O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O PARAISO- CANTO XV

 As almas dos combatentes pela fé em Cristo estão dispostas em forma de cruz, símbolo de martírio e de vitória. Do lado direito dessa Cruz, move-se um espírito e com paternal afeto saúda a Dante. É Caccaguida, seu tri-avô. Descreve, ele, a inocência dos costumes do seu tempo e lembra como morreu combatendo pelo sepulcro de Cristo, na segunda cruzada. Texto do Tradutor.

Dante e Beatriz estão no Planeta Marte.
 A atitude complacente demonstra a tendência ao amor que a caridade inspira enquanto a cobiça indica a inclinação à prática do mal. Aquela santa vontade impôs silêncio ao doce cantar mantendo em repouso as cordas afinadas pela mão do Supremo Criador. Como aqueles nobres espíritos poderiam atender aos meus apelos, se todos foram unânimes em silenciar? É justo sofrer para sempre, quem por amor aos bens terrenos renuncia ao amor divino. Às vezes acontece que no céu sereno e puro, de repente, vemos deslizar perante nosso olhar uma pequena faísca. Poderíamos dizer que essa estrela estivesse mudando de lugar se no ponto celeste onde surgiu aquela luz estivesse faltando alguma estrela.

 Dante escuta a voz do seu tri-avô.
 Pois foi assim que aconteceu quando do braço que à direita se estende até ao pé da Cruz, vi deslizar dessa constelação um dos astros que ali resplandecia. A pérola não se desprendeu do seu fio, mas pela brilhante linha desceu, qual chama a reluzir sob o alabastro. Com igual velocidade a alma de Anquises correu ao encontro de seu filho Enéas nos Elísios - segundo descreve o nosso grande Poeta - (Em “Eneida” Capítulo VI, Virgílio descreve que Enéas visitou nos Campos Elíseos a alma de seu pai Anquises).
Ó Sanguis meus! Ó superinfusa Gratia Dei; sicut tibi cui; Bis unquan coeli janua reclusa?”. (Ó sangue meu! Ó infinita Graça de Deus! A quem, senão a ti será aberta duas vezes a porta do Céu?). Assim falou aquele espírito. E minha atenção se firmou naquela pérola que falava; depois voltei meu rosto para Beatriz e olhando uma e outra vez, mais confuso ainda fiquei.
Nos olhos de Beatriz brilhava tal sorriso que fitando-a julguei ter chegado ao centro da ventura no eteno Paraíso. E aquele espírito, feliz no aspecto e na voz juntou-se a outras vozes pronunciando palavras de sentido tão profundo que não as pude compreender. Não de propósito, mas por necessidade foram suas palavras ditas obscuramente, pois o conceito estava acima do entendimento de um mortal. Quando o arco do ardente afeto se tornou menos rijo, foram suas palavras seguintes pronunciadas ao alcance do meu entendimento humano. “Louvado sejas Deus Uno e Trino, que benigno Te mostras para com minha família”. Depois ele continuou e atento pude distinguir estas palavras:
“Vens cumprir, ó filho, o meu longo e ardente desejo que adquiri desde quando pude ler no livro da eternidade, onde nada pode ser mudado. Revestido desta luz doada por Aquele que também concedeu asas ao teu sublimado vôo, posso ter acesso ao teu pensamento, pelo poder do Ser Primeiro que é a origem de tudo, assim como o número cinco ou o número seis pela mesma unidade se inicia (o número um). Não demonstras curiosidade em saber quem eu sou e porque me apresento assim com maior brilho que os outros que aqui estão. Agindo assim o fazes corretamente, pois o espelho refulgente desta vida eterna reflete o pensamento antes mesmo de ser formado e a todos nós se torna evidente. Mas para o sagrado amor que me deixa atento em perpétua visão, em mim se acederá e me dará contentamento se ouvir a tua voz franca, segura e alegre fazendo-me perguntas, revelando-me seus desejos, pois já antevejo qual a resposta que te darei”.
Então voltei a atenção para Beatriz; mas antes mesmo que eu falasse, acenou-me alegremente aprovando minha intenção de perguntar, fazendo com que se estendessem ainda mais as asas do meu desejo.
Comecei então a dizer: “Em cada um de vós, ó espíritos iluminados, o amor e o conhecimento vos foram incutidos desde os primeiros instantes que deixastes a vida terrena e de forma e quantidade tão idênticas que nenhuma comparação pode ser feita entre elas. Porém entre os mortais o afeto e o saber atuam de formas e quantidades diferentes, por motivos conhecidos por vós, mas que nós ainda não as compreendemos. Por isso sendo eu ainda mortal e sujeito a esta desigualdade, posso retribuir ao vosso bondoso acolhimento apenas com o ardente amor da minha alma. Assim sendo ó jóia resplandecente, me façais conhecer o vosso nome”.
Respondeu-me então com voz terna e suave: “Ó flor que eu ansiosamente esperava; do meu tronco brotaste primorosa”. (Quem fala é Cacciaguida, que foi tri-avô de Dante; morreu numa Cruzada em 1.173. Foi pai do primeiro Alighiero do qual derivou o nome dos Alighieri). E continuou: “Aquele de quem recebeste teu sobrenome, a mais de um século está se purificando no Purgatório. Meu filho foi o teu bisavô. Quando voltares a Terra deves ajudar a diminuir seu tempo de purificação no Purgatório com preces e boas obras. Florença vivia em paz, honesta e sóbria, cercada por antigos muros onde foram erguidos templos nos quais ainda hoje ressoam as horas. Não havia ainda por ali colares dourados, nem diademas, nem saias rendadas e cintos adornados que realçavam mais do que a beleza de quem os usava. Nascendo uma filha, esta não traria preocupações futuras ao pai; no tempo certo se casava e o dote adequava-se ao modo de vida de cada uma. Cada qual se contentava com o lar que possuía. Seus usos e costumes não tinham sido ainda corrompidos pelos hábitos de Sardanápalo (rei da Assíria, célebre por sua luxúria) que apresentava em público o que deveria se ocultar na intimidade de sua alcova. Não tinha ainda vosso Uccelatoio (monte próximo de Florença) vencido o Montemalo (monte Mário, de Roma) o qual separando o outro em suntuosidade, há de superá-lo na decadência.
“Cheguei a ver Bellincion Berti vestindo couro com botões de osso, assim como, sua mulher voltar do espelho sem qualquer pintura nas faces. Vi também os Nerlis e os Vecchio (as nobres famílias florentinas Nerli e Del Vecchio) vestindo peles simples, sem luxo, enquanto suas esposas, felizes, ocupavam-se da roca e do fuso. Ó ditosas! Nenhuma delas sofria a dolorosa ausência do esposo em viagens pela França, nem se preocupando com os encargos causados pela morte, porque seus jazigos já estavam preparados. Uma, o berço do seu filho embala mimando-o com aquelas palavras infantis que encanta o coração dos pais. Outras, enquanto na roca trabalham o fio, narravam aos filhos o que outrora acontecera em Fiesolo, em Troi e na antiga Roma. Naquela boa época causaria espanto ver-se entre vós uma Cianghella (Ciangnella dei Tosighi, mulher desonesta e de vida livre) ou um Lapo Salterello (jurioscolsulto florentino tido em conta de homem corrupto), tanto quanto hoje causaria a presença de Cornélia ou de Cincinato entre vós. Naquele tão belo viver da cidade, no convívio dessa gente honrada e unida, num doce lar modelo de paz, entre dores minha mãe Maria me recebeu. Na pia batismal recebi os nomes de cristão e de Cacciaguida. Tive como irmãos Moranto e Eliseu. Minha esposa nasceu em Val-di-Pado; dessa origem vem seu sobrenome. Na guerra, acompanhei o Imperador Conrado (Conrado III de Hohenstaufen, que chefiou a segunda cruzada) que me consagrou cavaleiro, tanto lhe agradaram meus atos. Com ele lutei contra o infiel (os maometanos) que o vosso direito oprime na Terra Santa por culpa do negligente Pastor (o Papa). Fui tirado do mundo por aquela torpe gente; pelo martírio que me trouxe ao Paraíso onde encontrei a paz eterna”.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O PARAÍSO - CANTO XIV

 Beatriz pergunta a um dos espíritos celestes, em nome de Dante se depois da ressurreição dos corpos, permanecerá a luz que emana de suas almas e se essa luz prejudicará a sua vista. O espírito responde que depois da ressurreição, a vista dos espíritos aumentará. Aparecem novos espíritos. Sem perceber, Dante se encontra no planeta Marte, onde estão aqueles que defenderam com armas a religião cristã. Ao o aspecto do Céu, vence toda a beleza passada, porque quanto mais se sobe, mais cresce o esplendor dos Céus. Texto do Tradutor
 Chegam ao Planeta Marte

