O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O PARAÍSO - CANTO XVII

 Dante pede a Cacciaguida que lhe declare qual sorte lhe será reservada. Este lhe previu o exílio, a perseguição pelos inimigos e o seu refúgio na corte dos Scalígeros. Exorta-o a falar do que viu e ouviu na sua viagem, sem receio de ofender ninguém. Texto do Tradutor.

Dante continua a conversa com o seu triavô.
 
Tive eu a mesma reação que o filho de Clímene ao pedir à sua mãe explicações sobre comentários duvidosos a respeito da origem do seu nascimento e foi por ela austeramente repreendido, (Fetonte foi por sua mãe Climene severamente repreendido por ter ele, por curiosidade, lhe perguntado se era realmente filho do Sol; esse exemplo é que faz com que os pais sejam austeros com os filhos). Mas tanto Beatriz como aquela santa luz brilhante que eu vira descer da altura da Cruz pressentiram minha angústia.

Me disse Beatriz: “Exponha-lhe o teu desejo de saber com palavras de modo compreensíveis para que sejam esclarecidas todas as dúvidas que em tua alma escondes. Não precisamos ouvir-te para que conheçamos esses desejos, mas sendo tua sede revelada será bom saciá-la plenamente”.
          
Então falei: “Ó amado ancestral que alcançaste a Glória, assim como pode a mente humana compreender que em um triângulo não podem 
estar contidos dois ângulos obtusos, assim tu fitando no Ponto Central dos tempos, consegues ver o futuro. Enquanto eu acompanhando Virgílio subia o monte onde os pecados encontram perdão ou quando descia aos mundos dos eternos condenados ouvi a respeito do meu futuro sombrias palavras que me fizeram compreender que eu haveria de receber duros golpes; mesmo assim ser-me-ia grato conhecer distintamente o alcance de tais golpes, pois, ao se ver a seta ser disparada parece que ela voa com menor velocidade”. Foi com essas palavras que manifestei àquele espírito iluminado, que há pouco me falara, o meu desejo como a minha senhora ordenara. Sem se utilizar daqueles complicados vaticínios como os adivinhos faziam muito antes de ser o Cordeiro de Deus imolado para a remissão dos pecados, mas, com palavras claras, verdadeiras e paternal afeto, o amoroso espírito envolto ainda mais na radiante luz, transmitindo-me sua alegria em me satisfazer dizendo:

“As insignificantes contingências (Obs: Contingência: incerteza se uma coisa acontecerá ou não. Dicionário Aurélio) do vosso mundo material estão claramente presentes a Deus. No entanto tais contingências passageiras não se prendem a Ele necessariamente, assim como a nau que desce a favor da correnteza não recebe nenhuma influência de quem a observa. De lá (de Deus) vem as imagens que desfilam ante meus olhos sobre o futuro que a ti se refere, com a mesma suavidade  que é transmitido aos ouvidos a doce harmonia do órgão. Assim como Hipólito foi obrigado a deixar Atenas pelas intrigas da pérfida e ímpia madrasta, também tu sairás de Florença. (Hipólito, filho de Teseu, não querendo sujeitar-se aos desejos de as madrasta Fedra, foi banido de Atenas, caluniado por ela). Assim se quer e assim começa a ser executada a trama, já que ali o Cristo é diariamente comercializado (na Cúria  Romana). O mundo culpará sempre o vencido, pois é assim que acontece;  mas Deus dará testemunho da verdade, a teu favor. Deixarás para trás tudo o que te for mais querido, pois esta é a primeira e maior dor que o exilado sente. Sentirás quanto é amargo o sal do pão alheio e quanta fadiga causa o subir e o descer de escadas estranhas.
               Tua angústia tornar-se-á mais agrave pela necessidade que terás de conviver, nesse vale de exílio, com os nécios, os mesquinhos e os maldosos. Essa gente ingrata louca e má há de se unir contra ti; mas não tardará que ela - e não tu - irá conhecer o opróbrio merecido. Seu modo de proceder será a prova decisiva de sua bestialidade de tal forma que ti sentirás glorioso por ter deixado de participar das lutas políticas. Terás como primeiro refúgio, a fidalguia do Grande Lombardo (Bartolomeu Della Scala, senhor de Verona) que tem como brasão a Ave sobre a Escada. Será ele tão cortês contigo, que se tratando de necessitar e oferecer, entre vós dois o primeiro será aquele que em qualquer outro lugar seria o último. Junto dele verás aquele que, por ter nascido sob a influência desse portentoso astro (Marte), a fama e a glória lhe agradecerão o nome por seus grandes feitos. (Cangrande Della Soala, irmão de Bartolomeu, que foi o notável capitão Cangrande; nessa ocasião - em 1.300 - tinha nove anos.) Aquela gente desprezível ainda não se apercebeu disso, pela pouca idade que ele tem; apenas nove voltas ao seu redor giram as estrelas. Porém bem antes que o Gascão tenha enganado o altivo Henrique, já se fará conhecido pelo seu desapego ao ouro e desprezo ao perigo. (Gascão = Clemente V, papa de origem francesa, depois de ter prometido a Henrique VII que o reconheceria como imperador; tendo Henrique VII se ausentado indo à Itália, em 1.312, Clemente V se opôs a Ele). Sua atuação será tão brilhante que mesmo seus inimigos não poderão deixar de proclamá-la, através de silêncio. Confieis nele esperando dele sempre o bem, porque através dele a sorte de muita gente mudará, trocando a condição de ricos e de mendigos. Deverás guardar na memória o que sobre ele me referi, sem revelar a ninguém ...e, contou-me minuciosamente proezas inacreditáveis até mesmo para aqueles que as presenciaram. E continuou:
          “Eis filho, a explicação do quanto te foi dito; eis a ciladas que, num período de tempo bem curto surgirá diante ti. Porém não deves invejar a sorte dos teus conterrâneos porque, prolongada terás a vida para veres seu merecido castigo”.
Com o tom de voz de quem clama por conselho a alguém mais experiente e que somente o bem lhe quer, comecei a falar:

 “Sinto ó pai, investindo-se contra mim o mau tempo para dar-me o golpe final; porém, não posso evitar isso. Portanto é bom que eu me arme de prudência, porque se acontecer ser eu exilado da pátria amada, não perca também outros refúgios, motivado pelo que foi exposto nos meus versos. Andei pelo mundo onde em perpétua dor se vive (pelo Inferno); subi até ao cume da excelsa montanha de onde me elevou Beatriz; (a montanha do Purgatório) depois, pelo Céu, de estrela em estrela peregrinando, aprendi tantas coisas maravilhosas que, se as repetir, minhas palavras terão para muitos o sabor do azedume. Se falar a verdade, temo morrer esquecido pelos homens que hão de chamar de “tempos antigos” o tempo em que hoje ainda sou vivo”.

