As almas dos combatentes pela fé em Cristo
estão dispostas em forma de cruz, símbolo de martírio e de vitória. Do lado
direito dessa Cruz, move-se um espírito e com paternal afeto saúda a Dante. É
Caccaguida, seu tri-avô. Descreve, ele, a inocência dos costumes do seu tempo e
lembra como morreu combatendo pelo sepulcro de Cristo, na segunda cruzada. Texto do Tradutor.
Dante e Beatriz estão no Planeta Marte.
A atitude complacente demonstra
a tendência ao amor que a caridade inspira enquanto a cobiça indica a inclinação
à prática do mal. Aquela santa vontade impôs silêncio ao doce cantar mantendo
em repouso as cordas afinadas pela mão do Supremo Criador. Como aqueles nobres espíritos poderiam
atender aos meus apelos, se todos foram unânimes em silenciar? É justo sofrer para
sempre, quem por amor aos bens terrenos renuncia ao amor divino. Às vezes
acontece que no céu sereno e puro, de repente, vemos deslizar perante nosso
olhar uma pequena faísca. Poderíamos dizer que essa estrela estivesse mudando
de lugar se no ponto celeste onde surgiu aquela luz estivesse faltando alguma
estrela.
Dante escuta a voz do seu tri-avô.
Pois foi assim que aconteceu quando do braço que à direita se estende
até ao pé da Cruz, vi deslizar dessa constelação um dos astros que ali
resplandecia. A pérola não se desprendeu do seu fio, mas pela brilhante linha
desceu, qual chama a reluzir sob o alabastro. Com igual velocidade a alma de
Anquises correu ao encontro de seu filho Enéas nos Elísios - segundo descreve o
nosso grande Poeta - (Em “Eneida” Capítulo VI, Virgílio descreve que Enéas
visitou nos Campos Elíseos a alma de seu pai Anquises).
“Ó
Sanguis meus! Ó superinfusa Gratia Dei; sicut tibi cui; Bis unquan coeli janua
reclusa?”. (Ó sangue meu! Ó infinita Graça de Deus! A quem, senão a ti será
aberta duas vezes a porta do Céu?). Assim falou aquele espírito. E minha
atenção se firmou naquela pérola que falava; depois voltei meu rosto para
Beatriz e olhando uma e outra vez, mais confuso ainda fiquei.
Nos olhos de
Beatriz brilhava tal sorriso que fitando-a julguei ter chegado ao centro da
ventura no eteno Paraíso. E aquele espírito, feliz no aspecto e na voz
juntou-se a outras vozes pronunciando palavras de sentido tão profundo que não
as pude compreender. Não de propósito, mas por necessidade foram suas palavras
ditas obscuramente, pois o conceito estava acima do entendimento de um mortal.
Quando o arco do ardente afeto se tornou menos rijo, foram suas palavras
seguintes pronunciadas ao alcance do meu entendimento humano. “Louvado sejas
Deus Uno e Trino, que benigno Te mostras para com minha família”. Depois ele continuou
e atento pude distinguir estas palavras:
“Vens cumprir,
ó filho, o meu longo e ardente desejo que adquiri desde quando pude ler no
livro da eternidade, onde nada pode ser mudado.
Revestido desta luz doada por Aquele
que também concedeu asas ao teu sublimado vôo, posso ter acesso ao teu
pensamento, pelo poder do Ser Primeiro que é a origem de tudo, assim como o
número cinco ou o número seis pela mesma unidade se inicia (o número um). Não
demonstras curiosidade em saber quem eu sou e porque me apresento assim com
maior brilho que os outros que aqui estão. Agindo assim o fazes corretamente,
pois o espelho refulgente desta vida eterna reflete o pensamento antes mesmo de
ser formado e a todos nós se torna evidente. Mas para o sagrado amor que me
deixa atento em perpétua visão, em mim se acederá e me dará contentamento se
ouvir a tua voz franca, segura e alegre fazendo-me perguntas, revelando-me seus
desejos, pois já antevejo qual a resposta que te darei”.
Então
voltei a atenção para Beatriz; mas antes mesmo
que eu falasse, acenou-me alegremente aprovando minha intenção de perguntar,
fazendo com que se estendessem ainda mais as asas do meu desejo.