Quando a alma gloriosa de Tomás terminou de falar, rápido me veio à mente a imagem da água em um recipiente, que, ao ser tocado no centro se move em direção à borda e da borda ao centro; isto me ocorreu pela semelhança entre o discurso e o que em tom grave e delicado disse Beatriz:
               “O que este homem precisava saber, não foi manifestado por sua voz e muito menos por seu pensamento. Aliás, ele nem imagina que ireis explicar a origem de outra verdade: se a radiosa luminosidade em que estais envolto permanecerá eternamente igual e, assim sendo, dizei se após o Juízo Final, quando tiverdes assumindo novamente vosso corpo ressuscitado, vossos olhos irão suportar a intensidade de tão radiante luz”.
           Como em certa dança grega, aqueles que giram ao redor dos outros elevam suas vozes e gestos, assim ocorreu nos círculos dos espíritos eleitos que ao ouvirem o piedoso pedido de Beatriz exultaram de alegria no cantar e dançar. Aquele que, ao se aproximar da morte sente medo por deixar a vida terrena para viver no Céu, é porque desconhece o encanto desta alegria eterna. Quem aqui reina é Uno, é Duplo, é Triplo (Deus) e permanece eternamente em três, em duas, em uma pessoa, porém não limitado, mas a tudo abrangendo. De cada círculo foi por três vezes entoado um hino de louvor - com tão suave melodia que por si só fora valioso prêmio. Então ouvi vindo do círculo menor, uma voz tão suave como deve ter sido a voz do Arcanjo Gabriel quando anunciou a Maria ter sido ela escolhida para ser a mãe do Filho Divino - responder assim (a voz era a de Salomão): “Enquanto a bem-aventurança do Paraíso existir estaremos revestidos da luz que nos circunda. A intensidade do seu brilho é proporcional ao ardor do amor que trazemos em nós, se igualando na Graça concedida por Deus. E quando formos novamente revestidos do corpo glorificado e santo, mais felizes e ditosos nos sentiremos, pois seremos mais completos, aumentando-se assim a luminosidade com que o Sumo Bem nos adorna a fim de que possamos vê-Lo na Sua Glória; por isto nossa visão será mais penetrante, maior em nós será a chama do amor e seu esplendor será mais reluzente. Quando o carvão é incendiado sua chama desprende intenso brilho, porém não oculta suas formas; do mesmo modo permanecerá em nós esse esplendor, porém deixando que seja visto o corpo ressuscitado que hoje permanece a dormir sob a terra. Nenhum de nós será ofuscado pela intensidade da luz porque os nossos sentidos estarão adaptados a quanto prazer nos for determinado“.
          Então os dois coros, alegres e apressadamente exclamaram “Amém” demonstrando assim o quanto desejavam reaver seus corpos, não para satisfação própria, mas por amor aos seus pais, suas mães e todos os entes queridos que eles conheceram e amaram, antes de se tornarem luzes eternas. De repente, tal como ocorre ao cair da tarde quando a noite se aproxima aumentando as sombras e no céu surgem estrelas cuja luz aos nossos olhos se apresenta hesitante, assim me pareceu ter visto a brilhar novas e indecisas luzes que também girando, moviam-se ao redor daqueles belos círculos. Ó verdadeiro fulgor do Espírito Santo! Quando subitamente te mostraste, fulgurante, meus olhos vencestes deixando-os deslumbrados.
Porém, naquele instante, eu via Beatriz tão bela e sorridente a brilhar tão intensamente, que minha mente não consegue recordar com perfeição. Do seu olhar refletia tão poderosa força que a elevou e com ela me vi transportado ao mais alto e luminoso Céu (ao Planeta Marte). Tive a certeza de que havia subido, Pelo purpúreo esplendor dessa nova estrela (Beatriz) que notei de um rubor nunca visto. Então, do mais profundo do meu ser e com imensa humildade, louvei a Deus por mais essa graça a mim concedida. Não havia ainda exalado do meu peito todo o ardor de uma prece, quando convencido fiquei de que ela fora aceita e ter sido julgada propícia, pois perplexo me vi entre dois raios de luzes tão esplendorosos, tão rubros que exclamei: “Ó Hélios (o Sol) quão extraordinariamente brilhas!” A Via-Láctea que em suas estrelas é ou mais ou menos brilhante em algum ponto de seu espaço permanece misteriosa, deixando os sábios em dúvida por não saberem explicar qual seja a origem de sua natureza; igualmente em Marte, qual constelação reluzindo, aqueles raios cruzando-se em retângulos iguais, formava o sagrado Sinal-da-Cruz.
          Ainda mantenho gravada na memória a sublime visão; naquela cruz vi lampejar o Cristo, mas não consigo descrevê-lo com palavras. Quem recebe a Cristo e na jornada da vida O segue, depois de tê-Lo visto fulgurar naquela Cruz saberá desculpar-me pelo que eu não souber descrever. De uma a outra extremidade dos braços e, de cima para baixo  e debaixo para cima da Cruz, milhares de luzes se moviam indo e voltando; ao se encontrarem no centro da Cruz ou ao se afastarem, aquelas luzes resplandeciam ainda mais, como se costuma ver em crepúsculo, por entre galos e folhas de árvores, rápidos ou lentos, curtos ou longos, retos ou ondulados, a bailar em feixes de luz, em aposentos ao qual a arte e o engenho homem quis dar frescura e sombra. E como da lira e da harpa de cordas bem afinadas, se desprendem doces melodias que encantam até os ouvidos de quem desconhece notas musicais.
Assim, desse luzeiro que ali eu via em forma de Cruz, extático escutava sem compreendê-la, angelical harmonia. Deduzi tratar-se de altos louvores, porém compreendi apenas as palavras – “Ressuscita e triunfa” – confusamente era que em mim soava a melodia. Ouvi-a; porém tão enlevado ainda me sinto que não consigo ter outros sentimentos que me prendam a atenção senão a perplexidade do doce cantar.
      Tal pensamento pode parecer ousado se comparar essa alegria, com a que sentia na contemplação do olhar de Beatriz, onde minha alma encontrava sempre a paz. Porém, deve-se levar em consideração que estes lindos olhos iam ficando cada vez mais belos à proporção que íamos subindo, e eu não podia fitá-los.
Culpando-me, busco o perdão ao falar a verdade. Não escondo que ao contemplá-la sentia o prazer do mais puro encanto; prazer que tanto mais purificado fica quanto mais vou me elevando de astro em astro. 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O PARAISO - CANTO XIII

O Poeta descreve a dança das duas coroas de espíritos celestes. S. Tomás resolve a seguinte dúvida de Dante: Adão e Jesus Cristo são seres perfeitos por serem obras imediatas de Deus. Merecimento do Rei Salomão. Mas ele não pode ser comparado nem com Adão nem com Cristo. Conclui o Santo advertindo do perigo dos juízos precipitados e, do quanto é sujeito a enganar-se quem julga as coisas pelas aparências. Texto do Tradutor.

