantos e dores o preço da sua culpa”.

domingo, 8 de julho de 2012

O Purg. - CANTO XXIX

Da floresta aparece um súbito clarão. Dante vê avançar uma procissão de espíritos bem-aventurados em cândidas vestes, e, no fim da procissão, um carro puxado por um grifo. Ouve-se um trovão; o carro e o grifo param. Texto do Tradutor.

"Escuta irmão, e procura ver!"

Depois de ter falado de tudo sobre aquele maravilhoso lugar, qual dama enamorada encerra o assunto cantando: “Beati quorum tecta sunt peccata!” (Salmo XXXI – Bem-aventurados aqueles cujos pecados são perdoados.) E semelhante a uma ninfa que se afastando do bando pela relva sozinha vai, ora buscando o sol ora evitando-o, segue lentamente pela margem do riacho; Resolvi segui-la regulando meus passos pelos seus. Tínhamos andado apenas uns cinquenta passos quando aquela água cristalina curvou-se no seu leito, e sem saber como, me encontrei no lado oposto em direção a nascente. Pouco havíamos avançado naquela direção quando, voltando-se a mim, ela disse: “Escuta irmão e procura ver”

Foi então que intensa luz refulgiu por todo o imenso espaço da floresta. No momento julguei tratar-se de um relâmpago; mas após o relâmpago a luz não permanece e aquele fulgor mais e mais aumentava. E eu me perguntava: “Que maravilha é esta?” Pelo espaço iluminado se espalhava dulcíssimo som musical, e eu observando a prontidão com que céus e terra obedeciam a Deus, consumido em zelo repreendia a atitude de Eva, pois sendo ela a origem da vida humana violara esse preceito divino rompendo os véus da humildade. Se houvesse permanecido fiel, as ordens divinas respeitando, mais cedo e por mais tempo, teria eu gozado daquela divina morada e suas indescritíveis delícias. (Uma observação da intérprete: Até Dante culpa a nós mulheres pelos seus fracassos?)

Estava assim, enlevado, tendo a alma transportada e abrasada nos mais vivos desejos da eterna felicidade, quando vimos que sobre as ramas o ar tornava-se intensamente brilhante, e o som musical transformava-se em suave melodia. Ó Musas, inspiradoras da poesia! Se por vós padeci fome, frio e sono, agora, rogo-vos proteção! Que Hipocrene (a fonte) lance suas inspiradoras águas sobre mim, e que Ucrânia (musa da Astronomia) com seu coral me inspire para que possa eu cantar em versos, tudo quanto aqui vejo.

Tive a impressão de ter visto um pouco mais além, sete árvores, que pela distância pareciam ser de ouro. Mas quando me aproximei, quando a evidência provou-me quanto a semelhança engana dando das coisas falsa idéia, vi distintamente tratar-se de candelabros e os versos do canto eram aclamações, louvores. (No Apocalipse, São João vê sete candelabros de ouro, símbolos dos sete sacramentos e dos sete dons do Espírito Santo). Cada um, resplandecia mais do que brilha no céu a luz da Lua no meio da noite no seu maior crescente. Com o espírito repleto de admiração, me voltei para Virgílio; ele me encarou; o seu semblante também revelava espanto. Voltei a olhar novamente para o candelabro que continuava seguindo solene e lentamente. Uma noiva dirigindo-se ao altar teria caminhado com mais presteza. Então a dama me disse: “Por que presta atenção somente às luzes a ponto de não perceberes o que vem depois delas?” Começo então a ver que acompanhavam os candelabros pessoas vestidas de branco. Alvura igual àquelas vestes, na Terra nunca vi. À esquerda, as águas do riacho resplandeciam de luzes; do lado onde eu estava minha imagem se refletia na água como em espelho.

