O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

sábado, 19 de maio de 2012

O Pug. CANTO XIX

No sono Dante tem uma visão misteriosa. Acordando Dante conta a Virgílio, o qual a explica. Sobem, depois, os Poetas ao quinto compartimento no qual se purificam os avarentos, debruçados sobre o chão. Entre eles está o papa Adriano V, Ottobuono de Fieschi, que lhe pede que o recomende a sua sobrinha Alagia.Texto do Tradutor.

“Vinde! Por aqui se pode passar”.

Era exatamente a hora em que o calor do dia é absorvido pela Terra ou por Saturno e não mais aquece o frio que vem da Lua; (era manhã, pouco antes do alvorecer) e também o momento em que no nascente, aparece aos astrólogos, a Fortuna Maior, e de onde rápida a noite desaparece, (uma das combinações que os astrólogos desenhavam para adivinhar a sorte e que se parecia em parte, com a constelação do Aquário e também a dos Peixes)quando em sonho, vi uma mulher gaguejante que tinha os olhos vesgos, os pés tortos, as mãos deformadas e o rosto macilento. (Essa mulher simboliza os vícios.) Mantinha eu o olhar fixo nela; e, como o Sol que aquece os membros de quem à noite, o frio agrava, assim sob meu olhar, a quase morta movia a língua, erguia o corpo e, no mundano e lívido semblante já se mostravam agradáveis cores como a desejar o amor.

Depois, soltando a voz há pouco titubeante, entoava tão doce e inebriante canto que o enlevo me absorvia. Assim cantava: “Sou a deliciosa sereia, que nos mares desvia os navegantes; por provocar tanto prazeres, meus fascinantes cantos a Ulisses seduziram; e raros foram os que me deixaram, pois a quase todos prendem o som dos meus cantares”. (Sereia; metade mulher, metade peixe.) Mal seus lábios se fecharam, eis que aparece junto a mim, uma linda dama, (símbolo da prudência e das virtudes) cujo olhar deixou a sereia terrivelmente perturbada. “Dize-me ó Virgílio, que mulher é esta?” Bradava irritada, a dama. E o Poeta, acorreu respeitoso ante aquela senhora de celestial semblante e enérgicos gestos, pois, travando as mãos da sedutora sereia, rasgou-lhe os véus desnudando o ventre; e ao insuportável odor que dela se desprendia, acordo. Abri os olhos e vi ao meu lado Virgílio me dizendo: “Três vezes te chamei!”! – e continuou – “Levanta-te! Vamos! Apressemos o passo”. Ergui-me, prontamente. O dia já havia iluminado todos os círculos do alto monte. Em direção a nossas costas surgia o Sol. De fronte baixa como quem oprimido pela dúvida, seguia eu o Mestre, curvado qual arco de uma ponte, quando ouvi uma voz dizendo: “Vinde! Por aqui se pode passar”. Foram estas palavras proferidas de modo tão suave, tão carinhoso, que igual nunca se ouviu na Terra. Quem nos falara indicando o caminho entre as rochas tinha estendidas as asas, cuja alvura dourada era igual às de cisne. Depois agitando as plumas exclamou: “Venturosos os que choram, pois aqui terão a esperança como consolo”.

Assim que o luminoso anjo voando, se elevou, o Mestre perguntou-me: “Por que estás preocupado olhando para o chão?” Respondi: “Tive um sonho no qual aparecia uma estranha Figura; e tanto me impressionou que ainda não consegui esquecer”. Disse-me o Mestre: “O que viste foi a antiga feiticeira; ela representa os males que no círculo acima são punidos. Ali, verás também como o homem, se desliga deles. No entanto, não penses mais nisso. Segue adiante e fixa o olhar na beleza dos astros que Deus criou como que, para serem apreciados!”