A luz na qual escondia o tesouro que eu havia descoberto fez-se tão coruscante quanto um raio de Sol refletido por espelho de ouro. E respondeu:

“A consciência abalada por vergonha dos próprios atos ou por causa dos pecados alheios, ficará ofendida pela ousadia dos teus versos; porém não hesites; deves repelir toda e qualquer mentira! Manifeste tuas idéias sem meias palavras; quem tiver culpa, tome-as para si. No início elas poderão incomodar; porem quando bem compreendidas produzirão bons resultados. Tua voz altaneira será como o vento que se investe sobre os altos cumes e, isto acontecendo, trará grandes glórias ao teu nome. No Monte do Purgatório e no Vale das Dores, foram-te mostradas propositadamente muitas almas famosas. Isso aconteceu porque os ouvintes ou leitores dariam pouca atenção aos teus versos se eles fossem baseados em pessoas  desconhecidos ou em argumentos mal fundados”.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O PARAISO- CANTO XV

 As almas dos combatentes pela fé em Cristo estão dispostas em forma de cruz, símbolo de martírio e de vitória. Do lado direito dessa Cruz, move-se um espírito e com paternal afeto saúda a Dante. É Caccaguida, seu tri-avô. Descreve, ele, a inocência dos costumes do seu tempo e lembra como morreu combatendo pelo sepulcro de Cristo, na segunda cruzada. Texto do Tradutor.

Dante e Beatriz estão no Planeta Marte.
 A atitude complacente demonstra a tendência ao amor que a caridade inspira enquanto a cobiça indica a inclinação à prática do mal. Aquela santa vontade impôs silêncio ao doce cantar mantendo em repouso as cordas afinadas pela mão do Supremo Criador. Como aqueles nobres espíritos poderiam atender aos meus apelos, se todos foram unânimes em silenciar? É justo sofrer para sempre, quem por amor aos bens terrenos renuncia ao amor divino. Às vezes acontece que no céu sereno e puro, de repente, vemos deslizar perante nosso olhar uma pequena faísca. Poderíamos dizer que essa estrela estivesse mudando de lugar se no ponto celeste onde surgiu aquela luz estivesse faltando alguma estrela.

 Dante escuta a voz do seu tri-avô.
 Pois foi assim que aconteceu quando do braço que à direita se estende até ao pé da Cruz, vi deslizar dessa constelação um dos astros que ali resplandecia. A pérola não se desprendeu do seu fio, mas pela brilhante linha desceu, qual chama a reluzir sob o alabastro. Com igual velocidade a alma de Anquises correu ao encontro de seu filho Enéas nos Elísios - segundo descreve o nosso grande Poeta - (Em “Eneida” Capítulo VI, Virgílio descreve que Enéas visitou nos Campos Elíseos a alma de seu pai Anquises).
Ó Sanguis meus! Ó superinfusa Gratia Dei; sicut tibi cui; Bis unquan coeli janua reclusa?”. (Ó sangue meu! Ó infinita Graça de Deus! A quem, senão a ti será aberta duas vezes a porta do Céu?). Assim falou aquele espírito. E minha atenção se firmou naquela pérola que falava; depois voltei meu rosto para Beatriz e olhando uma e outra vez, mais confuso ainda fiquei.
Nos olhos de Beatriz brilhava tal sorriso que fitando-a julguei ter chegado ao centro da ventura no eteno Paraíso. E aquele espírito, feliz no aspecto e na voz juntou-se a outras vozes pronunciando palavras de sentido tão profundo que não as pude compreender. Não de propósito, mas por necessidade foram suas palavras ditas obscuramente, pois o conceito estava acima do entendimento de um mortal. Quando o arco do ardente afeto se tornou menos rijo, foram suas palavras seguintes pronunciadas ao alcance do meu entendimento humano. “Louvado sejas Deus Uno e Trino, que benigno Te mostras para com minha família”. Depois ele continuou e atento pude distinguir estas palavras:
“Vens cumprir, ó filho, o meu longo e ardente desejo que adquiri desde quando pude ler no livro da eternidade, onde nada pode ser mudado. Revestido desta luz doada por Aquele que também concedeu asas ao teu sublimado vôo, posso ter acesso ao teu pensamento, pelo poder do Ser Primeiro que é a origem de tudo, assim como o número cinco ou o número seis pela mesma unidade se inicia (o número um). Não demonstras curiosidade em saber quem eu sou e porque me apresento assim com maior brilho que os outros que aqui estão. Agindo assim o fazes corretamente, pois o espelho refulgente desta vida eterna reflete o pensamento antes mesmo de ser formado e a todos nós se torna evidente. Mas para o sagrado amor que me deixa atento em perpétua visão, em mim se acederá e me dará contentamento se ouvir a tua voz franca, segura e alegre fazendo-me perguntas, revelando-me seus desejos, pois já antevejo qual a resposta que te darei”.