Estando tão próximo das luzes, separado apenas pelo riacho, maravilhado parei para ver melhor. Então vi que ao passar, esse clarão deixava após si faixas de luzes coloridas que se agitavam como bandeiras desfraldadas, desenhando no ar sete listras de cores bem definidas, iguais as que tingem o cinto de Delia ou figuram no arco do Sol. Cada candelabro ia um após o outro de modo a perder de vista, havendo entre cada um deles, se não me engano nos cálculos, a distância de dez passos. Embaixo de tão belo dossel seguiam, emparelhados, vinte e quatro anciãos, cujas frontes eram coroadas por brancos lírios. (Ver: Apocalipse; IV,4 = símbolo dos vinte e quatro livros do Velho Testamento). Cantavam juntos e bem compassados: “Bendita sejas entre as filhas de Adão! Benditas sejam tuas sublimes virtudes!” Chegando bem em frente à margem guarnecida de flores e fresca relva, a santa grei desapareceu; e como ocorre no céu quando a luz de um relâmpago é logo seguida por outro, assim sugiram quatro animais (Símbolo dos quatro Evangelhos) com as cabeças entrelaçadas com verdes flores. Cada qual tinha seis asas, cujas plumas eram adornadas de tantos olhos quantos possuía Argos (monstro mitológico, que possuía cem olhos) e com todos eles enxergava, ao mesmo tempo. Para descrevê-los, caro leitor, não me faltam rimas e sim tempo, por isso nesse assunto não posso me alongar. Contenta teu desejo lendo o texto de Ezequiel, (profeta de Israel, autor de um dos livros do Velho Testamento = ver capítulo I, 4) que os viu descendo do norte como vento, como nuvem, como bola de fogo. Do mesmo modo como ele os descreveu os viu, sendo que a diferença estava nas asas; agora, deixando o que descreveu Ezequiel, sigo João. (Apocalipse; IV, 6-8) Entre os quatro animais, rodava resplandecente, sobre duas rodas, um triunfante carro puxado por um altaneiro grifo; (o carro: a Igreja Católica; as duas rodas simbolizam o Velho e o Novo Testamentos; e o grifo, animal mitológico metade leão metade águia, simboliza Jesus Cristo com as duas naturezas: Humana e Divina.) Com as asas estendidas mostrava o grifo todo o seu vigor, não alcança a vista seu ponto mais alto; os pés, como de ave, são de ouro. No restante do copo de leão o branco e o rosa se misturam. Mantendo-se sob a faixa de luz colorida do meio e as outras, sendo três de cada lado, a nenhuma delas tocando ou prejudicando, majestoso seguia. Roma nunca viu maravilha igual. Nem mesmo por ocasião do triunfo do Africano ou de Augusto. Diante de tal esplendor, o próprio carro solar, parecia uma simples lanterna quando mal guiado estava sendo, e foi incendiado por Júpiter que fez justiça, atendendo as súplicas dos horrorizados humanos. (Fetonte tentou guiar o carro do Sol, porém pelas súplicas dos humanos foi fulminado por Júpiter).

À direita, dançando e acompanhando o carro, apareceram diante dos meus olhos três damas (as três virtudes teologais: Fé, Esperança e Caridade). Uma delas era tão vermelha como se fosse envolvida em chamas (a Caridade ou o Amor); a segunda resplandecia tão verde como se fosse feita de bela esmeralda (a Esperança); a terceira era tão alva que diante dela a neve pareceria escura (a Fé). Ora a branca, ora a rubra se alterna no dirigir a dança; o cantar de uma mantinha o ritmo da outra. À esquerda, outras quatro vestidas de vermelho, (as quatro virtudes cardeais: Justiça, Fortaleza, Temperança e Prudência) participavam também da festa; uma delas comandava as outras e possuía na testa, três olhos. (A prudência tem três olhos. - Como diz Sêneca, vigia o presente, prevê o futuro e lembra do passado.) Em seguida vinham dois anciãos (São Lucas e São Paulo) se vestiam de modo diferentes, mas nos gestos e no aspecto respeitoso, eram iguais. Um deles na verdade parecia ter sido aluno da escola criada por Hipócrates, em proveito da humanidade. (São Lucas foi médico). O outro, mostrava-se cuidadoso trazendo consigo tão pontiaguda e reluzente espada que, apesar da distância, fiquei assuntado (São Paulo foi soldado romano). Em seguida minha vista se deparou com mais quatro de aspecto bem humilde (São Pedro, São João, São Tiago e São Judas); e bem afastado dos demais, tendo os olhos serrados porém as faces iluminadas seguia um Velho. (São João que ao escrever o Apocalipse estava perto dos noventa anos. É preciso notar que os escritores sacros são apresentados em vários aspectos, conforme os seus livros: por isso São João é apresentado em dois aspectos.) Esses sete vestiam-se iguais aos quatro primeiros e tinham também as frontes coroadas, mas não com brancos lírios e sim com flores vermelhas; ao vê-los à distância, parecia que a testa de cada um estava flamejando. Quando o carro se colocou à minha frente, ouviu-se o estampido de um trovão; então, o carro obedecendo prontamente ao sinal parou, e juntamente com ele toda santa comitiva.