Como o falcão que, primeiro olha seus pés, depois obedecendo ao comando levanta vôo e do ar se atira conta a presa, assim eu: acelerando o passo, percorri o restante do caminho que estava aberto na rocha, chegando rápido ao outro círculo.

Assim que entramos no quinto círculo vi uma multidão em grandes lamentos; prostrados, tinham os rostos voltados para o chão. Adhaesit anima meapavimento” = “Minha alma esteve pregada no chão (as coisas materiais)(Salmo CXIX), diziam suspirando com tanta dor, que mal compreendi suas palavras. Disse-lhes o Mestre: “Ó eleitos de Deus, que padecendo encontram alívio na justiça e na esperança, dizei-nos por onde devemos seguir para chegarmos ao cimo”. A pergunta feita pelo meu Guia foi respondida por uma alma que mais adiante estava. “Se não fostes atingido por punição igual a nossa e mais rápido pretendeis chegar ao alto, deveis ir sempre pela direita, seguindo a parte externa da rocha”.

Supondo que nesta resposta estava oculta outra intenção, voltei os olhos para Virgílio que, com delicado gesto aprovou o desejo que em meu olhar se manifestava. Tendo recebido a aprovação do Mestre, depressa procurei me aproximar daquele ser doloroso, cujas palavras chamaram minha atenção. Perguntei-lhe: “Ó tu que, expiando lacrimosas as culpas apressas o dia de te elevares à glória Divina, interrompe por alguns instantes o teu pranto fervoroso e responde-me: Quem foste tu? Por que estás assim lançado ao solo? Estando eu ainda vivo, pretendo voltar ao mundo, de onde eu vim; desejas algo de valioso de lá que te traga benefício?”

Respondeu-me: “Primeiro, deves compreender a razão desse nosso padecer; “Scias quid ego fui sucessor Petri (Tradução = “Saibas que fui sucessor de Pedro”; é o espírito do Papa Adriano V, Ottobuono dei Fieschi, conde de Lavagna). "O título de minha família teve origem no formoso rio que corre entre Chiavari e Siestre. Em pouco mais de um mês senti quanto pesa o cuidado que se deve ter, para que se mantenha puro o grande manto. Qualquer outro fardo parece feito de plumas, se comparado a esse. Ai de mim! Quanto foi difícil o converter-me! Mas, apenas eleito Pastor de Roma, fiquei sabendo como é fútil a vida no mundo. Meu coração sequer teve um momento de paz ou tranqüilidade. No entanto sentindo os valores terrenos não me satisfaziam, me consumi inteiro no desejo pela vida eterna. Minha alma, mísera e triste, que se afastara de Deus buscando apenas a sórdida avareza, bem merece esta punição que vês. Aqui, a gravidade do pecado da avareza se apresenta pelo castigo que se recebe; neste monte não há outro que seja mais severo. Como nosso olhar não se erguia ao Céu porque estava embevecido, somente nas coisas terrenas, a Justiça Divina o prende a terra, não sendo permitido erguê-lo por um só instante. Tendo a avareza, extinguido em nós a inclinação ao bem, a Justiça Divina nos tem castigado mantendo-nos com os pés e mãos estreitamente unidos; e assim estendidos, imóveis estaremos enquanto a Deus aprouver”.

Querendo lhe falar mais, ajoelhei-me; porém, tendo ele reconhecido esse meu ato, me impediu dizendo: “Por que te curvas?” Respondi: “Procedendo desta forma, cumpro um dever em reverência a vossa dignidade de sucessor de Pedro”. Então falou: “Ergue-te irmão! Não cometas esse erro! Somos todos iguais. Eu, como tu e a humanidade inteira obedecemos, a lei de uma única Vontade. Se compreendeste o verdadeiro sentido do Evangelho, quando diz – neque nubet – saberás quanto é correto meu modo de pensar. (Palavras de Jesus aos saduceus “no céu não há núpcias”. Com essa expressão Adriano V quer que Dante entenda que não deve mais considerá-lo esposo ou chefe da Igreja). Agora deves ir; já te detiveste demais. Tua presença aqui impede meu saudável pranto que apressam o perdão. Na Terra tenho uma sobrinha; é o único parente que me restou; chama-se Alagia. Tem bons sentimentos; espero que maldade de nossa maldita raça não a tenha corrompido”.