Então voltei a atenção para Beatriz; mas antes mesmo que eu falasse, acenou-me alegremente aprovando minha intenção de perguntar, fazendo com que se estendessem ainda mais as asas do meu desejo.
Comecei então a dizer: “Em cada um de vós, ó espíritos iluminados, o amor e o conhecimento vos foram incutidos desde os primeiros instantes que deixastes a vida terrena e de forma e quantidade tão idênticas que nenhuma comparação pode ser feita entre elas. Porém entre os mortais o afeto e o saber atuam de formas e quantidades diferentes, por motivos conhecidos por vós, mas que nós ainda não as compreendemos. Por isso sendo eu ainda mortal e sujeito a esta desigualdade, posso retribuir ao vosso bondoso acolhimento apenas com o ardente amor da minha alma. Assim sendo ó jóia resplandecente, me façais conhecer o vosso nome”.
Respondeu-me então com voz terna e suave: “Ó flor que eu ansiosamente esperava; do meu tronco brotaste primorosa”. (Quem fala é Cacciaguida, que foi tri-avô de Dante; morreu numa Cruzada em 1.173. Foi pai do primeiro Alighiero do qual derivou o nome dos Alighieri). E continuou: “Aquele de quem recebeste teu sobrenome, a mais de um século está se purificando no Purgatório. Meu filho foi o teu bisavô. Quando voltares a Terra deves ajudar a diminuir seu tempo de purificação no Purgatório com preces e boas obras. Florença vivia em paz, honesta e sóbria, cercada por antigos muros onde foram erguidos templos nos quais ainda hoje ressoam as horas. Não havia ainda por ali colares dourados, nem diademas, nem saias rendadas e cintos adornados que realçavam mais do que a beleza de quem os usava. Nascendo uma filha, esta não traria preocupações futuras ao pai; no tempo certo se casava e o dote adequava-se ao modo de vida de cada uma. Cada qual se contentava com o lar que possuía. Seus usos e costumes não tinham sido ainda corrompidos pelos hábitos de Sardanápalo (rei da Assíria, célebre por sua luxúria) que apresentava em público o que deveria se ocultar na intimidade de sua alcova. Não tinha ainda vosso Uccelatoio (monte próximo de Florença) vencido o Montemalo (monte Mário, de Roma) o qual separando o outro em suntuosidade, há de superá-lo na decadência.
“Cheguei a ver Bellincion Berti vestindo couro com botões de osso, assim como, sua mulher voltar do espelho sem qualquer pintura nas faces. Vi também os Nerlis e os Vecchio (as nobres famílias florentinas Nerli e Del Vecchio) vestindo peles simples, sem luxo, enquanto suas esposas, felizes, ocupavam-se da roca e do fuso. Ó ditosas! Nenhuma delas sofria a dolorosa ausência do esposo em viagens pela França, nem se preocupando com os encargos causados pela morte, porque seus jazigos já estavam preparados. Uma, o berço do seu filho embala mimando-o com aquelas palavras infantis que encanta o coração dos pais. Outras, enquanto na roca trabalham o fio, narravam aos filhos o que outrora acontecera em Fiesolo, em Troi e na antiga Roma. Naquela boa época causaria espanto ver-se entre vós uma Cianghella (Ciangnella dei Tosighi, mulher desonesta e de vida livre) ou um Lapo Salterello (jurioscolsulto florentino tido em conta de homem corrupto), tanto quanto hoje causaria a presença de Cornélia ou de Cincinato entre vós. Naquele tão belo viver da cidade, no convívio dessa gente honrada e unida, num doce lar modelo de paz, entre dores minha mãe Maria me recebeu. Na pia batismal recebi os nomes de cristão e de Cacciaguida. Tive como irmãos Moranto e Eliseu. Minha esposa nasceu em Val-di-Pado; dessa origem vem seu sobrenome. Na guerra, acompanhei o Imperador Conrado (Conrado III de Hohenstaufen, que chefiou a segunda cruzada) que me consagrou cavaleiro, tanto lhe agradaram meus atos. Com ele lutei contra o infiel (os maometanos) que o vosso direito oprime na Terra Santa por culpa do negligente Pastor (o Papa). Fui tirado do mundo por aquela torpe gente; pelo martírio que me trouxe ao Paraíso onde encontrei a paz eterna”.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O PARAÍSO - CANTO XIV