O Purg. - CANTO XXVIII


O Poeta descreve a beleza do Paraíso Terrestre. Chegam Dante, Virgílio e Estácio perto de um rio que lhes impede de prosseguir. Do outro lado do rio aparece uma mulher de maravilhosa beleza que discorre a respeito das condições do lugar, resolvendo dúvidas que Dante lhe propõe. Texto do Tradutor.

"Após isso, voltei o olhar..."

Tinha pressa em me afastar daquela encosta pois desejava andar por aquela encantadora e espessa selva divinal, onde ao novo dia a luz do Sol se fazia mais branda. Afastando-me um pouco dos Poetas, a passos lentos entrei pela belíssima campina sentindo o doce aroma que dela exalava. A suave brisa que circulava afagava-me a fronte e agitava levemente a copa das árvores no lado onde na santa montanha já apresentava as primeiras sombras.

Esse movimento produzido pela brisa, não perturbava o repouso dos pássaros que ali se encontravam calmamente pousados entre os ramos e sim parecia que o ruído brando das folhas os despertava aos murmurinhos, fazendo-os saltar de ramo em ramo e com seus gorjeios, saudavam a alvorada. É deste modo que às margens do Chiassi as aves se abrigam nas ramas dos pinhais quando Éolo deixa livre o caminho para o Siroco (o rio Éolo). Havia eu caminhado tranquilamente pela antiga selva, por tanto tempo, que não podia mais ver o lugar por onde penetrara. De repente, um riacho me impediu de continuar; pela esquerda deslizand0 beijava a ervinha que crescia às suas margens. A pureza e transparência cristalina dessa água, superavam a de qualquer uma outra existente na Terra; no entanto, pela permanente sombra que a luz do sol ou da lua nunca atravessa, aquela plácida correnteza parecia negra. Detendo o passo lancei o olhar para a outra margem daquele singelo riacho e fiquei a contemplar belezas que somente no mês de maio aparecem. Então, como quando algo extraordinário surge em nossa mente desviando o nosso pensar de qualquer um outro, surge ante meus olhos uma mulher sorridente cantando, colhendo flores de entre as flores que cobriam o chão de matizes. (Trata-se de Matelda, que Dante citará no Canto XXXIII)

Vendo-a, assim falei: “Bela dama cuja alma sente os fervores do amor divino – assim devo julgar pelo teu sorriso – se chegares até a margem do riacho, poderia entender as palavras do ter cantar. Estando sozinha a caminhar por este lugar, tão formosa, colhendo flores, e com este cantar inebriante, faz-me recordar Prosérpina que foi arrebatada de sua mãe e que, ao perdê-la, perdeu também a juventude”. (Prosérpina, filha Ceres, que foi raptada por Pluto enquanto colhia flores no vale do Etna.)

Qual menina distraída gira rápido como uma graciosa bailarina e, deslizando os passos sobre o solo coberto de relva e flores, a mim se encaminhou, abaixando modestamente o olhar. E atendendo ao meu pedido tanto se aproximou que pude ouvir claramente o sentido dos versos da bela canção. E, tendo chegado ao ponto onde a delicada erva era banhada pela cristalina água, fez-me a graça inigualável de pousar o seu olhar sobre o meu. Não creio que no rápido olhar de Vênus ao feri-la a seta do amor, resplandecesse tal brilho.

Da margem oposta a sorrir se apresenta, tendo as mãos repletas de lindas flores, que a natureza o solo guarnece. A distancia que havia entre nós era de, mais ou menos, três passos. Leandro não nutrira maior indignação contra o Helesponto ao ser obrigado a atravessá-lo a nado e que Xerxes ao atravessá-lo, deixou penosa lição aos soberbos, do que ao empecilho que esse riacho me causava. (Leandro, todas as noites atravessa o Helesponto a nado, de sua cidade Abido a Sesto onde morava sua amante Heros; e Xerxes, rei da Pérsia atravessou-o por uma ponte feita de barcos, para invadir a Grécia e que derrotado, teve de retornar do mesmo modo.)

Ela então assim falou: “És recém-chegado aqui! Quando clareava o dia, ao ver-te neste lugar designado para receber a espécie humana, senti imensa alegria que se manifestou através do meu sorriso, e que não compreendeste. Mas, se recordares o Salmo “Delectasti” (Salmo 91.6 – Quão magníficas são, Senhor, as tuas obras!) toda tua dúvida terá esclarecida. Tu, que antecipaste aos demais e me dirigiste a palavra, que desejas saber? Pronta estou a te dar qualquer informação”.