O Pug. CANTO XVIII

Virgílio continua a falar sobre o amor. No entanto as almas dos preguiçosos vão passando diante dos Poetas, lembrando exemplos de virtude contrária à preguiça e, depois, de punições à preguiça. Uma das almas dá-se a conhecer a Dante. É o abade de S. Zeno em Verona. Dante cai em profundo sono. Texto do Tradutor

“O exagero que há nas perguntas, talvez o canse
”.

Terminando Virgílio de proferir suas explicações, atento me observava para ver se parecia eu satisfeito. E eu que em maior sede de saber me inflamava, calando-me, dizia a mim mesmo: “O exagero que há nas perguntas, talvez o canse”. Mas, meu incansável Mestre que era como um verdadeiro pai, notando meu silêncio e o que o motivava, animou-me logo para que eu perguntasse tudo o que desejava saber. Disse-lhe então:

“Mestre, tuas palavras iluminam tanto meu espírito, que percebo claramente tudo o quanto desejas que eu compreenda. Rogo-te, pois, bondoso e paciente Guia, que me explique a origem desse amor que todo mal e todo bem trás ao ignorante mundo”.

Respondeu-me: “Concentra em mim toda a tua atenção e acende em ti toda a luz que ilumina teu espírito, e ficará para ti bem claro o quanto erra o cego que pretende guiar outro cego. Sendo a alma criada para amar ardentemente corre ao encontro de tudo que lhe dá prazer, se para o amor, despertada se sente. Para que o amor instintivo se torne em ato de amor, teu entendimento recolhe imagens que se prende de tal forma no íntimo que outras almas se sentem atraídas para ela. Se as almas atraídas se entregam, essa entrega é o amor, é a própria natureza que em busca do prazer amoroso, une novamente os seres humanos uns aos outros. E como o fogo que por sua natureza eleva-se às alturas e ao elevar-se tende ao centro onde sua origem mais permanece assim se incendeia a alma pelo desejo, numa ação espiritual que não descansa enquanto não consegue a posse que pretende. Compreendes agora como ultrapassam a meta da verdade aqueles que acreditam e asseguram aos outros que todo amor é, por si mesmo, coisa boa? Geralmente se considera que o amor é sempre bom; mas, toda assinatura é boa ainda que a tinta seja de boa qualidade?”. Respondi: “Te ouvindo com o maior carinho e atenção fico ciente do que pode ser o amor mas, ainda desejo ser esclarecido em algumas dúvidas: já que o incentivo ao amor vem de fora do ser, e se a alma vai de modo natural ao encontro do amor ao ser por ele atraída, essa atitude da alma não me parece que seja ela certa ou errada “.

Respondeu-me o Mestre: “Somente posso te esclarecer o que a razão me concede; no mais, por ser por ato de fé, pedes maiores explicações a Beatriz quando estives com ela. A substância do espírito não depende da matéria, porém, estando unida a ela, guarda virtude específica que somente pode ser sentida quando atua apresentando então o efeito da ação, assim como na planta o verdor indica vida. De onde vem o entendimento das primeiras sensações e os primeiros desejos que até hoje, no mundo o homem está sujeito? São sentimentos tão naturais e instintivos como é instintivo para a abelha preparar o mel; assim sendo, essa tendência que existe em vós de querer amar, não merece nem louvor nem censura; e precisamente por isso é que se faz necessário a permanente vigilância da porta por onde entram na alma, as paixões. De tal princípio é que procede ao merecimento de prêmio ou castigo. Os sábios, (os filósofos) estudando sobre os fundamentos da tendência natural para a liberdade de escolha, deixaram para a humanidade ensinamentos, nas lições de moral. Supondo que o amor surgisse no íntimo do ser por necessidade, mesmo assim tendes o poder de contê-lo pela disciplina, pelo exercício do autodomínio. Beatriz considera esta virtude como sendo livre arbítrio. Quando estiveres com ela, preste bem atenção às suas explicações".