 Beatriz pergunta a um dos espíritos celestes, em nome de Dante se depois da ressurreição dos corpos, permanecerá a luz que emana de suas almas e se essa luz prejudicará a sua vista. O espírito responde que depois da ressurreição, a vista dos espíritos aumentará. Aparecem novos espíritos. Sem perceber, Dante se encontra no planeta Marte, onde estão aqueles que defenderam com armas a religião cristã. Ao o aspecto do Céu, vence toda a beleza passada, porque quanto mais se sobe, mais cresce o esplendor dos Céus. Texto do Tradutor
 Chegam ao Planeta Marte

Quando a alma gloriosa de Tomás terminou de falar, rápido me veio à mente a imagem da água em um recipiente, que, ao ser tocado no centro se move em direção à borda e da borda ao centro; isto me ocorreu pela semelhança entre o discurso e o que em tom grave e delicado disse Beatriz:
               “O que este homem precisava saber, não foi manifestado por sua voz e muito menos por seu pensamento. Aliás, ele nem imagina que ireis explicar a origem de outra verdade: se a radiosa luminosidade em que estais envolto permanecerá eternamente igual e, assim sendo, dizei se após o Juízo Final, quando tiverdes assumindo novamente vosso corpo ressuscitado, vossos olhos irão suportar a intensidade de tão radiante luz”.
           Como em certa dança grega, aqueles que giram ao redor dos outros elevam suas vozes e gestos, assim ocorreu nos círculos dos espíritos eleitos que ao ouvirem o piedoso pedido de Beatriz exultaram de alegria no cantar e dançar. Aquele que, ao se aproximar da morte sente medo por deixar a vida terrena para viver no Céu, é porque desconhece o encanto desta alegria eterna. Quem aqui reina é Uno, é Duplo, é Triplo (Deus) e permanece eternamente em três, em duas, em uma pessoa, porém não limitado, mas a tudo abrangendo. De cada círculo foi por três vezes entoado um hino de louvor - com tão suave melodia que por si só fora valioso prêmio. Então ouvi vindo do círculo menor, uma voz tão suave como deve ter sido a voz do Arcanjo Gabriel quando anunciou a Maria ter sido ela escolhida para ser a mãe do Filho Divino - responder assim (a voz era a de Salomão): “Enquanto a bem-aventurança do Paraíso existir estaremos revestidos da luz que nos circunda. A intensidade do seu brilho é proporcional ao ardor do amor que trazemos em nós, se igualando na Graça concedida por Deus. E quando formos novamente revestidos do corpo glorificado e santo, mais felizes e ditosos nos sentiremos, pois seremos mais completos, aumentando-se assim a luminosidade com que o Sumo Bem nos adorna a fim de que possamos vê-Lo na Sua Glória; por isto nossa visão será mais penetrante, maior em nós será a chama do amor e seu esplendor será mais reluzente. Quando o carvão é incendiado sua chama desprende intenso brilho, porém não oculta suas formas; do mesmo modo permanecerá em nós esse esplendor, porém deixando que seja visto o corpo ressuscitado que hoje permanece a dormir sob a terra. Nenhum de nós será ofuscado pela intensidade da luz porque os nossos sentidos estarão adaptados a quanto prazer nos for determinado“.
          Então os dois coros, alegres e apressadamente exclamaram “Amém” demonstrando assim o quanto desejavam reaver seus corpos, não para satisfação própria, mas por amor aos seus pais, suas mães e todos os entes queridos que eles conheceram e amaram, antes de se tornarem luzes eternas. De repente, tal como ocorre ao cair da tarde quando a noite se aproxima aumentando as sombras e no céu surgem estrelas cuja luz aos nossos olhos se apresenta hesitante, assim me pareceu ter visto a brilhar novas e indecisas luzes que também girando, moviam-se ao redor daqueles belos círculos. Ó verdadeiro fulgor do Espírito Santo! Quando subitamente te mostraste, fulgurante, meus olhos vencestes deixando-os deslumbrados.
Porém, naquele instante, eu via Beatriz tão bela e sorridente a brilhar tão intensamente, que minha mente não consegue recordar com perfeição. Do seu olhar refletia tão poderosa força que a elevou e com ela me vi transportado ao mais alto e luminoso Céu (ao Planeta Marte). Tive a certeza de que havia subido, Pelo purpúreo esplendor dessa nova estrela (Beatriz) que notei de um rubor nunca visto. Então, do mais profundo do meu ser e com imensa humildade, louvei a Deus por mais essa graça a mim concedida. Não havia ainda exalado do meu peito todo o ardor de uma prece, quando convencido fiquei de que ela fora aceita e ter sido julgada propícia, pois perplexo me vi entre dois raios de luzes tão esplendorosos, tão rubros que exclamei: “Ó Hélios (o Sol) quão extraordinariamente brilhas!” A Via-Láctea que em suas estrelas é ou mais ou menos brilhante em algum ponto de seu espaço permanece misteriosa, deixando os sábios em dúvida por não saberem explicar qual seja a origem de sua natureza; igualmente em Marte, qual constelação reluzindo, aqueles raios cruzando-se em retângulos iguais, formava o sagrado Sinal-da-Cruz.
          Ainda mantenho gravada na memória a sublime visão; naquela cruz vi lampejar o Cristo, mas não consigo descrevê-lo com palavras. Quem recebe a Cristo e na jornada da vida O segue, depois de tê-Lo visto fulgurar naquela Cruz saberá desculpar-me pelo que eu não souber descrever. De uma a outra extremidade dos braços e, de cima para baixo  e debaixo para cima da Cruz, milhares de luzes se moviam indo e voltando; ao se encontrarem no centro da Cruz ou ao se afastarem, aquelas luzes resplandeciam ainda mais, como se costuma ver em crepúsculo, por entre galos e folhas de árvores, rápidos ou lentos, curtos ou longos, retos ou ondulados, a bailar em feixes de luz, em aposentos ao qual a arte e o engenho homem quis dar frescura e sombra. E como da lira e da harpa de cordas bem afinadas, se desprendem doces melodias que encantam até os ouvidos de quem desconhece notas musicais.
Assim, desse luzeiro que ali eu via em forma de Cruz, extático escutava sem compreendê-la, angelical harmonia. Deduzi tratar-se de altos louvores, porém compreendi apenas as palavras – “Ressuscita e triunfa” – confusamente era que em mim soava a melodia. Ouvi-a; porém tão enlevado ainda me sinto que não consigo ter outros sentimentos que me prendam a atenção senão a perplexidade do doce cantar.
      Tal pensamento pode parecer ousado se comparar essa alegria, com a que sentia na contemplação do olhar de Beatriz, onde minha alma encontrava sempre a paz. Porém, deve-se levar em consideração que estes lindos olhos iam ficando cada vez mais belos à proporção que íamos subindo, e eu não podia fitá-los.
Culpando-me, busco o perdão ao falar a verdade. Não escondo que ao contemplá-la sentia o prazer do mais puro encanto; prazer que tanto mais purificado fica quanto mais vou me elevando de astro em astro. 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O PARAISO - CANTO XIII

O Poeta descreve a dança das duas coroas de espíritos celestes. S. Tomás resolve a seguinte dúvida de Dante: Adão e Jesus Cristo são seres perfeitos por serem obras imediatas de Deus. Merecimento do Rei Salomão. Mas ele não pode ser comparado nem com Adão nem com Cristo. Conclui o Santo advertindo do perigo dos juízos precipitados e, do quanto é sujeito a enganar-se quem julga as coisas pelas aparências. Texto do Tradutor.