Então falei: “Esta água e os ruídos desta floresta não combinam com o que eu acreditava, nem com o que tinha escutado até este momento”.

E ela continuou: “Te explicarei porque isso acontece, bem como a razão da tua surpresa, dissipando assim as névoas que encobrem teu espírito enchendo-o de luz. O Supremo Bem que a Si próprio se basta, criou o homem apto ao bem e como garantia concedeu-lhe a paradisíaca abundância de eterna paz. Mas, por sua própria culpa, o homem perdeu esse lugar de paz. A culpa transformou sua vida de risos e prazeres, em prantos, em desgostos. Para que os maus efeitos causados pela evaporação das águas e da terra acompanhados de intenso calor não lhe causassem danos, é que tão alto se eleva esta montanha; por isso, desde a escada que para aqui dá acesso até seu pico, perturbação nenhuma a atinge. O ar gira constantemente em círculo, impelido pelo impulso do Primeiro Motor – Deus. Neste elevado cume tão atingido pelo ar celestial, o denso bosque, sensível ao seu movimento ressoa inteiro; as plantas ao serem tocadas pela brisa espalham seus perfumes por toda floresta. A terra sendo para isso preparada tornando-se fértil, por si ou por determinação divina, germina e produz plantas de gênero e forma variadas. Por isso, claramente se percebe como há plantas viçosas e floridas, mesmo que a terra não tenha recebido as sementes. Esta água que aí vês, não tem origem em vapor ou chuva como rio que enche ou seca. Vem de certa fonte que nunca se esgota pois, por vontade de Divina flui tanto, que aqui se divide em dois canais. A que neste leito agora vês, faz desaparecer a lembrança da culpa; a outra, desperta a memória para as virtudes humanas. Um, se chama Letes (o rio do esquecimento); o outro, Eunoé (o rio da boa recordação); mas suas águas somente atuam sobre o ser humano, quando este experimenta o sabor de uma e da outra. Comparando-as a outras, sabor igual não existe, ao desta água. Assim falando, creio ter esclarecido tuas dúvidas. Porém não receio que te desagrade se eu for além do que me perguntaste. Os Poetas que cantaram a idade do ouro e seu estado de felicidade, certamente situaram no Parnaso, um lugar como este. Aqui a origem da espécie humana viveu em feliz inocência; aqui a primavera é eterna e esta água é o néctar ao qual eles se referiam ".

Então aos Poetas meu olhar se dirige. Em seus olhos se revela um sorriso dando-me a perceber que escutaram o que fora dito. Após isso voltei o olhar para a bela dama.

O Purg. - CANTO XXVII


Para chegar à escada que do sétimo e último compartimento leva ao cimo do monte, Dante é obrigado por um Anjo a atravessar as flamas. Pouco depois de ter começado a subir, o ar escurece e sobrevém à noite. Param e Dante, cansado, adormece. Despertados pela madrugada, os Poetas recomeçam a subir, chegando ao Paraíso Terrestre. Texto do Tradutor.

“Não temas filho!..."

No mesmo instante em que o Sol envia seus primeiros raios lá onde Cristo derramara Seu sangue e a constelação de Libra resplandece sobre o Ebro e, sobre o rio Ganges sua luzardente é lançada, onde nósestávamos, sua luz declinando já se ia, (o Sol surgia em Jerusalém; na Espanha era meia-noite; meio dia no Ganges; e no Purgatório, era o pôr-do- sol) eis que nos aparece um resplandecente anjo de Deus. Erguia-se ele à margem do penedo, longe das chamas, e com voz que superava a qualquer voz humana, entoava o Beati mundo corde, (Bem aventurados os limpos de coração porque eles verão a Deus – Evang. S.Mateus V, 8), acrescentando: “Para ir adiante, ó piedosas almas, purificai-vos no fogo! Entrai, prestando bem atenção aos cânticos que além são entoados”. Ouvindo de perto sua poderosa voz, esmoreci, como quem estando morto sai sepulcro e desce às tenebrosas trevas. Com as mãos cruzadas, fiquei paralisado; de olhos fixos nas chamas relembrava aqueles que foram condenados à fogueira.