Já era quase meia-noite e a Lua ia surgindo, fazendo com sua claridade desaparecer do nosso olhar os outros astros luminosos. Percorria caminho contrario àquele por onde o Sol vai se pôr e é visto pelos romanos a brilhar entre Sardenha e Córsega. Já havia meu ilustre Mestre esclarecido todas as minhas dúvidas e, estava eu me sentindo aliviado da fadiga do meu corpo, quando fui tomado por tão grande sonolência, que me obscureceu a mente. Subitamente fui despertado dessa sonolência por uma multidão de almas que, em passo acelerado, vinha em nossa direção. E como outrora Ismeno e Asopo (rios da Beocia) altas horas da noite, viram-se cruzados por desesperados e ofegantes tebanos, que suplicavam em altas vozes pelo deus Baco, assim a multidão de caminhantes, impelida por sublime desejo e justo amor, apressava-se por atravessar o círculo; e estava bem próxima de nós, quando vimos dois espíritos que mais adiantados estavam, diziam gritando: ”Maria corre pressurosa para a montanha”; (alusão a Virgem Maria que, logo depois do anuncio do nascimento de Jesus, correu a visitar sua prima Isabel – Lucas; I, 39.) e “Para dominar lérida, César venceu Marselha antes de ir rápido à Espanha”. (Júlio César, com grande rapidez deixa parte do seu exército próximo a Marselha e com a outra parte dirigi-se para Lérica onde vence os outros pompeianos.) Outros clamavam: “Rápido! Rápido, Já! Sem perda de tempo! Que não falte o cuidado em apressar o passo! A graça divina não re floresce na alma preguiçosa!”.

Então a voz do Meu Guia desta forma suplicou: “Ó vós que em tais fervores ides remindo talvez da negligência dos tempos em que no bem não se empenharam, dizei a este que ainda é vivo (na verdade está a ouvi-los) e que pretende continuar subindo assim que surgir a aurora, se fica perto a escada que dá acesso ao alto”. Então um dos espíritos lhe respondeu: “Vem conosco; ela não fica longe daqui. O desejo de cumprir nosso dever nos impede de parar; perdoe-nos por bondade se há descortesia ao andarmos tão depressa. Fui abade de São Zeno em Verona, sob o reinado de Barba-Roxa, o Bom, a quem Milão lembra sem saudades. Alguém que está curvado sob a sepultura, há de em breve ser chorado nesse mosteiro juntamente com o poder com que o tinha dominado; pois em detrimento ao verdadeiro pastor, ali foi colocado um filho aleijado, bastardo e que usa na maldade”.

Não sei se continuou falando ou se silenciou, pois que de nós velozmente se afastou, mas, senti alegria em puder ouvi-lo com clareza e não se esquecer de suas palavras. Disse-me então aquele que me guiava e amparava: “Olha para aqueles dois espíritos que estão postados ao lado da multidão; como repreendem com energia os que se mostram mais vagarosos”. Quando passavam em frente a nós, ouvimos exclamar: “Vamos! Rápido! Foi por preguiça que foram mortos os lentos, não chegando a atravessar o mar quando este se abriu; por isso não receberam a herança do Jordão. (Os filhos de Israel, que pela sua preguiça morreram no deserto, não alcançaram a Terra Prometida). Também morreram os que por preguiça não quiseram seguir o filho de Anquises até ao fim, na árdua fornada e, por seu próprio gosto perderam a fama e a glória”.