Quem desejar compreender o que pude ver deve conservar minha narração bem gravada na memória como se tivesse sido esculpido em rocha. Imagine estar vendo quinze astros distribuídos por diversos pontos da abóbada celeste, irradiando tanta luz que o firmamento ficasse todo iluminado e nesse espaço, girando sempre, noite e dia, duas imensas e fulgurantes rodas de carro cuja claridade ultrapassasse a dos quinze sóis. Agora imagine estar olhando para o centro dessas rodas com se estivesse olhando através da boca de uns cones firmando o olhar em cada uma, bem no ponto onde se localiza o eixo em torno do qual vai girando o primeiro círculo; considere essas duas rodas como sendo astros que formaram constelação idêntica a que surgiu no céu desde quando Ariadne foi levada pela morte. (Ariadne, filha de Minos, depois de morta foi transformada por Baco, numa constelação).  Agora, imagine aqueles dois círculos na celestial altura, um dentro do outro, porém girando em movimentos contrários e misturando seus raios de luzes de diferentes cores. Mesmo imaginando todo esse deslumbrante cenário, o leitor terá apenas pálida idéia de como eram as duas constelações que giravam em torno de nós! São verdades que vão além da nossa compreensão.
Esse mistério ultrapassa tanto a compreensão humana quanto o lento correr das águas do Rio Chiana (rio da Toscana). 
Nesse bailado e cantar, nem Baco nem Apolo estavam sendo louvados (hino que os antigos cantavam nas festas de Apolo), mas sim a Santíssima Trindade, de uma só essência e numa delas o Deus Humanado. Tendo os cânticos e o bailado sido interrompidos, as santas luzes voltaram para nós a sua atenção.
Então, em meio ao silêncio que os dois coros fizeram surgiu a mesma voz que anteriormente narrara a vida do “Mendigo de Deus” (é a voz de Tomaz de Aquino  que falara sobre Francisco de Assis).
Falou: “Ao te esclarecer a verdade, muitas das tuas dúvidas foram solucionadas; porém o Amor divino me impulsiona a falar sobre as outras que ainda restam. Acreditas que no peito onde a costela foi tirada para formar os gentis lábios que pela culpa da gula e desobediência transformou em morte, a vida da humanidade inteira; (o peito de Adão, de cuja costela foi tirada Eva, a qual desobedecendo as ordens divinas, comeu a maçã que foi fatal para a humanidade); crês também nesse outro peito que, sofrendo rude golpe pela aguda lança a restituiu; e pela decisiva retirada do peso da culpa transformando a morte em vida, o equilíbrio da balança da Justiça Divina foi restabelecido. (Jesus Cristo cujo peito foi aberto pela lança).
"Quanta sabedoria poderia ser concedida à humanidade pela Inteligência Divina que existência deu a um e a outro. Foi esse o motivo de eu ter dito ‘tão profundo e extenso foi seu saber que a tão alto, na Terra, ninguém se elevou’ referindo-me ao quinto esplendor que aqui se encontra. (O rei Salomão). Agora fixa tua atenção em minhas palavras e irás compreender que a tua crença e a minha afirmação são tão exatas na mesma verdade, como o ponto que define o centro de um círculo. Explico-te: O que não morre (Jesus Cristo) e o que pela morte é consumido (Adão = o ser humano) são iguais em perfeição, pois foram gerados pela Ideia esplendorosa de Deus que, através deles, seu amor nos revela; por isso, essa luz viva vinda do Seu Foco e do qual não se desprende (o Pai), em si mesmo se Reflete e a Ele retorna como luz em espelho. Esse retorno é o Amor que existe entre o Foco (o Pai= O Primeiro) e o Reflexo (o Filho= O Segundo) que o Terceiro fica sendo (o Espírito Santo é o Amor que une o Foco ao Reflexo); em nove Céus se dividindo (os nove coros angélicos) mantém a Unidade eternamente inseparável (é a Santíssima Trindade). Daí vai baixando gradativamente às últimas potências, diminuindo tanto o ímpeto da benevolência, (a força da graça) que, ao final, vai gerando rápidas existências. “Existências” a palavra que indica todas as coisas criadas e que o Céu em seu movimento vai multiplicando, com ou sem semente. Nem sempre a matéria ou substância de que é composto o universo, mostra a ideia divina em relação a criação. Disso vem o resultado de que plantas da mesma família produzam frutos desiguais e que os homens nasçam com personalidades diferentes. Se a matéria fosse igual em toda a criação e se a graça vinda dos Céus não diminuísse em relação a cada ser criado, a virtude divina seria igual para todos (homens, plantas, animais, minerais, etc). A natureza, porém apresenta suas imperfeições tal como tal como o artista que, embora dominador de sua arte, ao executá-la treme-lhe as mãos. Por isso o ardente Amor Divino (o Espírito Santo) a Clara Visão (o Filho) e a Primeira das Virtudes (o Pai), portanto a Santíssima Trindade faz com que toda a criação se torne perfeita. A Terra foi criada com tal perfeição a fim de receber o mais perfeito dos animais (o ser humano) – e permanecendo perfeita concebeu a Virgem Maria da qual o corpo de Divino Filho seria formado. Nesse ponto concordo com o teu pensamento de que a natureza humana jamais apresentou e nem apresentará seres mais perfeitos do que nestas duas criaturas (Adão e Jesus Cristo). Se por ventura tivesse eu concluído aqui meu discurso, com razão me terias perguntado: como então, Salomão pôde ter sido igual a eles em sabedoria? Deves, pois, ser informado da verdade: imagines de quem se tratava e a quem Deus disse: ‘Pede’! Falei bem claro para que tua mente melhor compreendesse que foi o Rei quem pediu sabedoria para bem governar. Não quis ele saber qual a quantidade de inteligências angélicas que dão movimento aos Céus, nem se de uma proposição maior e outra menor, a comparação seja a base da conclusão; ou se de um triângulo sem ângulo reto, se pudesse traçar um semicírculo. Assim, entenderás que, referendo-me a sabedoria sem igual, falava eu dos reis, os quais sendo muitos, poucos são os sábios e prudentes.”
E continuou: “Tenhas sempre em mente as palavras que te disse; sirva-se delas como chumbo preso aos pés; não vás rápido demais ao fim; imitas o caminhante que lentamente andando chegou primeiro que o mais apressado. Não te precipites em dizer “sim” ou “não”, pois se revela o mais tolo entre os tolos, aquele que sem refletir, afirma ou nega. Daí vem muitas vezes o prejuízo causado pela opinião geral que julga pelo impulso da paixão e não da razão. Quem em vão do porto se desvia, não retorna ileso da jornada. Quem busca a verdade, mas sua virtude não pratica, corre o risco de se perder. A prova confirmada por fatos dão Paménedes, Melisso e Brisso (filósofos gregos, rebatidos por Aristótelis) e muitos outros que partiram nessa viagem sem saber qual rumo seguir. Assim fizeram Ario, Sabélio (herejes condenados pela Igreja) e tantos outros que, como espadas, mutilaram o sentido dos textos da Sagrada Escritura.
“Quem se apressa no julgar, imita aquele que pretende calcular o valor da safra de trigo quando a seara ainda não está madura. Durante o inverno vi ramos cobertos de espinhos, para dar castigo ao que imprudente, lhe os tocassem; depois, na primavera, vi que esses ramos lhe ofereciam belas rosas. Vi também barco a navegar feliz o imenso mar e naufragar ao se aproximar do porto já alcançado. Não queiram dona Berta e dom Marinho (nomes de pessoas comuns) que, embora um furte e outro dê esmolas, Deus vai antecipar seu julgamento. Pode ser que durante a jornada da vida um se erga e o outro caia".

domingo, 28 de abril de 2013

O PARAÍSO-CANTO XII


Terminando Stº Tomás de Aquino de falar, ajunta-se a primeira coroa de doze espíritos resplandecentes, mas uma coroa de igual número de espíritos. São Boaventura, franciscano, tece louvores a S. Domingos. Depois dá notícias acerca de seus companheiros. Texto do Tradutor.