Quem desejar compreender o que pude ver deve conservar minha narração bem gravada na memória como se tivesse sido esculpido em rocha. Imagine estar vendo quinze astros distribuídos por diversos pontos da abóbada celeste, irradiando tanta luz que o firmamento ficasse todo iluminado e nesse espaço, girando sempre, noite e dia, duas imensas e fulgurantes rodas de carro cuja claridade ultrapassasse a dos quinze sóis. Agora imagine estar olhando para o centro dessas rodas com se estivesse olhando através da boca de uns cones firmando o olhar em cada uma, bem no ponto onde se localiza o eixo em torno do qual vai girando o primeiro círculo; considere essas duas rodas como sendo astros que formaram constelação idêntica a que surgiu no céu desde quando Ariadne foi levada pela morte. (Ariadne, filha de Minos, depois de morta foi transformada por Baco, numa constelação).  Agora, imagine aqueles dois círculos na celestial altura, um dentro do outro, porém girando em movimentos contrários e misturando seus raios de luzes de diferentes cores. Mesmo imaginando todo esse deslumbrante cenário, o leitor terá apenas pálida idéia de como eram as duas constelações que giravam em torno de nós! São verdades que vão além da nossa compreensão.
Esse mistério ultrapassa tanto a compreensão humana quanto o lento correr das águas do Rio Chiana (rio da Toscana). 
Nesse bailado e cantar, nem Baco nem Apolo estavam sendo louvados (hino que os antigos cantavam nas festas de Apolo), mas sim a Santíssima Trindade, de uma só essência e numa delas o Deus Humanado. Tendo os cânticos e o bailado sido interrompidos, as santas luzes voltaram para nós a sua atenção.
Então, em meio ao silêncio que os dois coros fizeram surgiu a mesma voz que anteriormente narrara a vida do “Mendigo de Deus” (é a voz de Tomaz de Aquino  que falara sobre Francisco de Assis).
Falou: “Ao te esclarecer a verdade, muitas das tuas dúvidas foram solucionadas; porém o Amor divino me impulsiona a falar sobre as outras que ainda restam. Acreditas que no peito onde a costela foi tirada para formar os gentis lábios que pela culpa da gula e desobediência transformou em morte, a vida da humanidade inteira; (o peito de Adão, de cuja costela foi tirada Eva, a qual desobedecendo as ordens divinas, comeu a maçã que foi fatal para a humanidade); crês também nesse outro peito que, sofrendo rude golpe pela aguda lança a restituiu; e pela decisiva retirada do peso da culpa transformando a morte em vida, o equilíbrio da balança da Justiça Divina foi restabelecido. (Jesus Cristo cujo peito foi aberto pela lança).
"Quanta sabedoria poderia ser concedida à humanidade pela Inteligência Divina que existência deu a um e a outro. Foi esse o motivo de eu ter dito ‘tão profundo e extenso foi seu saber que a tão alto, na Terra, ninguém se elevou’ referindo-me ao quinto esplendor que aqui se encontra. (O rei Salomão). Agora fixa tua atenção em minhas palavras e irás compreender que a tua crença e a minha afirmação são tão exatas na mesma verdade, como o ponto que define o centro de um círculo. Explico-te: O que não morre (Jesus Cristo) e o que pela morte é consumido (Adão = o ser humano) são iguais em perfeição, pois foram gerados pela Ideia esplendorosa de Deus que, através deles, seu amor nos revela; por isso, essa luz viva vinda do Seu Foco e do qual não se desprende (o Pai), em si mesmo se Reflete e a Ele retorna como luz em espelho. Esse retorno é o Amor que existe entre o Foco (o Pai= O Primeiro) e o Reflexo (o Filho= O Segundo) que o Terceiro fica sendo (o Espírito Santo é o Amor que une o Foco ao Reflexo); em nove Céus se dividindo (os nove coros angélicos) mantém a Unidade eternamente inseparável (é a Santíssima Trindade). Daí vai baixando gradativamente às últimas potências, diminuindo tanto o ímpeto da benevolência, (a força da graça) que, ao final, vai gerando rápidas existências. “Existências” a palavra que indica todas as coisas criadas e que o Céu em seu movimento vai multiplicando, com ou sem semente. Nem sempre a matéria ou substância de que é composto o universo, mostra a ideia divina em relação a criação. Disso vem o resultado de que plantas da mesma família produzam frutos desiguais e que os homens nasçam com personalidades diferentes. Se a matéria fosse igual em toda a criação e se a graça vinda dos Céus não diminuísse em relação a cada ser criado, a virtude divina seria igual para todos (homens, plantas, animais, minerais, etc). A natureza, porém apresenta suas imperfeições tal como tal como o artista que, embora dominador de sua arte, ao executá-la treme-lhe as mãos. Por isso o ardente Amor Divino (o Espírito Santo) a Clara Visão (o Filho) e a Primeira das Virtudes (o Pai), portanto a Santíssima Trindade faz com que toda a criação se torne perfeita. A Terra foi criada com tal perfeição a fim de receber o mais perfeito dos animais (o ser humano) – e permanecendo perfeita concebeu a Virgem Maria da qual o corpo de Divino Filho seria formado. Nesse ponto concordo com o teu pensamento de que a natureza humana jamais apresentou e nem apresentará seres mais perfeitos do que nestas duas criaturas (Adão e Jesus Cristo). Se por ventura tivesse eu concluído aqui meu discurso, com razão me terias perguntado: como então, Salomão pôde ter sido igual a eles em sabedoria? Deves, pois, ser informado da verdade: imagines de quem se tratava e a quem Deus disse: ‘Pede’! Falei bem claro para que tua mente melhor compreendesse que foi o Rei quem pediu sabedoria para bem governar. Não quis ele saber qual a quantidade de inteligências angélicas que dão movimento aos Céus, nem se de uma proposição maior e outra menor, a comparação seja a base da conclusão; ou se de um triângulo sem ângulo reto, se pudesse traçar um semicírculo. Assim, entenderás que, referendo-me a sabedoria sem igual, falava eu dos reis, os quais sendo muitos, poucos são os sábios e prudentes.”
E continuou: “Tenhas sempre em mente as palavras que te disse; sirva-se delas como chumbo preso aos pés; não vás rápido demais ao fim; imitas o caminhante que lentamente andando chegou primeiro que o mais apressado. Não te precipites em dizer “sim” ou “não”, pois se revela o mais tolo entre os tolos, aquele que sem refletir, afirma ou nega. Daí vem muitas vezes o prejuízo causado pela opinião geral que julga pelo impulso da paixão e não da razão. Quem em vão do porto se desvia, não retorna ileso da jornada. Quem busca a verdade, mas sua virtude não pratica, corre o risco de se perder. A prova confirmada por fatos dão Paménedes, Melisso e Brisso (filósofos gregos, rebatidos por Aristótelis) e muitos outros que partiram nessa viagem sem saber qual rumo seguir. Assim fizeram Ario, Sabélio (herejes condenados pela Igreja) e tantos outros que, como espadas, mutilaram o sentido dos textos da Sagrada Escritura.
“Quem se apressa no julgar, imita aquele que pretende calcular o valor da safra de trigo quando a seara ainda não está madura. Durante o inverno vi ramos cobertos de espinhos, para dar castigo ao que imprudente, lhe os tocassem; depois, na primavera, vi que esses ramos lhe ofereciam belas rosas. Vi também barco a navegar feliz o imenso mar e naufragar ao se aproximar do porto já alcançado. Não queiram dona Berta e dom Marinho (nomes de pessoas comuns) que, embora um furte e outro dê esmolas, Deus vai antecipar seu julgamento. Pode ser que durante a jornada da vida um se erga e o outro caia".

domingo, 28 de abril de 2013

O PARAÍSO-CANTO XII


Terminando Stº Tomás de Aquino de falar, ajunta-se a primeira coroa de doze espíritos resplandecentes, mas uma coroa de igual número de espíritos. São Boaventura, franciscano, tece louvores a S. Domingos. Depois dá notícias acerca de seus companheiros. Texto do Tradutor.

Assim que a nobre luz terminou de proferir sua última palavra, a coroa luminosa girou como anteriormente. Não havia ainda completado uma volta inteira, quando outras luzes apareceram formando um círculo maior ao redor do primeiro e ambos entoavam acordes e se movimentavam em perfeita harmonia. Esse canto superava o das Musas e das sereias. Quanto ao esplendor das luzes que dos dois círculos irradiava, nas cores se igualava as do arco-íris, escrava de Juno a surgir entre nuvens; eram tão semelhantes entre si que pareciam ser reflexo uma da outra e tão unidas ficavam, como se fossem uma só, tal como ocorreu com a que por amor foi consumida assim como as névoas são pelo sol da manhã, (a ninfa Eco que pelo amor a Narciso desapareceu dentro da própria voz).
É desse arco de luzes (do arco-íris) que vem a crença da promessa firmada entre Deus e Noé de que a terra não mais seria castigada com outro dilúvio.  
As guirlandas de sereno róseo iam girando em torno de nós nessa festiva dança entre harmonioso canto e flamejantes luzes quando, de repente, interromperam a festa como se obedecendo a um único comando, assim como acontece com nossos olhos que se abrem e fecham vigilantes; e do interior de uma das luzes elevou-se uma voz que fez com que para ela rápido me voltasse como a agulha da bússola se volta em direção à estrela polar. (A voz é a alma de São Boaventura).
São Boaventura - Google
Disse: “A imensa graça que me envolve em luz me inspira a te falar de outro Mestre que foi motivo de grande louvor; onde de um se recorda o outro tanto brilha. Ambos militando sob a mesma causa, na mesma glória resplandecem agora. O exército de Cristo, arduamente organizado, pequeno e cauteloso seguia Seu estandarte; e quando na milícia o desânimo chegava por falta de suprimentos indispensáveis a sobrevivência, somente por graça do Eterno Imperador, (Deus) provimento recebeu; e, para salvação da Esposa (a pobreza) enviou um duplo vencedor que, ao erguer a voz recobra a coragem daquele desanimado exército. Naquela terra (na Espanha) onde na primavera o suave vento convida a se abrirem novas flores que aos poucos se reveste toda a Europa, na região onde se embate furioso o mar e que o sol terminando o seu curso às vezes esconde seus ardores, em ditoso solo está Calaruega, que protegera o poderoso escudo no qual um leão subjuga e o outro é subjugado. (O escudo dos reis de Castela; representava dois leões: um abaixo e outro, acima de um castelo).  
Domingos de Gusmão -Google        

Ali nasceu o heroico lutador, esse incansável amante da fé cristã, que ao mesmo tempo em que complacente era com seus soldados, guerra declarara a maldade. A virtude foi tão intensa em seu espírito, que, ainda se encontrando no ventre materno, sua mãe lhe previu o futuro. (Durante a gravidez  a mãe de São Domingos viu em sonho um forte animal cujo pelo era branco e negro – as cores da Ordem Dominicana – carregando na boca uma tocha que incendiava o mundo).