Então cada um dos Poetas a mim se voltava. E Virgílio me disse: “Não termas filho! Aqui há sofrimento mas não morte. Lembra! Lembra-te que sobre Gerião levei-te a salvo, ou em ti desapareceu a memória?" (Ver Inferno XVII). "Em mim aumenta o desejo de te ver mais próximo de Deus. Tenha fé, e se permaneceres dentro destas chamas por espaço de um milhão de anos, nem um só fio dos teus cabelos terá sofrido dano. Se não acreditas no que digo, te aproxima das chamas e por ti mesmo experimenta; expondo um pedaço de tuas roupas ao fogo, verás que nada acontece; então todo o teu temor desaparecerá. Vem pois! Mostra que és valente”.

Eu acreditava, mas, não sentia coragem. Vendo-me assim obstinado e firme, disse Virgílio entristecido: “Ó filho amado! Entre Beatriz e ti existe somente este obstáculo”. Assim como Píramo já morto, ao ouvir a voz de Tisbe chamando-o, abre os olhos para vê-la, assim cedia a minha resistência pois, escutando aquele nome que permanece sempre em meu pensamento, me voltei rápido para Virgílio. Balançando a cabeça e sorrindo como quem convenceu uma criança ao acenar-lhe com saboroso doce, disse-me: “Vamos! Queres que fiquemos aqui para sempre?”

Então, seguido a minha frente no fogo penetrou. Estácio que sempre caminhara após mim, atendendo ao seu convite nas chamas também adentrou. E eu seguindo-os, apenas no fogo entrarei senti tanto ardor que, para sentir alívio poderia me lançar em vidro incandescente. Procurando um meio de me confortar, Virgílio assim falava-me de Beatriz: “Julgo estar vendo seu olhar cheio de fulgor!”

Escutei uma voz solitária que cantava; guiados então pelo som daquela voz fomos seguindo até sairmos na parte onde se mostrava a subida. “Vinde ó benditos do meu Pai!”, ouvia-se o canto vindo do meio de um clarão tão intenso, que meus olhos cerraram-se, ofuscados; e continuava: “O Sol já desaparece atrás da montanha; a noite se inicia; não vos demoreis; caminha a passos rápidos que o Ocidente já anuncia trevas”.

Do lado em que a claridade do dia se desfaz, a trilha sobe reta ao altivo penhasco. Nosso passo havia vencido apenas alguns degraus, quando a sombra projetada pelo meu corpo desapareceu, indicando que o Sol já não difundia sua luz. Antes que todo o horizonte apresentasse igual aspecto e a noite estendesse todos os seus véus, cada um de nós ocupou um degrau por leito que nos convidava mais ao repouso do que ao desejo de continuar subindo.

Como as cabras à procura de alimento sobre os penhascos são rápidas e impetuosas, depois à sombra e a ruminar mostram mansidão e brandura enquanto o sol envia seus ardentes raios e as guarda o pastor com seu cajado e olhar previdente; também como o vigilante guardador que na planície, quieto pernoita em sentinela ao gado contra o assalto das feras, assim estávamos os três: eu como se fosse uma cabra, os Poetas como pastores um ao lado do outro, aconchegados sobre a rocha.

Olhando para cima, por estreita abertura viam-se fulgores de estrelas, que naquela parte do firmamento se mostravam mais brilhantes e maiores. Envolvi-me de tal modo nessa paisagem noturna que me senti como embriagado pelo sono, sono esse que na mente se torna previsão do futuro.

Naquela hora em que no Oriente Vênus lança sua luz sobre a montanha, parecendo estar sempre ardente de amor, acreditava eu ver em sonhos uma formosa jovem que, tranquilamente, passeava pela planície colhendo flores, e cantarolando dizia: “Quem quiser saber quem sou, me escute: sou Lia (filha de Labão e primeira mulher de Jocó, símbolo da vida ativa) e com minhas mãos vou tecendo bela guirlanda de flores; hei de, no espelho, ver-me mais bonita. Minha irmã Raquel (irmã de Lia e segunda mulher de Jacó, símbolo da vida contemplativa) dele não se afasta; passa o dia inteiro sentada mirando-se enquanto eu sou negligente em me adornar. Ela admira a própria beleza, enquanto eu gosto de trabalhar!”