Assim que a nobre luz terminou de proferir sua última palavra, a coroa luminosa girou como anteriormente. Não havia ainda completado uma volta inteira, quando outras luzes apareceram formando um círculo maior ao redor do primeiro e ambos entoavam acordes e se movimentavam em perfeita harmonia. Esse canto superava o das Musas e das sereias. Quanto ao esplendor das luzes que dos dois círculos irradiava, nas cores se igualava as do arco-íris, escrava de Juno a surgir entre nuvens; eram tão semelhantes entre si que pareciam ser reflexo uma da outra e tão unidas ficavam, como se fossem uma só, tal como ocorreu com a que por amor foi consumida assim como as névoas são pelo sol da manhã, (a ninfa Eco que pelo amor a Narciso desapareceu dentro da própria voz).
É desse arco de luzes (do arco-íris) que vem a crença da promessa firmada entre Deus e Noé de que a terra não mais seria castigada com outro dilúvio.  
As guirlandas de sereno róseo iam girando em torno de nós nessa festiva dança entre harmonioso canto e flamejantes luzes quando, de repente, interromperam a festa como se obedecendo a um único comando, assim como acontece com nossos olhos que se abrem e fecham vigilantes; e do interior de uma das luzes elevou-se uma voz que fez com que para ela rápido me voltasse como a agulha da bússola se volta em direção à estrela polar. (A voz é a alma de São Boaventura).
São Boaventura - Google
Disse: “A imensa graça que me envolve em luz me inspira a te falar de outro Mestre que foi motivo de grande louvor; onde de um se recorda o outro tanto brilha. Ambos militando sob a mesma causa, na mesma glória resplandecem agora. O exército de Cristo, arduamente organizado, pequeno e cauteloso seguia Seu estandarte; e quando na milícia o desânimo chegava por falta de suprimentos indispensáveis a sobrevivência, somente por graça do Eterno Imperador, (Deus) provimento recebeu; e, para salvação da Esposa (a pobreza) enviou um duplo vencedor que, ao erguer a voz recobra a coragem daquele desanimado exército. Naquela terra (na Espanha) onde na primavera o suave vento convida a se abrirem novas flores que aos poucos se reveste toda a Europa, na região onde se embate furioso o mar e que o sol terminando o seu curso às vezes esconde seus ardores, em ditoso solo está Calaruega, que protegera o poderoso escudo no qual um leão subjuga e o outro é subjugado. (O escudo dos reis de Castela; representava dois leões: um abaixo e outro, acima de um castelo).  
Domingos de Gusmão -Google        

Ali nasceu o heroico lutador, esse incansável amante da fé cristã, que ao mesmo tempo em que complacente era com seus soldados, guerra declarara a maldade. A virtude foi tão intensa em seu espírito, que, ainda se encontrando no ventre materno, sua mãe lhe previu o futuro. (Durante a gravidez  a mãe de São Domingos viu em sonho um forte animal cujo pelo era branco e negro – as cores da Ordem Dominicana – carregando na boca uma tocha que incendiava o mundo).

“Quando veio se confirmar a união entre ele e a Fé na fonte batismal, sua madrinha que respondia por ele viu em milagrosa visão a farta colheita que ele e seus companheiros teriam na messe Divina. Como portentosa demonstração a que a piedosa alma estava destinada, um Anjo do Senhor desceu a fim de chamá-lo: Domênico e eu dele falo como do operário que Cristo elegera para ajudá-Lo no labor da vinha. Se mostrou ao mundo como servo e enviado de Cristo. A primeira paixão nele manifestada foi pela primeira lei que Cristo nos deu (Amai-vos uns aos outros).
Muitas vezes sua ama o encontrou prostrado no chão em profundo silêncio, porém bem desperto, como a dizer: - “para isto fui destinado”. Oh! Como, certamente seu pai foi feliz! Sua mãe foi realmente Joana, (Joana em hebraico tem o significado de “portadora de Graças”) se for certo o significado que lhe dão! Em pouco tempo tornou-se sapiente doutor; não, estudando nos livros de Ostiense e Tadeu (Ostiense: o cardeal Henique de Susa que comentou os “Deleteres” – Tadeu Andriotti,: florentino, médico ou segundo outros comentadores, Tadeu dei Pepoli, jurista bolonhês), mas buscando com afã os ensinamentos de Jesus, tornou-se assim guarda vigilante da santa vinha, que, havendo pouca dedicação ao dela se cuidar, rápido se perde. Quando esteve em Roma que era era compassiva para com  os justos e hoje vagueia sem rumo por culpa do que a governa, (por culpa do Papa Bonifácio VIII) não pedia ajuda financeira, nem juros, nem dízimos, pois esses pertencem aos pobres; porém suplicava consentimento para combater erros contra a doutrina de Cristo e proteger a semente da qual brotaram as vinte e quatro flores que diante de ti estão, contra os prazeres matérias da vida. (defenda a fé de que se alimentaram os espíritos dos vinte e quatro teólogos que estão na presença de Dante).
“Com força de vontade, santa pregação e zelo apostólico, se lança a difícil evangelização que o mundo tanto se admira. Dessa caudalosa nascente brotaram rios que até aos dias presentes continuam regando os jardins do mundo católico e aos seus arbustos dão vida e força. (Jardim, etc., em sentido figurado). Assim, ele foi uma das rodas que conduzia o carro onde estavam os defensores da Santa Igreja.
 “Do grande mérito do outro, antes de mim já te falou Tomás; e suas palavras, foram brilhantes. Porém o enorme sulco deixado por aquela roda ficou em desamparo tal, que onde havia flores o lodo tristemente domina. Hoje vê-se a sua família de tal modo desviada do caminho aberto por ele, que de todo esqueceu as pegadas. Logo se terá a prova da má cultura na seara; em vez de ir ao celeiro, sendo erva daninha será levada pelo vento. Quem nos escritos atentamente lesse, encontraria em algum lugar, a seguinte frase: - “sou, como sempre fui, isento de impureza”. Em Casele e Água-Spart (alusão a divisão dos franciscanos em dois partidos: um chefiado por Ubertino de Casela e outro por Mateus d´Acques-sparta) também não se viu coisa igual; lá, as normas do mosteiro são interpretadas de tal forma, que um, de covarde foge e outro, exagerado, não sai do lugar.
“Sou Boaventura natural de Bagnoregio; ao exercer elevados cargos sempre rejeitei o tratamento especial deixando os interesses materiais em segundo lugar. Naquela luz ao lado de Agostinho está Iluminato, (Agostinho e Iluminato: dois companheiros de S.Francisco) que foi da Ordem dos Irmãos Descalços; cada um, nas vestes da pobreza, por Deus se inflama. Vê também o valoroso Hugo de S. Vitor, bem como Pedro Mangidore e Pedro Ispano, (os três foram egrégios teólogos) todos famosos por seus doze livros editados. Vê também, Profeta Natan (o profeta que repreendeu Davi) e o metropolitano João Crisóstomo (patriarca da Igreja) Anselmo, (Stº Anselmo, bispo de Canterbury) e também o famoso Donato (gramático latino) soberano na arte do falar. Vê também ali, resplandecendo, Rábano e ao seu lado, o abade calabrês Giovachino, dotado de espírito profético. (Rábano e o Abade Giovachino, escritores sacros). As sábias palavras de Tomás de Aquino referindo-se ao excelso paladino levaram a mim e a todos que aqui estão, a cumprimentá-lo amorosamente”.