“Quando veio se confirmar a união entre ele e a Fé na fonte batismal, sua madrinha que respondia por ele viu em milagrosa visão a farta colheita que ele e seus companheiros teriam na messe Divina. Como portentosa demonstração a que a piedosa alma estava destinada, um Anjo do Senhor desceu a fim de chamá-lo: Domênico e eu dele falo como do operário que Cristo elegera para ajudá-Lo no labor da vinha. Se mostrou ao mundo como servo e enviado de Cristo. A primeira paixão nele manifestada foi pela primeira lei que Cristo nos deu (Amai-vos uns aos outros).
Muitas vezes sua ama o encontrou prostrado no chão em profundo silêncio, porém bem desperto, como a dizer: - “para isto fui destinado”. Oh! Como, certamente seu pai foi feliz! Sua mãe foi realmente Joana, (Joana em hebraico tem o significado de “portadora de Graças”) se for certo o significado que lhe dão! Em pouco tempo tornou-se sapiente doutor; não, estudando nos livros de Ostiense e Tadeu (Ostiense: o cardeal Henique de Susa que comentou os “Deleteres” – Tadeu Andriotti,: florentino, médico ou segundo outros comentadores, Tadeu dei Pepoli, jurista bolonhês), mas buscando com afã os ensinamentos de Jesus, tornou-se assim guarda vigilante da santa vinha, que, havendo pouca dedicação ao dela se cuidar, rápido se perde. Quando esteve em Roma que era era compassiva para com  os justos e hoje vagueia sem rumo por culpa do que a governa, (por culpa do Papa Bonifácio VIII) não pedia ajuda financeira, nem juros, nem dízimos, pois esses pertencem aos pobres; porém suplicava consentimento para combater erros contra a doutrina de Cristo e proteger a semente da qual brotaram as vinte e quatro flores que diante de ti estão, contra os prazeres matérias da vida. (defenda a fé de que se alimentaram os espíritos dos vinte e quatro teólogos que estão na presença de Dante).
“Com força de vontade, santa pregação e zelo apostólico, se lança a difícil evangelização que o mundo tanto se admira. Dessa caudalosa nascente brotaram rios que até aos dias presentes continuam regando os jardins do mundo católico e aos seus arbustos dão vida e força. (Jardim, etc., em sentido figurado). Assim, ele foi uma das rodas que conduzia o carro onde estavam os defensores da Santa Igreja.
 “Do grande mérito do outro, antes de mim já te falou Tomás; e suas palavras, foram brilhantes. Porém o enorme sulco deixado por aquela roda ficou em desamparo tal, que onde havia flores o lodo tristemente domina. Hoje vê-se a sua família de tal modo desviada do caminho aberto por ele, que de todo esqueceu as pegadas. Logo se terá a prova da má cultura na seara; em vez de ir ao celeiro, sendo erva daninha será levada pelo vento. Quem nos escritos atentamente lesse, encontraria em algum lugar, a seguinte frase: - “sou, como sempre fui, isento de impureza”. Em Casele e Água-Spart (alusão a divisão dos franciscanos em dois partidos: um chefiado por Ubertino de Casela e outro por Mateus d´Acques-sparta) também não se viu coisa igual; lá, as normas do mosteiro são interpretadas de tal forma, que um, de covarde foge e outro, exagerado, não sai do lugar.
“Sou Boaventura natural de Bagnoregio; ao exercer elevados cargos sempre rejeitei o tratamento especial deixando os interesses materiais em segundo lugar. Naquela luz ao lado de Agostinho está Iluminato, (Agostinho e Iluminato: dois companheiros de S.Francisco) que foi da Ordem dos Irmãos Descalços; cada um, nas vestes da pobreza, por Deus se inflama. Vê também o valoroso Hugo de S. Vitor, bem como Pedro Mangidore e Pedro Ispano, (os três foram egrégios teólogos) todos famosos por seus doze livros editados. Vê também, Profeta Natan (o profeta que repreendeu Davi) e o metropolitano João Crisóstomo (patriarca da Igreja) Anselmo, (Stº Anselmo, bispo de Canterbury) e também o famoso Donato (gramático latino) soberano na arte do falar. Vê também ali, resplandecendo, Rábano e ao seu lado, o abade calabrês Giovachino, dotado de espírito profético. (Rábano e o Abade Giovachino, escritores sacros). As sábias palavras de Tomás de Aquino referindo-se ao excelso paladino levaram a mim e a todos que aqui estão, a cumprimentá-lo amorosamente”.


terça-feira, 26 de março de 2013

O PARAISO - CANTO XI


Dante elogia a vida contemplativa. As palavras proferidas no canto anterior por Stº Tomás criam duas dúvidas no ânimo do poeta. O santo, tratando de resolver a primeira, esboça a vida de São Francisco de Assis.Texto do Tradutor.

 Tomaz de Aquino- Google
Ó confusas aspirações humanas! Em falsas ilusões se envolvendo o homem tende a prender-se ao chão. Uns se escondem por trás das leis; outros buscam conceitos, buscam honrarias; um faz-se sacerdote; outro governa usando de força ou fraude, tirando proveito do mandato em benefício próprio ou dos amigos e muitas vezes entregando-se aos deleites da vida e a ociosidade! Mas eu livre dessas preocupações terrenas, com Beatriz, fui elevado aos Céus, sendo lá acolhido com imensa glória. Cada um daqueles espíritos luminosos voltava ao círculo ocupando o lugar onde anteriormente estava, ficando firme a brilhar, qual círio em candelabro. Então, do centro do clarão que antes me falara suave voz escutei, (é a voz de Santo Tomás de Aquino) enquanto sua luminosidade aumentava; assim dizia:  