Quando aquela multidão já se tinha afastado tanto a ponto de não mais poder avistá-la, de nova inquietação a mente me foi tomada. Depois vieram outras e mais outras e, tanto de uma à outra vagueava que, pouco a pouco foram meus olhos se fechando; então o pensamento foi se transformando em sonho.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O Pug. CANTO XVII

Saindo do denso fumo, Dante, novamente em êxtase vê exemplos de ira punida. Tornando a si, vê um anjo que está perto da escada do quarto compartimento. Os dois Poetas continuam a subir. Sobrevindo, porém à noite, param e Virgílio explica ao discípulo que o amor é o princípio de todas as virtudes e de todos os vícios. Texto do Tradutor.

"Sobe por esta escada."

Leitor, se já estiveste na cordilheira alpina e foste envolvido por tão densa névoa que, através da qual nada poderias ver como se olhos de toupeiras tivesses, deves estar lembrado de que, quando a úmida e sombria cortina de fumaça começa a ficar tênue e a esfera solar envia ao espaço uma escassa luz podes então imaginar como pudera o sol mostrar ainda sua luz tendo já descido ao poente. Estava assim o sol quase a se esconder, mas, ainda espalhado sua luz sobre a região, quando, acompanhando os passos do meu Mestre saí da cerração que me cercava. Ó fantasia que enleva e domina o espírito do homem a ponto de que, nem o rijo soar de mil tubas juntas o desperta, estando ausentes os sentidos?

Move-se a luz no Céu por si ou por um querer do Onipotente! Pois, pareceu-me ver aquela que por castigo de seus crimes foi transformada em ave e em seus gorjeios encontrava consolo. (Filomena; para vingar-se de ter sido ultrajada por Teseu, deu-lhe como comida seus próprios filhos, sendo por isso transformada pelos deuses em rouxinol) Tanto ficou minha alma presa na suave visão, que nenhuma outra impressão a desviava. Naquele mesmo êxtase, em seguida, vi preso a uma cruz um homem de feroz semblante. Nem a morte lhe abatia a arrogância. (Amam, ministro do rei Assuero; estava ali crucificado na mesma cruz que ele havia mandado levantar para o inocente Mardoqueu.) {Ester, 11; 5}. Não muito distante estavam o grande Assuero, a prudente Ester, Mardoqueu e a esposa. Mas esta imagem fugiu-me da visão tão rapidamente, como a bolha de água que dela é forma e por falta dessa mesma água explode e desaparece. Logo em seguida surgiu outra visão: uma donzela que em prantos exclamava: Ó mãe querida, por que cheia de ira buscaste a amarga morte? (Lavínia, filha do rei Latino e da rainha Amata). Por não querer perder Lavínia perdeste a vida e a mim, a filha dolorida que lastima o teu fim com dor maior do que a que foi sentida por ocasião da perda do noivo”. (A rainha Amata; supondo que Turno, noivo de Lavínia, tivesse sido morto por Eneias, suicidou-se.) Como se despertasse do sono quando repentina e forte luz sobre as pálpebras desce e estas, em luta, tenta afugentá-la, assim desapareceu a visão quando vivo clarão me banhou as faces; outro igual sobre a Terra nunca se viu. Voltei-me para ver onde me encontrava, mas, ouvindo uma voz dizendo: - “Sobe por esta escada” – desisti de qualquer outra intenção. Minha alma foi tomada por tão veemente desejo de saber quem assim falara que, se não o visse teria ficado conturbada. Como o sol que deslumbra em dia ardente, uma luz flamejante impediu-me de fixar a vista em direção a tal voz; senti então, imediatamente perdidas as forças.