terça-feira, 26 de março de 2013

O PARAISO - CANTO XI


Dante elogia a vida contemplativa. As palavras proferidas no canto anterior por Stº Tomás criam duas dúvidas no ânimo do poeta. O santo, tratando de resolver a primeira, esboça a vida de São Francisco de Assis.Texto do Tradutor.

 Tomaz de Aquino- Google
Ó confusas aspirações humanas! Em falsas ilusões se envolvendo o homem tende a prender-se ao chão. Uns se escondem por trás das leis; outros buscam conceitos, buscam honrarias; um faz-se sacerdote; outro governa usando de força ou fraude, tirando proveito do mandato em benefício próprio ou dos amigos e muitas vezes entregando-se aos deleites da vida e a ociosidade! Mas eu livre dessas preocupações terrenas, com Beatriz, fui elevado aos Céus, sendo lá acolhido com imensa glória. Cada um daqueles espíritos luminosos voltava ao círculo ocupando o lugar onde anteriormente estava, ficando firme a brilhar, qual círio em candelabro. Então, do centro do clarão que antes me falara suave voz escutei, (é a voz de Santo Tomás de Aquino) enquanto sua luminosidade aumentava; assim dizia:  

Francisco de Assis-do Google
 “Ao fitar a Luz Eterna que em mim se reflete, compreendo claramente o que estás pensando e a sua causa. Desejas que eu afaste da tua mente a confusão que se formou quanto ao que há pouco te disse: - ‘a Tão alto, na Terra, ninguém se elevou’ – e ‘a voz que conduz a alma daquele que do Bem não se afasta. – Está aqui a explicação que espera: - ‘a tão alto’... A Providência Divina governa o mundo com tanta sabedoria, que perturbada sente a mente de quem tenta compreender Seus mistérios. E também: - ‘a voz daquele que conduz’. Essa mesma Providência doou à Esposa d´Aquele que em alta voz a ela se uniu quando na Sagrada Cruz estava, para fortalecer-lhe o espírito e a fé, dois príncipes (S.Domingos e S. Francisco de Assis) a fim de que o abençoado caminho lhe mostrassem (doou à pobreza). Um deles se dedicou a ela (a pobreza) com o ardor de um Serafim. (S.Francisco de Assis). O outro, com o brilho e a glória de um Querubim espalhou sobre a terra seus conhecimentos, (S.Domingos) Porém de um somente falarei, pois em um se encerra o que ao outro maiores louvores seja aplicado. Quem der aos dois o mesmo tratamento, não comete enganos, pois ambos seguiram a mesma meta.
“Entre Tupino e o rio que desce da alta montanha (Rio Chiascio), lugar escolhido mais tarde para eremitério de Santo Ubaldo, fértil encosta pende de alto monte. É dali que, pela Porta do Sol chegam a Perúgia o frio e o calor, enquanto no lado oposto da montanha Nócera e Gualdo padecem cruel jugo. No lugar onde o declive é menor, nasceu para o mundo um sol tão radiante como o que ao Ganges, às vezes ilumina. Quem desse portentoso lugar fale, não diga Assis, que pouco significa; chame o glorioso berço do “Oriente” (berço do Sol). Quando “essa luz” era ainda criança e tinha todo o conforto a receber dos seus, já suas virtudes se apresentavam. E ainda adolescente, por amor a aquela dama, (a pobreza) entrou em conflito com seu pai que lhe fechou as portas como se morto estivesse. Então na Corte Episcopal e na presença de seu pai a recebeu por esposa amada, devotando-lhe amor cada vez mais forte. Vivera ela (a pobreza) viúva e desprezada por mais de onze séculos e por nenhum outro amante fora desejada. (O primeiro esposo da pobreza foi Jesus; por isso ela ficou viúva mais de onze séculos até Francisco de Assis a tomou por esposa). Não significa a mesma coisa afirmar que aquele guerreiro temido pelo mundo a tenha encontrado no lar de Amíclas; (Julio César ficou admirado pela alegre pobreza do pescador Amiclas).
Também não é o mesmo, proclamar que ela, (a pobreza) inteiramente fiel e na presença de Maria que ficara ao pé da Cruz tenha subido ao madeiro com Cristo. Para que minha linguagem se faça mais clara, lhe direi o nome dos amantes: Francisco e Pobreza. A alegria no semblante, a ternura no olhar e a perfeição no amor ao próximo, davam a todos edificantes lições.
Aquela paz, o venerável Bernardo (primeiro companheiro de S. Francisco) desejou ardentemente, sendo o primeiro que a ele descalço correu, e pensava estar sendo vagaroso. Ó ignorada abundância! Ó verdadeiro e único Bem! Descalço foi também Egídio, foi Silvestre; (companheiros de S. Francisco); escolheram-na (escolheram a pobreza) porque tinham como guia seu esposo.
“Dali parte para o mundo aquele pai e mestre com a sua terna esposa e santa família. Não se sentia humilhado, nem vaidoso, nem se assustava por ser o obscuro filho de Bernardone (Pedro Bernardone, pai de S.Francisco) e nem por sofrer desprezado. Porém, cheio de coragem, mostrou o consistente propósito à Inocêncio. (Inocêncio III, Papa que deu autorização à Ordem Franciscana em 1214) de quem obteve a primeira aprovação ao regimento austero e verdadeiro.
“E quando progrediu, a família pobre daquele cuja vida heróica é agora aclamada no Céu com louvores de anjos, foi agraciada pelo Espírito Santo com mais uma vitória concedida por Horácio, que atendeu aos anseios daquele corajoso pastor. (Horácio III que em 1223, pela segunda vez aprovou a Ordem de S. Francisco). Em seguida, sem temer o martírio vai até o Egito para, na presença do soberbo Sultão, anunciar Cristo e Seu Evangelho (São Francisco, em 1219 esteve no Egito tentando converter os infiéis, mas logo voltou para a Itália). Percebendo então que o povo não aceitava a nova fé, para que seu zelo não ficasse sem proveito voltou para a grande quantidade de almas italianas. Foi então que, sobre duro penhasco entre o Rio Tibre e o Arno, (sobre o Monte Alverne) o derradeiro selo Cristo lhe pôs. E durante dois anos ele o apresentou em seu corpo. (No Monte Alverne, Francisco recebeu as cinco chagas de Jesus crucificado e as manteve em seus pés, mãos e peito durante dois anos, quando morreu). Quando  Deus o chamou para junto de Si para dar o merecido prêmio por seu desvelo e amor ao próximo, Francisco recomendou aos seus irmãos e herdeiros aquela senhora que tão ternamente amara (a pobreza), para lhe terem sempre fiel afeição, pedindo aos irmãos que seu corpo fosse sepultado na terra nua, sem qualquer outra proteção.
Imaginas, pois, quem Deus julgou digno de continuar conduzindo por alto mar a Santa Barca comandada por Pedro; a tarefa coube ao nosso Patriarca; pois quem aos preceitos, fiel obedece arrecadar tesouros sabe! Mas o seu rebanho desejava nova pastagem e tanto é por esse desejo impelido, que em diversos campos apareceu. Quanto mais cada ovelha é seduzida pelo pérfido e fútil atrativo mundano, tanto mais ao redil retorna. Temendo o passo decisivo, poucas se acolhem ao pastor. “O pouco pano com que se vestem, para elas já é o bastante”.
“Se claro te falei; se me ouviste com atenção e guardaste tudo na memória, ao menos em parte satisfiz ao teu desejo; pois bem vês que pelo ramo se conhece a planta e a razão está neste argumento: - “Encontra salvação aquele que não se desvia do caminho do Bem”. 