Comecei então a
dizer: “Em cada um de vós, ó espíritos iluminados, o amor e o conhecimento vos
foram incutidos desde os primeiros instantes que deixastes a vida terrena e de
forma e quantidade tão idênticas que nenhuma comparação pode ser feita entre
elas. Porém entre os mortais o afeto e o saber atuam de formas e quantidades
diferentes, por motivos conhecidos por vós, mas que nós ainda não as
compreendemos. Por isso sendo eu ainda mortal e sujeito a esta desigualdade,
posso retribuir ao vosso bondoso acolhimento apenas com o ardente amor da minha
alma. Assim sendo ó jóia resplandecente, me façais conhecer o vosso nome”.
Respondeu-me
então com voz terna e suave: “Ó flor que eu ansiosamente esperava; do meu
tronco brotaste primorosa”. (Quem fala é Cacciaguida, que foi tri-avô de Dante;
morreu numa Cruzada em 1.173. Foi pai do primeiro Alighiero do qual derivou o
nome dos Alighieri). E continuou: “Aquele de quem recebeste teu sobrenome, a
mais de um século está se purificando no Purgatório. Meu filho foi o teu
bisavô. Quando voltares a Terra deves ajudar a diminuir seu tempo de purificação no
Purgatório com preces e boas obras. Florença
vivia em paz, honesta e sóbria, cercada por
antigos muros onde foram erguidos templos nos quais ainda hoje ressoam as horas.
Não havia ainda por ali colares dourados, nem diademas, nem saias rendadas e
cintos adornados que realçavam mais do que a beleza de quem os usava. Nascendo
uma filha, esta não traria preocupações futuras ao pai; no tempo certo se
casava e o dote adequava-se ao modo de vida de cada uma. Cada qual se contentava
com o lar que possuía. Seus usos e costumes não tinham sido ainda corrompidos
pelos hábitos de Sardanápalo (rei da Assíria, célebre por sua luxúria) que
apresentava em público o que deveria se ocultar na intimidade de sua alcova.
Não tinha ainda vosso Uccelatoio (monte próximo de Florença) vencido o
Montemalo (monte Mário, de Roma) o qual separando o outro em suntuosidade, há
de superá-lo na decadência.
“Cheguei a ver
Bellincion Berti vestindo couro com botões de osso, assim como, sua mulher
voltar do espelho sem qualquer pintura nas faces. Vi também os Nerlis e os
Vecchio (as nobres famílias florentinas Nerli e Del Vecchio) vestindo peles
simples, sem luxo, enquanto suas esposas, felizes, ocupavam-se da roca e do
fuso. Ó ditosas! Nenhuma delas sofria a dolorosa ausência do esposo em viagens
pela França, nem se preocupando com os encargos causados pela morte, porque
seus jazigos já estavam preparados. Uma, o berço do seu filho embala mimando-o
com aquelas palavras infantis que encanta o coração dos pais. Outras, enquanto
na roca trabalham o fio, narravam aos filhos o que outrora acontecera em Fiesolo,
em Troi e na antiga Roma. Naquela boa época causaria espanto ver-se entre vós
uma Cianghella (Ciangnella dei Tosighi, mulher desonesta e de vida livre) ou um
Lapo Salterello (jurioscolsulto florentino tido em conta de homem corrupto), tanto
quanto hoje causaria a presença de Cornélia ou de Cincinato entre vós. Naquele
tão belo viver da cidade, no convívio dessa gente honrada e unida, num doce lar
modelo de paz, entre dores minha mãe Maria me recebeu. Na pia batismal recebi os
nomes de cristão e de Cacciaguida. Tive como irmãos Moranto e Eliseu. Minha
esposa nasceu em Val-di-Pado; dessa origem vem seu sobrenome. Na guerra,
acompanhei o Imperador Conrado (Conrado III de Hohenstaufen, que chefiou a
segunda cruzada) que me consagrou cavaleiro, tanto lhe agradaram meus atos. Com
ele lutei contra o infiel (os maometanos) que o vosso direito oprime na Terra
Santa por culpa do negligente Pastor (o Papa). Fui tirado do mundo por aquela
torpe gente; pelo martírio que me trouxe ao Paraíso onde encontrei a paz
eterna”.