Disse meu Guia: “É o espírito celeste; vigilante, sem rogos, o caminho nos indica; está escondido sob o próprio brilho fulgurante. Está agindo conosco como um homem agiria para com outro homem; pois, vendo-se alguém em extremo perigo fala consigo mesmo pedindo auxílio e ao ver-se socorrido sente-se ameaçado, então a tal convite apressa o passo! Por isso, apressemo-nos em aceitar seu convite e subamos antes do anoitecer; Se não fizermos agora, só poderemos fazer quando o Sol tiver despontado”. Logo dirigimos os passos em direção a uma escada. Quando chegamos ao primeiro degrau, perto percebi um mover de assas. Senti um pequeno sopro e ouvi dizer: ”Venturoso é, quem, isento da impura ira, ama a paz”! Já no alto do céu empalidecia o luminoso rastro solar precursor da noite, surgindo o formoso exército de estrelas. “Ai de mim! Por que me faltam, as forças?” – disse a mim mesmo sentindo que estão faltando forças que me sustentam as pernas. Tendo alcançado o topo da escada, permanecemos imóveis, imitando a nau que ancora à desejada praia. Fiquei atendo procurando ouvir algum rumor naquele círculo. Depois me voltei ao Mestre dizendo: “Querido Pai, quais pecados recebem sua pena neste círculo onde nós estamos? Aqui, parado, escutarei tuas palavras”. Respondeu-me: “Neste círculo a pena é aplicada aos que foram lentos na prática do bem. Se durante o cumprimento do dever o amor se enfraquece, aqui ele se fortalece. Para melhor compreenderes, aproveitemos o tempo que teremos de esperar e preste atenção ao que vou dizer. Meu filho, ao Criador ou à criatura jamais faltou o amor, quer venha da alma ou da natureza. O amor natural é destituído de erro; o outro pode pecar pelo objetivo, por demasiado ardor ou por falta de ardor, que é a tibieza. Quando o amor é dirigido tanto aos bens principais (os bens eternos) como aos bens secundários (os materiais) de forma equilibrada, não pode existir afeto criminoso. Porém, se de modo desregrado a criatura ao mal se inclina ou de modo exagerado ao bem se volta, ofende ao Criador. Podes compreender agora que, no ser humano o amor tanto poder ser semente de virtude, como de pecado. Portanto, como o amor não pode ser desviado do bem que é a finalidade para o qual foi criado, não pode acontecer que este amor em ódio se transforme. E como nenhuma criatura imagina sua existência sem seu Criador, é natural que o amor os una de tal forma que não possa existir nenhum ódio entre eles". E continuou:

"Assim sendo, resta ao ser decadente que busca amar o mal, odiar o seu próximo e, este amor pecaminoso atua sobre o humano limo de três modos. – Quando, cobiçoso de grandeza e glória, pretende conquistá-las através da ruína de outro desejando vê-lo prostrado por terra e desditoso. – Quando, temendo perder honra, poder e glória, revela tristeza; se outro os compartilha mostra-se contrário a essa partilha e se desvela para vê-lo recusar. – Quando, sentindo-se injuriado, ardendo de ira insiste em vingar-se, procurando todos os meios de praticar o mal contra que o injuriou. Surgindo do mal, essas três formas de amor desvirtuado têm sua expiação nos círculos abaixo deste.

“Agora ficas atento ao que acontece a quem vai, de forma desordenada, em busca do bem. Confusamente cada um imagina o que seja o bem e ansioso o deseja. Para conseguí-lo se aflige e sofre. Aqui, o castigo é aplicado de acordo com a forma de amor no mundo praticado. A quem, após adquirir o desejado bem espiritual por ele sofre dissabores e por isso se torna inerte ao amor, é justo que aqui se veja em martírio.

“Existe ainda outro bem; este, porém não trás felicidade ao ser humano, pois, não sendo a essência do bem que é fruto e raiz de toda virtude, não é a felicidade. O amor que a tal bem volta à existência, (os bens materiais) tem seu tormento nos três círculos acima deste, porque assim se divide a inteligência. Sem que eu te diga quais são, por tu mesmo, delas terás conhecimento”.