Francisco de Assis-do Google
 “Ao fitar a Luz Eterna que em mim se reflete, compreendo claramente o que estás pensando e a sua causa. Desejas que eu afaste da tua mente a confusão que se formou quanto ao que há pouco te disse: - ‘a Tão alto, na Terra, ninguém se elevou’ – e ‘a voz que conduz a alma daquele que do Bem não se afasta. – Está aqui a explicação que espera: - ‘a tão alto’... A Providência Divina governa o mundo com tanta sabedoria, que perturbada sente a mente de quem tenta compreender Seus mistérios. E também: - ‘a voz daquele que conduz’. Essa mesma Providência doou à Esposa d´Aquele que em alta voz a ela se uniu quando na Sagrada Cruz estava, para fortalecer-lhe o espírito e a fé, dois príncipes (S.Domingos e S. Francisco de Assis) a fim de que o abençoado caminho lhe mostrassem (doou à pobreza). Um deles se dedicou a ela (a pobreza) com o ardor de um Serafim. (S.Francisco de Assis). O outro, com o brilho e a glória de um Querubim espalhou sobre a terra seus conhecimentos, (S.Domingos) Porém de um somente falarei, pois em um se encerra o que ao outro maiores louvores seja aplicado. Quem der aos dois o mesmo tratamento, não comete enganos, pois ambos seguiram a mesma meta.
“Entre Tupino e o rio que desce da alta montanha (Rio Chiascio), lugar escolhido mais tarde para eremitério de Santo Ubaldo, fértil encosta pende de alto monte. É dali que, pela Porta do Sol chegam a Perúgia o frio e o calor, enquanto no lado oposto da montanha Nócera e Gualdo padecem cruel jugo. No lugar onde o declive é menor, nasceu para o mundo um sol tão radiante como o que ao Ganges, às vezes ilumina. Quem desse portentoso lugar fale, não diga Assis, que pouco significa; chame o glorioso berço do “Oriente” (berço do Sol). Quando “essa luz” era ainda criança e tinha todo o conforto a receber dos seus, já suas virtudes se apresentavam. E ainda adolescente, por amor a aquela dama, (a pobreza) entrou em conflito com seu pai que lhe fechou as portas como se morto estivesse. Então na Corte Episcopal e na presença de seu pai a recebeu por esposa amada, devotando-lhe amor cada vez mais forte. Vivera ela (a pobreza) viúva e desprezada por mais de onze séculos e por nenhum outro amante fora desejada. (O primeiro esposo da pobreza foi Jesus; por isso ela ficou viúva mais de onze séculos até Francisco de Assis a tomou por esposa). Não significa a mesma coisa afirmar que aquele guerreiro temido pelo mundo a tenha encontrado no lar de Amíclas; (Julio César ficou admirado pela alegre pobreza do pescador Amiclas).
Também não é o mesmo, proclamar que ela, (a pobreza) inteiramente fiel e na presença de Maria que ficara ao pé da Cruz tenha subido ao madeiro com Cristo. Para que minha linguagem se faça mais clara, lhe direi o nome dos amantes: Francisco e Pobreza. A alegria no semblante, a ternura no olhar e a perfeição no amor ao próximo, davam a todos edificantes lições.
Aquela paz, o venerável Bernardo (primeiro companheiro de S. Francisco) desejou ardentemente, sendo o primeiro que a ele descalço correu, e pensava estar sendo vagaroso. Ó ignorada abundância! Ó verdadeiro e único Bem! Descalço foi também Egídio, foi Silvestre; (companheiros de S. Francisco); escolheram-na (escolheram a pobreza) porque tinham como guia seu esposo.
“Dali parte para o mundo aquele pai e mestre com a sua terna esposa e santa família. Não se sentia humilhado, nem vaidoso, nem se assustava por ser o obscuro filho de Bernardone (Pedro Bernardone, pai de S.Francisco) e nem por sofrer desprezado. Porém, cheio de coragem, mostrou o consistente propósito à Inocêncio. (Inocêncio III, Papa que deu autorização à Ordem Franciscana em 1214) de quem obteve a primeira aprovação ao regimento austero e verdadeiro.
“E quando progrediu, a família pobre daquele cuja vida heróica é agora aclamada no Céu com louvores de anjos, foi agraciada pelo Espírito Santo com mais uma vitória concedida por Horácio, que atendeu aos anseios daquele corajoso pastor. (Horácio III que em 1223, pela segunda vez aprovou a Ordem de S. Francisco). Em seguida, sem temer o martírio vai até o Egito para, na presença do soberbo Sultão, anunciar Cristo e Seu Evangelho (São Francisco, em 1219 esteve no Egito tentando converter os infiéis, mas logo voltou para a Itália). Percebendo então que o povo não aceitava a nova fé, para que seu zelo não ficasse sem proveito voltou para a grande quantidade de almas italianas. Foi então que, sobre duro penhasco entre o Rio Tibre e o Arno, (sobre o Monte Alverne) o derradeiro selo Cristo lhe pôs. E durante dois anos ele o apresentou em seu corpo. (No Monte Alverne, Francisco recebeu as cinco chagas de Jesus crucificado e as manteve em seus pés, mãos e peito durante dois anos, quando morreu). Quando  Deus o chamou para junto de Si para dar o merecido prêmio por seu desvelo e amor ao próximo, Francisco recomendou aos seus irmãos e herdeiros aquela senhora que tão ternamente amara (a pobreza), para lhe terem sempre fiel afeição, pedindo aos irmãos que seu corpo fosse sepultado na terra nua, sem qualquer outra proteção.
Imaginas, pois, quem Deus julgou digno de continuar conduzindo por alto mar a Santa Barca comandada por Pedro; a tarefa coube ao nosso Patriarca; pois quem aos preceitos, fiel obedece arrecadar tesouros sabe! Mas o seu rebanho desejava nova pastagem e tanto é por esse desejo impelido, que em diversos campos apareceu. Quanto mais cada ovelha é seduzida pelo pérfido e fútil atrativo mundano, tanto mais ao redil retorna. Temendo o passo decisivo, poucas se acolhem ao pastor. “O pouco pano com que se vestem, para elas já é o bastante”.
“Se claro te falei; se me ouviste com atenção e guardaste tudo na memória, ao menos em parte satisfiz ao teu desejo; pois bem vês que pelo ramo se conhece a planta e a razão está neste argumento: - “Encontra salvação aquele que não se desvia do caminho do Bem”. 

domingo, 3 de março de 2013

O PARAÍSO - CANTO X

Depois de admirar a infinita sabedoria de Deus  na criação do universo, narra o Poeta como,  sem aperceber, se encontrou elevado ao Sol, em que estão as almas dos doutos na teologia. Doze espíritos mais reluzentes o circundam e um deles São Tomás de Aquino, revela o nome dos seus companheiros. Texto do Tradutor.
Dante e Beatriz chegam ao Sol
Deus Pai, o primeiro e inexplicável Poder a contemplar Seu Filho por meio do Espírito Santo que procede de Um e de Outro eternamente, criou o visível e invisível de modo tão perfeito que nossa razão nunca poderá deixar de adorar o seu Autor.
O leitor erguendo o olhar para o alto e examinando com atenção o ponto onde a linha imaginária do equador se cruza com a das constelações do zodíaco, poderá imaginar a grandeza da obra que o Criador, por tanto amá-la nela sempre atento tem Seu divino olhar. Veja como desta parte se estende em linha obliqua a faixa que transporta os planetas cujos benefícios o mundo exige e espera. Não fosse assim oblíqua essa estrada, (a Via Láctea ou Caminho de São Tiago) para o Céu seu poder seria inútil; e aqui na Terra sua potencia não existiria. Se a inclinação desse caminho fosse um pouco mais ou menos diferente do que é, a ordem estabelecida no universo desapareceria. Caro leitor experimente fazer juntamente comigo pausada meditação sobre a grandeza do pouco que lhe apresentei. Te dei apetitoso manjar; serve-te dele se te agradou. Quanto a mim, o assunto sobre o qual escrevo não permite nem por um instante que dele minha atenção se afaste. 
O mais poderoso ministro da natureza, que transmite para a Terra a influência do Céu e faz com que o tempo seja medido pela sua fulgurante luz (o Sol), se aproximava do ponto onde neste Canto já me referi, e se voltava para o ponto onde mais cedo as trevas são extintas. (O sol do lado leste da terra). Já me encontrava no cento deste astro e não havia percebido, assim como alguém não conhece seu pensamento quando na mente ainda não surgiu.
Beatriz estava mais luminosa, mais refulgente; e isso aconteceu mais rápido do que da vez anterior. Se antes ela já era radiosa, naquele momento a intensidade de sua luz superava a do Sol. Procurarei usar palavras que possam me auxiliar, a fim de descrever da forma compreensível possível, o que vi; porém pode-se acreditar no que digo e desejar vê-lo. Não fique o leitor decepcionado ao perceber quão pequena é a criatividade da minha imaginação quando a tanto se elevar quisera. Ali no quarto Céu (no Sol) resplandeciam as almas que foram determinadas pelo Deus Pai a permanecerem contemplando o inefável espetáculo da Trindade. Beatriz me disse: “Humildemente agradece ao Sol dos Anjos tamanha bondade ao permitir que ao esplendor do Sol visível te eleves”. Coração de mortal algum se sentiu tão piedoso e devoto ao carinhoso convite, e tão decidido a expressar a Deus tão imensa gratidão. E naquele instante meu amor por Ele foi tão intenso, que ultrapassou o meu amor por Beatriz. No entanto, isso a ela em nada desagradou, pois no seu sorriso e no seu olhar resplandeceu tanta luz que, do êxtase profundo em que me encontrava, fui desligado.
Então vi luminosos e intensos clarões ao nosso redor formando um círculo. A suavidade de suas vozes superava a intensidade das luzes. É assim que vemos a filha de Latona (Diana ou a Lua) circundada desta mesma coroa quando o ar no espaço úmido da noite reflete os raios do luar.
O Reino dos Céus de onde estou retornando (o Paraíso) está adornado de raros e preciosos encantos que somente ali podem ser apreciados, portanto impossível é descrevê-los com realidade. As vozes são tão harmoniosas que transmitem a felicidade eterna a quem escuta. Assim, aquele que não se esforça em merecer ir para lá, age como quem espera ouvir um mudo contar estórias. Aquela coroa de luzes, cantando, circulou três vezes ao nosso redor, como astros que em torno do seu pólo vão rodando. Então, semelhantes a damas que, dançando, de repente param e em silencio aguardam o início de outras músicas de novo ritmo para continuar a dança, assim aqueles sois pararam em silencio. Então uma voz vinda daquele círculo luminoso me falou:
“O amor que da Graça emana e sublime se eleva pelo Amor Maior, (Deus) em ti se reflete com tal intensidade te conduzindo pela celestial escada a qual faz retornar quem por ela desce, que,  qualquer um de nós vendo tua a alma sedenta de saber essa água te negasse, qual corrente de água represada, irmão, livre não seria. Contemplando-nos, ficas desejando saber como é formada a coroa de luzes que circunda a formosa Dama que, protetora, pelos Céus te guia. Fui cordeiro do rebanho santo que na voz de Domingos conduz a alma daquele que do Bem não se afasta. Sou Tomás de Aquino (santo teólogo da ordem dos dominicanos – 1225-1274). Á minha direita está, de Colônia, o grande Alberto (o célebre teólogo Alberto Magno) a quem devo o carinho de irmão e mestre. Se desejas conhecer quem foram os outros que aqui estão a brilhar, no santo círculo fixa o olhar e atento acompanhe minha voz: Nesse esplendor que sorri jubiloso está Graciano (Graciano de Chiuse, em Toscana; escreveu no século XII um volume de Cânones eclesiásticos que foi chamado o Decreto de Graciano) que no dois foros, (o civil e o religioso) digno se fez de estar no Paraíso. Aquele outro ornamento desta coroa de luzes, foi Pedro que semelhante a pobre viúva do Evangelho, deu à Santa Igreja rico tesouro (Pedro Lombardo, bispo de Pais, morto em 1164, que ao oferecer à Igreja o seu livro “Sentenciarum” comparava-se com a viúva do Evangelho de S. Lucas, cap, XXI). O quinto clarão, cujo esplendor ultrapassa os demais (o sapiente rei Salomão, filho de Davi) se exaltou tanto em sabedoria, que o mundo ainda busca sua inspiração. Tão profundo e extenso foi seu saber que a tão alto na Terra, ninguém se elevou. Ao seu lado está essa radiante luz que na terra, sua principal ocupação foi a de procurar conhecer a natureza dos Anjos. (Dionísio Areopagita, que escreveu uma obra intitulada de “Coelesti Hierachia”) Naquele clarão menor tranquilo e brilhante, sorri esse advogado dos cristãos da época de Agostinho, que tão útil foi no seu escrito. (Pedro Osório, que aconselhado por Santo Agostinho, escreveu a “História” em defesa da religião cristã). Se com os olhos da mente tens me acompanhado nestes louvores, do oitavo clarão saberás agora: nos fulgores do Supremo Bem se eleva essa alma santa; (Severino Boécio, autor do livro “De Consolatione  Philosophiae”, aprisionado e depois morto por Teodorico, em 524). Havendo demonstrado os julgamentos errados do mundo e seus rigores, seu corpo jaz em Cieldauro; sua alma chegou à paz divina depois de amargurado exílio e impiedosa morte. Mais adiante em cada chama purpurina, resplandece Beda, Isidoro e Ricardo (Ricardo, padre da Escórcia; Beda, bispo inglês; Isidoro= Santo Isidoro de Sevilha. Os três doutores teólogos) cujos pensamentos se aperfeiçoaram além do conhecimento humano (na teologia e na filosofia). Este de quem tua vista se despende a mim retornando, julgou ponderado e cautelosamente, que a morte sendo rápida, trás grande benefício; foi Singer que agora aqui brilha eternamente; outrora, Na Rua Fouarré, lera verdades, que provocou grande ódio" (Singer de Barbante, professor de teologia na Universidade de Paris, no século XIII a qual tinha a sua sede na Rua Fouarré).
E, qual relógio que nos desperta na hora em que a Esposa do Senhor (esposa de Deus) dá inicio ao dia no retinir dos sinos, inundando a devotada alma com agradável som que fervorosa o escuta, assim eu vi a gloriosa coroa de estrelas se movimentando e cantando com tal suavidade de vozes, que imagino haver igual somente no Paraíso celestial.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