Já a alvorada espalhava no céu suas luzes que tanta esperança trás ao peregrino e, com a presença da luz matutina fugiam as trevas, e com elas, o sono. Seguindo o exemplo dos Poetas ergui-me prontamente. "O doce pomo que tão ansiosamente é procurado pelos mortais, hoje há de saciar-te a fome”. Nenhuma saudação me causaria maior prazer do que ao ouvir essas agradáveis palavras que foram pronunciadas pelo meu Mestre; e, tanto em mim crescia o desejo de alcançar o cume da montanha que, cada passo dado era como se estivesse sendo auxiliado por asas. Então, quando a longa escalada terminou e tínhamos os pés firmes no último degrau, Virgílio olhando-me firmemente, disse: ”Filho, com habilidade e cuidado tenho te conduzido; viste o fogo temporário e o fogo eterno; e vencendo angustias e fadigas, chegaste ao ponto onde não posso mais continuar. A partir de agora seja o teu querer teu próprio guia. Olha! O Sol já ilumina teu semblante e vê com no solo brotam e crescem naturalmente as ervas, as flores e as árvores frondosas. Antes que os refulgentes olhos daquela que me enviou para te socorrer quando em prantos estavas venhas a fitá-los, podes repousar ou passear pelo florido campo. Nada mais esperes de mim – nem palavras nem acenos; guia-te pela tua própria vontade, reta e boa. Cumpre teu destino. Consagro-te teu próprio senhor dando-te mitra e coroa”

O Purg. -CANTO XXVI

Entre os luxuriosos e os que pecaram contra a natureza, Dante encontra o poeta Guido Guinicelli, ao qual exprime a sua profunda admiração. Guido lhe aponta o poeta provençal Arnoud Daniel, que o saúda em versos provençais. Texto do Tradutor

"Olhem! O corpo dele é verdadeiro!"

Enquanto íamos andando pela borda do precipício um após o outro, o Mestre repetia: “Eu te aconselho ir andando com atenção!”

O azul do céu já se tingia de branco e a luz do Sol que dourava todo o poente me atingia pela direita, fazendo com que a sombra projetada pelo meu corpo, tornasse as chamas mais vermelhas ainda; e as almas que passavam, percebendo, demostravam seu espanto sendo isso motivo para que falassem dissessem entre elas: “Olhem! O corpo dele é verdadeiro!” E para disso terem a certeza vinham em minha direção aproximando-se o quanto podiam tendo porém o cuidado de não deixarem o fogo expiatório.

Diziam: “Ó tu que vais seguido depois dos outros, não por moleza, mas por respeito, fala comigo que estou ardendo em fogo e sede. Não sou o único que deseja ouvir-te; todos que aqui vês sentem sede da tua resposta mais que etíope sente pela água. Explica-nos como pode o teu corpo impedir desta forma a passagem da luz do Sol; por acaso não te colheu ainda a rede da morte?”. Assim me falou uma daquelas sombras. Pretendia eu logo explicar, porém algo bem diferente atraiu minha atenção. Pelo caminho em chamas, outra multidão de almas veio ao encontro desta. Parei de falar e fiquei prestando atenção. De parte a parte, cada alma se dirige à outra, beijam-se apressadamente e logo seguida afastam-se como que felizes pelo breve encontro, como fazem as formigas que saindo em marcha, se encontrando tocam-se umas nas outras como pedindo informações sobre a estrada, ou se tiveram sorte no que estavam procurando. Separando-se após essa manifestação de amizade, antes de completar a volta habitual cada grupo se afasta gritando. Um dos grupos gritava: “Sodoma!” Gomorra!“ E o outro grupo continuava: “Pasífae entrou na vaca para o touro saciasse sua luxúria". (Ver Inferno Canto XII – mulher do rei de Creta; para unir-se com um touro, se colocou dentro de uma vaca de madeira; desta união nasceu o Minotauro). E iguais a grous quando em bandos se dividem, indo uma parte em direção ao deserto da Líbia, e outra em direção aos montes Rifeus, pois aqui há calma e ali o frio se aplaca, assim aquelas almas umas se vão, outras vêm; e novamente recomeça o hino, o pranto e o lamento.

E as mesmas almas que antes me haviam interrogado, de mim se aproximaram outra vez, mostrando com gestos que desejavam saber alguma coisa sobre minha pessoa. Então lhes respondi: Ó espíritos, que através da purificação se preparam para alcançar a glória eterna, sabei que este meu corpo não jaz em terra fria; trago-o comigo em toda a sua composição, e todo o sangue nele contido e toda a sua forma natural. Ando por aqui a procura de luz para o entendimento, pois lá no céu, uma excelsa Dama obteve a graça de que eu, ainda em vida, por aqui me eleve à Suprema Altura. Desejo que todos vós em breve estejais no Céu que é cheio do puro amor! Mas, para que eu possa melhor descrever ao meu povo lá na terra sobre vós, dizei-me quem fostes e que multidão é aquela que veio ao vosso encontro”.