Obs: Não tem figura


O Pug. CANTO XVI

Sempre ao lado de Virgílio, Dante continua a viagem. Denso fumo envolve os iracundos. Entre eles está Marco Lombardo, o qual lamenta os tempos, que eram bons e agora ficaram maus. Dante pergunta de que depende essa mutação, e Marcos responde que a corrupção dos tempos novos do mau governo do mundo e especialmente da confusão entre poder espiritual e o poder temporal. Texto do Tradutor.

“Cuidado para que não te afastes de mim”.

A fumaça que nos rodeava era mais espessa e tenebrosa do que as sombras que eu vi no Inferno. Coisa tão terrível jamais fora lançada sobre meu rosto. Tinha eu os olhos totalmente fechados. O meu fiel e diligente amigo vindo em meu auxílio, em seu ombro deu-me guarida. Qual cego que vai acompanhando seu guia para não se desviar do caminho, se chocar com algo que venha a machucá-lo ou que possa provocar a morte, assim no meio daquela escuridão, seguia eu atento o Mestre, que repetia: “Cuidado para que não te afastes de mim”.

Então ouvi vozes; parecia-me que suplicavam misericórdia ao Cordeiro de Deus que às culpas dá alívio; (Jesus, símbolo de mansidão, virtude contrária ao vício da ira.) Letra e melodia guardavam perfeita consonância entre si. Perguntei: “Por quem essa oração que ouço é cantada?”. Respondeu-me o Mestre: “Desse modo, através da oração tranqüila e calma, é diminuída a culpa da ira”.

“Quem sois que fendeis a névoa e falais sobre nós qual criatura viva a calcular o tempo pelo calendário?” Falou uma das vozes. Disse-me Virgílio: “Responde e pergunta se por aqui, se pode subir”. Então falei: “Ó alma que implora a graça de ir pura e bela para junto d’Aquele que te criou, se me seguires ouvirá maravilhas”. Respondeu-me: “Irei até onde me for permitido; e como através da fumaça não conseguimos nos ver, iremos conversando porque assim nos manteremos próximo um do outro”.

Comecei a falar: “Meu espírito ainda está coberto por aquela veste que a morte usa despir. Estou subindo desde as profundezas infernais. E se Deus, Suprema bondade, me permitir que eu chegue a ver a Sua Corte por este meio tão estranho, diz-me quem foste antes de morto e, qual o melhor caminho para a subida; assim, conversando, poderemos acompanhar teus passos”.

Respondeu-me: “Fui Lombardo e meu nome era Marcos. (Marco, de Veneza; conhecido pelo nome de Lombardo, homem sábio e prudente.) Conheci o mundo e amei os feitos honrosos os quais hoje ninguém mais dá valor. Para subirdes deveis ir trilhando pelo melhor caminho que encontrar pela frente”. Falou-me assim e acrescentou: “E rogo que intercedais por mim ao chegardes ao alto”. Logo repliquei: “Quanto me pedes prometo fazer, mas encontro-me oprimido por dúvida que desejo seja desfeita. Antes era simples; mas ouvindo tuas palavras aqui e outras ali, tiveram elas para mim duplo sentido. Dizes que o mundo está vazio de virtudes; e tens razão de sobra quando lamentas cheio de maldade e coberto por vícios. Peço-te, porém que me esclareça os motivos que o levaram a tão mísero estado, se tens conhecimentos deles, para que eu possa revelá-los a outros. Alguns dizem que ser a vontade Divina, outros que vem da maldade humana”.