O PARAÍSO - CANTO IX

Depois de Carlos Martel, fala a Dante Cunizza de Romano, irmã do tirano Ezzelino. Prediz-lhe iminentes desventuras na Marca de Treviso e de Pádua, e uma negra traição do bispo de Feltre Folco de Marselha manifesta-se a Dante e lhe indica a alma resplandecente de Raab que favoreceu os hebreus, na conquista da Terra Santa. Fala com austeridade contra Florença e contra a Cúria Romana. Texto do Tradutor.

Ainda em Vênus

Depois de Carlos ter, com bondade, esclarecido várias dúvidas falando-me sobre as traições e enganos que atingiram sua descendência, para encerrar o assunto disse-me. Porém “Cala-te! Deixa passar os anos! Somente posso dizer que justo pranto há de vir, por vingança aos vossos danos”. E aquele iluminado espírito voltou-se novamente para o Sol que de júbilos o enchia, sendo Ele o Bem de tudo e de todos. Ó iludidos mortais! Raça impiedosa, que mergulhando em vãos pensamentos os corações desvia do Supremo Bem! Depois vi outro clarão se encaminhando em minha direção, cuja luminosidade aumentando, indicava sua alegria em satisfazer-me também. Beatriz, como anteriormente fez, em mim fitava o olhar e em seu grandioso gesto me indicava que eu deveria me manifestar; então exclamei: “Ó bendito ser que com presteza satisfaz o meu desejo de saber o que agora eu penso; a prova disso está no aumento de tua luminosidade”.
Então o intenso clarão, que vi descendo das alturas a cantar, disse cortesmente como quem aprova meu desejo de saber: “Nessa parte da Itália onde oprime e escraviza que fica situada entre o Rialto e as nascentes do Brenta e do Piave (província da Marca de Trevisana) vê-se uma colina de pequena elevação. (Onde está situado o castelo da família de Ezzelino de Romano). Lá baixou a fagulha que se transformou em grande incêndio e se espalhou por toda a região. (A fagulha é Ezzelino II da Romano, que governou a região com grande crueldade). Pertencemos à mesma família. Chamei-me Cunizza, (irmã de Ezzelino III, mulher de fama duvidosa pela sua vida livre; morreu em Florença, onde talvez tenha se penitenciado), e se neste planeta agora resplandeço (no Planeta Vênus) é porque me venceu Vênus que comanda o amor. Não sinto vergonha da vida que tive; alegremente me perdoei. Talvez tenha causado estranheza ao povo a minha atitude. A luz refulgente que está ao meu lado, amada jóia deste nosso planeta, (é a alma de Folco de Marselha, trovador e poeta) sua fama foi grande e continuará e crescer permanecendo no tempo por cinco séculos. Dizem com razão: - “Se o homem aspira à glória, se a vida terrena se extingue  outra vida eterna o espera!”– porém este fim, não terá o povo que habita entre o Ádige e o Tagliamento, (os habitantes da Marca Tevisana) nem a desgraça os afastará dos seus erros. Em breve o povo de Pádua, tingirá de rubro as águas que banham os alicerces de Vicência. Lá onde segue o Cagnan e o Sile, se prepara o laço que fará cativo quem na derrota mostra estranha soberba. (Ricardo de Camino, senhor de Treviso, foi morto traiçoeiramente pelos seus inimigos). Feltro há de chorar em consequência da traição praticada por seu ímpio Pastor; bandido igual ele Malta nunca conheceu. (Alexazndre Novello, bispo de Feltre, entregou ao Papa, em 1314, vários gibelinos, de Ferrara, que, condenados à morte, foram levados a Prisão de Malta). De enormes dimensões terá de ser o tonel que recebesse o sangue de Ferrara; e o esforço humano jamais poderia pesá-lo; e todo esse sangue o Santo Padre fará derramar em favor do seu partido político! A maldade daquela terra, sua índole explica. No mais alto dos céus existem espelhos celestiais chamados de Tronos, que refletem em nós a vontade Divina; o que eu profetizo agora é manifestação de Sua vontade; portanto deves acreditar nos fatos agora revelados”. (Em 1.314 o Cangrade della Scala derrotou os paduanos em sangrenta batalha).
Calando-se, Cunizza indicava que sua atenção se voltara para outros cuidados e assim retornou ao círculo de onde viera. Aquele de quem Cunizza falara (Cunizza falara de Folco que reluzira ao seu lado) resplendecendo extraordinariamente qual rubi que ao sol flameja, ante mim se mostrou. Seu intenso brilho indicava alegria, como a nossa em riso se manifesta e no inferno os gestos tristes indicam sofrimento. Então falei: “Deus tudo vê e Nele teu olhar se ilumina ditoso espírito; por isso todos os desejos são do teu conhecimento. Por que com tua voz que encanta o Céu e faz parceira no canto dos anjos que seis azas possuem e têm resplandecentes as vestes, não sacia em mim a sede de ouvir-te! Se eu visse em ti o desejo de me ouvir como tenho a certeza de que estás percebendo em mim, te falaria sem esperar que me pedisse”.
Deste modo então a me responder começou: “O maior dos vales por água inundados, excluindo o mar que rodeia toda a Terra, está entre as opostas regiões que ficam em direção contrária ao Sol; tão opostas são que ao meio-dia a linha do horizonte parece exatamente igual para quem está na parte oriental ou ocidental da região. Nasci próximo desse extenso vale, entre o Ebro e o Magra onde faz divisa com Toscana e Gênova. (Em Marcelha, onde Folco, nasceu, viveu e morreu) Quase meio dia de viagem se leva de Bugia ao meu querido lar; o sangue dos meus antepassados avermelhara seu porto (Marcelha). Chamei-me Folco e assim fui conhecido. Agora este Céu está repleto da minha luz, como quando na Terra eu estava, e resplandecia de amores. Afirmo-lhe que Dido - que ciúmes causou a Creusa e a Siqueu, - (Dido: rainha de Cartago; amando Eneias ofendeu a Cleusa, mulher de Eneias, e ao próprio marido Siqueu) não conheceu amor ardente mais do que eu, enquanto a idade me permitia; nem a infeliz Rodopea que fora abandonada por Demofonte; nem outrora Hércules, quando a Iole o coração oferecera. (amante de Hércules, que por ciúme foi morta por Dejanira). Aqui não existe remorso; sentimos alegria não pela culpa ao amor humano, esta já esquecida, mas pelo Amor Divino, cuja lei é adorada”.
“Aqui, se contempla a criação, que grandiosa, intensamente brilha; e a Suprema Vontade se evidencia na influência que o firmamento exerce sobre a Terra. Para que teus desejos sejam completamente satisfeitos, parte do meu discurso ainda continua. Agora queres saber quem era luz eu ai perto de mim, tanto resplandece como o sol que na água se reflete; aquela eu vês ali alegre e tranquila  é Raab; (meretriz de Jericó; escondeu os espiões que Josué havia mandado a Jericó, facilitando a queda da cidade e, por isso, foi salva da morte, depois da vitória dos hebreus). Está agora reunida ao nosso grupo, e intensamente brilha neste céu onde a ponta da sombra projetada pela terra alcança. (Segundo Ptolomeu, a sombra da terra se projeta até o limite de Vênus.) Foi ela a primeira a ser recebida por Jesus Cristo triunfante, Devia dar-lhe um paraíso com prêmio quando bem quisesse após a vitória imensa conquistada pela cruz, pois foi por intermédio dela que começara a glória que colheu Josué na Terra Santa e que se apagou da memória do Papa. (O Papa não se interessa pela Terra Santa, que está sob o domínio dos Sarracenos). Tua pátria que teve origem na semente daquele que ao Criador foi o primeiro rebelde, (Florença teve origem demoníaca) pela inveja que tanta aflição causou tem produzido amaldiçoada flor que, corrompendo, faz o pastor conduzir ovelhas e cordeiros, convertido em lobo. Nas páginas das Decretais já gastas pelo excesso de uso, (os livros das leis canônicas, que asseguravam vantagens aos eclesiásticos) Papa e Cardeais nelas prendem a sua atenção abandonando o Evangelho e tendo as idéias nisto mergulhadas, esquecendo Nazaré que viu abertas as azas do Arcanjo Gabriel. Mas o Vaticano e os lugares que a Roma enobrecem e tem sido o local de repouso dos fiéis seguidores de Pedro, lhe obedecem e em breve, livres estarão da traição”.
Obs: Não tem figura