O espanto que sente o rude e simples montanhês ao se encontrar no meio de uma grande cidade e observar tudo o que nela pode estar contido, para aquela multidão o efeito não foi diferente porém, dele rápido se libertando, pois o espanto logo se esvai em peito altivo. E assim respondeu aquele que por primeiro me havia perguntado:

Ditoso és tu, que vendo o nosso pranto alcanças um grande aprendizado para o teu viver! Corromperam-se aqueles que outrora vendo o triunfo de César, por escárnio, o chamaram de “Rainha”. (Narra Seudônio que os soldados de César, no triunfo que lhe foi concedido por ter vencido os galos, cantavam: “César submeteu as Gálias; Nicomedes a César. Viva a Rainha!” Aludindo à suas relações com o rei Nicomedes) Eis por que ao se separarem acusam-se chamando de Sodoma, acrescentando a desonra à pena do fogo. Nosso pecado foi o de temos sido bissexuais; pois, tendo transgredido as leis da natureza no apetite desregrado, para nossa injúria, quando os outros gritam os nomes das cidades malditas, respondemos lembrando o nome daquela mulher que, ao assumir a bestial imagem, em besta se tornou. Agora sabes quais foram os atos que nos incriminaram; quanto aos nomes dos que aqui estão, não sei; também o tempo não seria suficiente para indagar disso aos outros. Mas o meu nome te é bem conhecido; estás vendo Guido Guinicelli. (célebre poeta bolonhês -1230 a 1276) Estou sendo purificado aqui neste lugar por haver me arrependido a tempo".

Como os dois filhos de Liturgo que correndo ao encontro da mãe ficaram felizes mas, não plenamente, (Ipsífile,que foi condenada a morte por Liturgo, rei da Nemeida, mas foi salva pelos dois filhos que antes não a conheciam) assim eu, quando ouvindo nessas palavras o nome daquele que foi inspiração para mim e para muitos outros que em doces versos cantaram amores. Em silêncio, sem nada ouvir, longamente o contemplei; queria eu, dele me aproximar porém impediam-me os ardores das chamas. Depois declarei estar à sua disposição e, solenes promessas o afirmaram.

Respondeu-me Guido: “Tuas palavras de afeto ficaram tão profundamente impressas em meu peito agradecido que, nem as águas do Letes os apagariam. Mas se de ti tenho escutado sentimento verdadeiro, o que está te perturbando tanto que deixas transparecer através da voz e do olhar?”. Respondi: “Foram os teus versos; enquanto existir nosso idioma, salvas estarão do esquecimento”.

Ele então continuou: “Irmão, este que te indico” – falou-me com ternura, e com o dedo indicava-me outra alma – “nos versos, nos romances, superava a todos; somente os tolos ousaram dizer que o Limosim superava a ele. (Geraldt de Berniel de Limonges, outro trovador provençal.) Pelo simples desprezaram a verdade e como desconheciam a arte, formaram opiniões sem fundamento. Assim outrora aconteceu com Guittone, mas no final todos reconheceram a verdade e seu nome foi proclamado. Mas, já que alcançaste o privilégio de entrar neste portentoso mosteiro cujo abade é o próprio Cristo e, onde não se pode mais cometer pecados, reza por mim um piedoso Pai-Nosso”.

Depois, para dar lugar ao outro espírito que próximo estava, em meio ao fogo desaparece qual peixe que ao fundo das águas mergulha. Aproximei-me do espírito que apareceu em meio às chamas e disse-lhe que eu havia reservado em meu coração um lugar especial para o seu nome. Então ele me respondeu em versos:

“Tão delicado vosso pedido é, que escutando,

Encobrir-me não quisera ou poderia;

Arnaldo sou, que choro e vou cantando,

Com tristeza os erros passados meus, lamento,

E o ditoso dia, alegremente estou esperando,

Peço-vos então pelo alto valimento,

Que da escada às alturas ora vos guia,

Que no mundo vos lembreis do meu tormento.”

E, após desses versos, no fogo purificador desapareceu.