Então um suspiro dolorido, escapa-lhe do peito. E continuou: “Irmão, que o mundo é cego, ouvindo-vos bem se percebe. Vós os vivos, julgais que o Céu é o autor de todas as causas, como se por ele tudo fosse determinado. Desta forma, se assim realmente fosse, desaparecendo no homem o livre-arbítrio, portanto não sendo ele responsável pelos seus atos, não seria justo aplicar-lhe prêmio ou castigo. É verdade que as primeiras inspirações para vossas ações vêm do alto, da permissão divina. Não digo todas, pois isso não se refere às más ações; mesmo que assim fosse, tendes a luz da razão que vos faz diferenciar o bem do mal. Sendo livre para escolher, quem não se cansa e em seu querer prossegue, alcança a vitória e com o auxílio do Céu tudo vencerá. A Natureza mais poderosa vos domina e vos concede o raciocínio para que usando-o, não fiqueis sempre dependentes da vontade do Céu. Se, mesmo assim, o mundo se desviou do bom caminho, a causa está em vós. Disto, explicarei fielmente o que acontece: Das mãos do Criador surge a alma que, mesmo antes de sua existência já era por Ele amada; no instante em que foi criada, conhecendo apenas o amor do Deus, suprema alegria, ingênua e simples busca tudo que lhe dá prazer e qual criança inocente ora ri ora chora. Então, se prende a doçura dos mais frívolos prazeres, desviando-se, se freio não a impedisse de afastar a visão da justiça divina. O freio consiste nas leis. Portanto, leis existem; mas não quem as cumpra. Nem mesmo esse pastor que aos mais precede, que rumina essas palavras, mas não lhe nasce a unha fendida. (A comparação deriva da lei mosaica a qual permitia que se comessem apenas, os animais ruminantes e de unhas partidas. O ‘ruminar’, exprime sabedoria e a ‘unha partida’ a ação.) E, vendo o povo que o próprio guia se excede em busca do prazer dos bens materiais segue-lhe o exemplo, nada mais, além disto, desejando. Agora podes compreender que a causa de o mundo ter-se corrompido é o exemplo de má conduta dos governantes e não o enfraquecimento das leis naturais. Roma, que era exemplo para o mundo, tinha dois sóis a iluminar-lhe: o das leis do Estado e o das regras Divinas. Aconteceu que um apagou o outro e se juntaram: do Bispo o báculo e do guerreiro a espada; mal unidos, à força, mal andavam, não se respeitando mais naquela união forçada. Para reforçar o que digo observes a natureza: se a planta pela semente que essa produz. Valor e cortesia em abundância encontravam-se nas terras banhadas pelos rios Ádige e Pó, (a Lombardia e a Marca Trevisana) antes de chegarem, as atitudes de Frederico. (As guerras entre os Papas e Frederico II de Suábia.) Atualmente por ali, os que se envergonhavam de praticar o bem e de fazerem parte da liga dos corretos, podem entrar livremente pela região sem nada recearem. Contudo, ainda existe nesta terra, três anciãos que com seus costumes de vida antiga, se diferem dos novos; brevemente Deus os retirará dessa terra inimiga. São eles: Conrado de Palazzo, o bom Gherardo e Guido de Castal, chamado, segundo o estilo francês simplesmente, o Lombardo. A Igreja de Roma por fundir-se aos poderes antigos, cai na lama, enlodando a si e ao seu pesado fardo”.

Então eu lhe disse: “Marcos, Ouvindo tuas sábias razões, percebo porque partiu de Levi a Lei que exclui seus filhos de qualquer herança. (Segundo a lei mosaica, os descendentes de Levi, isto é, os levíticos – os sacerdotes – não podem possuir bens temporais.) Mas, qual Gherardo trazes à lembrança, que representa a glória e brasão da antiga gente, lançando censura a este século cheio de vícios?”.

Respondeu-me: “Quereis que eu continue a falar ou estais a me enganar! Pois, como posso acreditar que falando italiano, ignorais quem seja o bom Gherardo? Não o conheço com outro nome; por isso dou-vos como indicação o nome de Gaia, sua amada filha. Bem, a partir daqui não posso mais seguir convosco; Deus vos acompanhe! A fumaça já está menos densa e o dia clareando; devo voltar, pois o anjo está preste a se apresentar”.

Depois, afastou-se, sem nada mais querer ouvir.