domingo, 20 de janeiro de 2013

O PARAÍSO - CANTO VIII

Dante e Beatriz se elevam a estrela Vênus onde estão os espíritos daqueles que outrora foram propensos às paixões amorosas. Encontro do Poeta com Carlos Martelo, o qual, referindo-se a índole mesquinha de seu irmão Roberto, explica-lhe como se dá que de um bom pai possa nascer um filho mau e enfim quanto é providencial a Natureza nos seus decretos, e quão vaidosos sãos os homens que não lhe seguem as indicações. Texto do Tradutor
                                                                  Planeta Venus
 O mundo perigosamente acreditava que a bela Ciprina (a deusa Vênus) lá no centro do terceiro astro arremessava à Terra dardos de louco amor; por isso não somente lhe consagravam sacrifícios, preces e votos, como também adoravam sua mãe Dione, e seu filho Cupido, que a Dido enganarou reclinando-se em seu seio ardente. (No I Livro da Eneida, Cupido, estimulado por Dione toma a aparência de Ascânio e leva os presente de Enéias a Dido que acreditando tratar-se de seu amante, a ele se entregou). Vem daí o nome de Vênus ao planeta que o Sol, enamorado, está sempre a lançar seus raios quando aparece no nascente ou desaparece no poente.
               Como me cheguei até esse astro, não sei dizer; mas, por ver minha amada ainda mais bela tive a certeza de haver nele penetrado. Assim como se vê fagulhas em fogo crepitante e também como uma voz é diferenciada de outra pela diferença de sonoridade, no meio da luz que se elevara (Beatriz esta toda iluminada) distingui outros luzes se movimentando em maior ou menor velocidade, determinada pela maior ou menor intensidade da graça divina contida em cada uma delas. Os ventos que rompem de espessa nuvem, visíveis ou não, pareceriam mais lentos do que a velocidade com que cada uma dessas luzes vinha ao nosso encontro, deixando a dança que nas alturas dos céus os Serafins marcavam o compasso. Após a multidão de luzes que primeiro nos alcançou ecoava um hosana de tão suave melodia que o desejo de tornar a ouvi-lo jamais desapareceu de mim. Então um dos espíritos que mais rapidamente se aproximou começou a falar, dizendo:
               “Todos nós estamos prontos a responder as perguntas que forem do teu agrado! Aqui nos movemos em torno de uma só energia vinda das vozes  angelicais dos príncipes celestes de quem  tu, no mundo, haveis dito assim: ‘Vós sábios motores do terceiro céu...’ (Sábios motores: os Anjos). Estamos prontos e é tão ardente o desejo em te agradar que, qualquer que seja a demora nos trará alegria” .
               Depois que reverentemente o olhar ergui ao iluminado rosto de Beatriz, e ficado ciente do seu consentimento, dirigi-me à luz que se mostrava em maior intensidade e enternecido, perguntei emocionado: “Quem és?” 
         Ó maravilhoso efeito das minhas palavras! A pergunta lhe incutiu tal felicidade que aumentou o brilho do seu aspecto a ponto de iluminar-me; então respondeu: 
           “Bem pouco tempo a Terra me teve; se eu tivesse vivido um pouco mais, o mal que ora lamentas, certamente ninguém o visse. (Quem fala é Carlos Martelo, filho de Pepino I que Dante conheceu em Florença em 1294). O júbilo que sinto por estar aqui produz esta luminosidade que aos teus olhos me oculta, como o inseto se reveste com os véus de sua seda. (como o bicho-da-seda está oculto em seu casulo). Com razão me dedicaste extremo afeto, pois, se eu tivesse vivido no mundo por mais tempo, teria te demonstrado o quanto eras querido por mim. A margem esquerda da região que é banhada pelo Ródano depois que este se une ao Sorga, me esperava um dia como seu governante; também a que partindo do litoral da Ansônia (Itália) e é cercada por Bari, Gaeta e Cartona até onde o rio Tronto e Verde lançam suas águas ao mar, bem como as terras que o Danúbio rega (Hungría) até onde as plagas tudescas abandona, (dos antigos germanos - Alemanha) a coroa do vasto reino em minha fronte já se ostentava majestosa. E Trinácria (Secília) cujo céu está constantemente carregado de nuvens escuras, não por culpa de Tifeu, (segundo a lenda o gigante Tifeu sepultado na Sicília, expele fumaça e enxofre) mas proveniente de erupção vulcânica, e onde mais feroz o vento leste se torna, ainda estaria sob o reinado dos descendentes de Carlos e Rodolfo (Carlos de Anjou e Rodolfo de Habsburgo) e da minha, se um governo aterrorizante não obrigasse o povo de Palermo – a quem o temor não mais o domina – a gritar: ‘Morra! Morra!’ (Alusão as Vésperas Sicilianas). Se meu irmão (Roberto de Anjou) tivesses sido mais prudente, teria fugido da indigente avareza dos catalães (natural de Catalunha) não dando oportunidade para  que tamanho mal acontecesse; na verdade quando alguém por si ou por outrem assume o comando, urgente se torna não permitir sobrecarregar a barca que devido ao excesso de peso, já inclinava. Quando um governante estivesse propenso a avareza, deveria ter um exército que o impedisse de pensar somente em encher seus cofres”.
               Disse-lhe eu: “Acredito, senhor, que a alegria que sinto em ouvir-te vem de Deus no qual tudo começa e termina. Acredito também que ao falar sintas a mesma alegria que eu, e essa certeza faz aumentar ainda a minha felicidade. Tudo o quando disseste me é extremamente importante, pois falas contemplando o reflexo de Deus. Muito me esclareceste; mas ainda me resta dúvida sobre o que disseste: ‘Semente doce produz fruto amargo?’“.
               “Te mostrando a verdade – disse-me – logo rejeitarás o que antes julgavas como certo. O Supremo Bem que alegra estes Céus para onde vens subindo, faz com que todas as virtudes Nele contidas sejam reveladas através da Criação; assim sendo todos os corpos celestes tornam-se capazes de transmitir virtudes próprias que influenciam na Terra; e não somente com perfeita previdência as coisas terrestres se encontram ordenadas, como também a Sua Onipotência as protege, porque as setas deste arco quando arremessadas, predestinadas são a um certo ponto que deverão a ele chegar, infalivelmente perfeitas. A ordem e harmonia existentes no Universo vêm da essência do próprio Deus, que é a perfeição. Queres que lhe explique as verdades mais claramente?”
               “Não” - repliquei – “não imagino que o Criador pudesse cometer falhas em suas belas obras” Então ele me perguntou: “Seria ruim para o homem não viver em sociedade  organizada?” Lhe respondi – “Certamente; e a razão disso eu sei”
              E ele continuou: “Haverá sociedade se nela não se encerrar ocupações diversas, praticadas de diversas formas, por diversos cidadãos? Não, se o teu mestre filósofo (Aristóteles) estiver certo em seu modo de pensar”. E concluiu: “Resultados diferentes indicam sempre origens diferentes. (Efeito diferente indica causa diferente) É essa a razão por que as pessoas nascem com a personalidade tão diferente uma das outras; dou como exemplo Sólon (governador de Atenas; compassivo e educado) e Xerxes; (Rei persa; violento guerreiro) Melquisedeque (rei de Salém, inteligente e justo) ou Dédalo, o que mandou o filho voar e o perdeu nos ares, demonstrando ser muito habilidoso, mas insensato. Perfeito é o girar incessante dos céus e ao fazer, enviam aos humanos suas virtudes sem cogitar em qual casa elas vão baixar. Daí vem a explicação porque Esaú tinha o temperamento tão diferente do de Jacó, embora fossem irmãos gêmeos; e Querino (Querino Rômulo, fundador de Roma) cujo pai era tão humilde que,  para ser considero nobre, os romanos diziam ser ele filho de Marte. Se as virtudes divinas não agissem sobre  a natureza humana, toda ela  seria igual, tanto nas atitudes como nos destinos. Agora deve estar bem claro para ti, a verdade. Mas ainda te proponho que conheças outras verdades, pois o desejo de agrada-te ainda permanece em mim. Na natureza humana pode haver excesso de contraste; uma boa semente, se lançada em solo impróprio, pode produzir maus frutos. Se a humanidade meditasse cuidadosamente no conjunto de princípios básicos que a natureza oferece, de melhor gente o mundo seria povoado. Cada pessoa deveria exercer suas atividades de acordo com a sua vocação natural. Mas, que inadequado é para aquele que quer ser guerreiro buscar a solidão dos monges, ou fazerem Rei quem queria ser um pregador. Por esse motivo é que a humanidade anda sempre fora do caminho”.

domingo, 6 de janeiro de 2013

O PARAÍSO-CANTO VII

(Ainda em Mercúrio)
               
Hosannah Santus Deus Sabaoth, Superrillustrans claritae tua; felices ignes horum malacôth!”
(expressão constituída por palavras latinas e haraicas: “Salve Deus dos exércitos, que iluminou com o teu clarão os felizes deste reino”). Assim ouvi cantar essa venturosa alma em quem claramente se percebia dupla luminosidade; estavam todas juntas e felizes a dançar quais chamas fulgurantes, quando subitamente da nossa presença foram se afastando, até desaparecerem na distância. E eu sem nada compreender, cheio de dúvidas, dizia a mim mesmo: “Pergunta à tua senhora de que se trata, pergunta, pois já sentes sede de seus esclarecimentos”. No entanto a perturbação tomou posse de mim e a voz me impedia de falar; conseguido apenas balbuciar Be ou iz, curvei a fronte como quem ao sono cede.
Porém Beatriz, da confusão me tirava; resplandecente e com um sorriso que me iluminou a mente, assim falou: “Vejo que a dúvida continua a dominar tua alma, pois não consegues compreender como uma vingança que foi justa, pode depois receber digna punição da justiça divina! Mas não me custa te clarear o espírito. Preta bem atenção, pois a verdade das minhas palavras tem caráter de urgência. Por não querer obedecer ao salutar comando, o homem nascido sem mãe, (Adão) corrompeu a si e a humanidade. Durante muitos séculos, enferma do pecado permaneceu ela prostrada no enorme erro até que o Verbo Divino fosse encarnado pela ação do Amor Eterno, se unindo à criatura que se afastara do Criador pelo mal que praticara. Considera bem no que vou dizer: a natureza humana a quem complacente se uniu, foi criada perfeita, leal ao Criador; mas por livre vontade, fugindo loucamente do caminho da vida e da verdade, do Paraíso Divino se exilou. Considerando-se a situação em que se encontrava a humana natureza a que Jesus assumira, a punição na Cruz, nesta circunstância, foi a mais justa. Ao mesmo tempo nunca injustiça igual se praticou contra a natureza divina da Pessoa que tanto padeceu, por ter se unido à natureza humana.
 No entanto esse ato justo e injusto teve consequências contraditórias. Por essa morte, aliviados se sentiram os Judeus, jubiloso ficou o Céu e o universo apavorado; (a morte de Jesus Cristo deu satisfação a Deus porque reparava a ofensa de Adão; aos judeus pela raiva deles contra Jesus, o universo ficou apavorado pela crucificação de Deus e o Céu alegre porque se abria novamente à humanidade). E não te mova profunda sensação ao ouvir que uma vingança foi justa quando deveria ter sido vingada. Vejo confusão em tua mente por estar entre dois pensamentos e deles se libertar te causa grande esforço. Dirás então – “na verdade entendo o que disseste; mas por que Deus em Seu ato de bondade, para nos redimir, escolheu esse modo tão cruel, não compreendo!” – Esta determinação, caro irmão, está oculta à mente dos que ainda não desenvolveram a compreensão sobre a chama do Amor Divino. É mistério com que luta o pensamento sem conseguir vitória, em tal polêmica. Mas foi o melhor modo. Ouve-me atento! A Divina Bondade que afasta de si o desamor, se exalta, se resplandece e se faz conhecer por eternas perfeições. O que dela diretamente tem origem é sem fim; eternamente impresso fica, tudo do que no Ser Supremo esteja. Assim, não se torna o homem submisso à influência das causas secundárias. Isso significa ter ele adquirido a plena liberdade de escolher o que mais lhe satisfaz, se está em conformidade com a sua essência. O Sublime Amor que resplandece em todas as coisas, mais resplandecente é naquele que contém esta excelência. Cabe ao ser humano a partilha de tais bens.
Porém, um ser humano perde esse brilho, sua nobreza decai, se humilha; e somente o desrespeito as leis Divinas o faz descer dessa nobre altura; nele não mais reflete a luz do Supremo Bem. D´Ele a semelhança não mais se apresenta e a Sua sublime grandeza não mais assume, se não apresentar oposição ao prazer do mal. Tendo todo o gênero humano ficado assim infeccionado pelo germe do pecado, dessa grandeza e do seu Paraíso foi deserdado só podendo reavê-los – com certeza saberás se, prestares bem atenção -  intervindo um dos meios que com clareza aponto: ou Deus por bondade infinita perdoando, ou porque o homem por si próprio, convencido da sua culpa, peça o perdão. Para sondar a profundidade imensa dos tribunais eternos, fixe na mente as razões que meu discurso apresenta. Vivendo na eterna miséria o ser humano não poderia curvar-se tanto, humilde e reverente, quanto em sua rebeldia se elevar quisera. Eis porque, redimir-se do pecado, por si mesmo a ele não seria possível. Portanto, foi do agrado Divino por clemência ou justiça e ambos juntando, ter sido ele preparado para a vida eterna.
Tendo sido a obra executada ao gosto do Criador, ainda mais quando apresenta a imagem do sentimento, de que vem piedoso a brando, a bondade que em tudo se reflete, se oferece em nosso favor dos dois modos; somente um, bastar-lhe não parece.
Ato igual não se fez tão sublime e belo quanto esse; nem entre a noite final (Juízo Final) e o primeiro dia, (o dia da Criação) nem se faria. Deus se fez mais generoso doando-se, porque deu condição ao homem de se erguer, do que caridosamente o perdoando. Qualquer outro meio que empregasse não bastaria à Justiça Divina, a não ser o do Filho de Deus se humilhando, a natureza humana recebendo.
Para de tudo seres doutrinado, eu volto a um ponto, para que mais claramente vejas o que cuidadosa, tenho te explicado. Então me dirás: se bem reparo no fogo e na água, na terra e no ar e em seus componentes, vejo degradação que assola sem piedade – Respondo-te: na criação Deus ordenou: deverão ser isentos de deterioração, permanecendo perfeitos em sua matéria. - Sendo corretos os princípios a ti expostos, como irmãos se consideram os anjos, os homens e do universo, tudo o que há no espaço inteiro, devendo, conservarem-se puros, como foram criados. Elementos da natureza, e tudo o que nela permanece, oferecem traço de qualidade própria criada por eles e que se harmonizam. A lei divina criou-lhes a matéria criando logo a força participante que predomina nos astros que os cercam. Nossa vida vem diretamente de Deus, Supremo Bem, que em nós produz tal Amor, que O faz desejar eternamente. Daí, por dedução, vem também vossa ressurreição, se teu espírito considerar a perfeição do ser e a essência da natureza humana, quando o primeiro par teve existência".