domingo, 3 de março de 2013

O PARAÍSO - CANTO X

Depois de admirar a infinita sabedoria de Deus  na criação do universo, narra o Poeta como,  sem aperceber, se encontrou elevado ao Sol, em que estão as almas dos doutos na teologia. Doze espíritos mais reluzentes o circundam e um deles São Tomás de Aquino, revela o nome dos seus companheiros. Texto do Tradutor.
Dante e Beatriz chegam ao Sol
Deus Pai, o primeiro e inexplicável Poder a contemplar Seu Filho por meio do Espírito Santo que procede de Um e de Outro eternamente, criou o visível e invisível de modo tão perfeito que nossa razão nunca poderá deixar de adorar o seu Autor.
O leitor erguendo o olhar para o alto e examinando com atenção o ponto onde a linha imaginária do equador se cruza com a das constelações do zodíaco, poderá imaginar a grandeza da obra que o Criador, por tanto amá-la nela sempre atento tem Seu divino olhar. Veja como desta parte se estende em linha obliqua a faixa que transporta os planetas cujos benefícios o mundo exige e espera. Não fosse assim oblíqua essa estrada, (a Via Láctea ou Caminho de São Tiago) para o Céu seu poder seria inútil; e aqui na Terra sua potencia não existiria. Se a inclinação desse caminho fosse um pouco mais ou menos diferente do que é, a ordem estabelecida no universo desapareceria. Caro leitor experimente fazer juntamente comigo pausada meditação sobre a grandeza do pouco que lhe apresentei. Te dei apetitoso manjar; serve-te dele se te agradou. Quanto a mim, o assunto sobre o qual escrevo não permite nem por um instante que dele minha atenção se afaste. 
O mais poderoso ministro da natureza, que transmite para a Terra a influência do Céu e faz com que o tempo seja medido pela sua fulgurante luz (o Sol), se aproximava do ponto onde neste Canto já me referi, e se voltava para o ponto onde mais cedo as trevas são extintas. (O sol do lado leste da terra). Já me encontrava no cento deste astro e não havia percebido, assim como alguém não conhece seu pensamento quando na mente ainda não surgiu.
Beatriz estava mais luminosa, mais refulgente; e isso aconteceu mais rápido do que da vez anterior. Se antes ela já era radiosa, naquele momento a intensidade de sua luz superava a do Sol. Procurarei usar palavras que possam me auxiliar, a fim de descrever da forma compreensível possível, o que vi; porém pode-se acreditar no que digo e desejar vê-lo. Não fique o leitor decepcionado ao perceber quão pequena é a criatividade da minha imaginação quando a tanto se elevar quisera. Ali no quarto Céu (no Sol) resplandeciam as almas que foram determinadas pelo Deus Pai a permanecerem contemplando o inefável espetáculo da Trindade. Beatriz me disse: “Humildemente agradece ao Sol dos Anjos tamanha bondade ao permitir que ao esplendor do Sol visível te eleves”. Coração de mortal algum se sentiu tão piedoso e devoto ao carinhoso convite, e tão decidido a expressar a Deus tão imensa gratidão. E naquele instante meu amor por Ele foi tão intenso, que ultrapassou o meu amor por Beatriz. No entanto, isso a ela em nada desagradou, pois no seu sorriso e no seu olhar resplandeceu tanta luz que, do êxtase profundo em que me encontrava, fui desligado.
Então vi luminosos e intensos clarões ao nosso redor formando um círculo. A suavidade de suas vozes superava a intensidade das luzes. É assim que vemos a filha de Latona (Diana ou a Lua) circundada desta mesma coroa quando o ar no espaço úmido da noite reflete os raios do luar.
O Reino dos Céus de onde estou retornando (o Paraíso) está adornado de raros e preciosos encantos que somente ali podem ser apreciados, portanto impossível é descrevê-los com realidade. As vozes são tão harmoniosas que transmitem a felicidade eterna a quem escuta. Assim, aquele que não se esforça em merecer ir para lá, age como quem espera ouvir um mudo contar estórias. Aquela coroa de luzes, cantando, circulou três vezes ao nosso redor, como astros que em torno do seu pólo vão rodando. Então, semelhantes a damas que, dançando, de repente param e em silencio aguardam o início de outras músicas de novo ritmo para continuar a dança, assim aqueles sois pararam em silencio. Então uma voz vinda daquele círculo luminoso me falou:
“O amor que da Graça emana e sublime se eleva pelo Amor Maior, (Deus) em ti se reflete com tal intensidade te conduzindo pela celestial escada a qual faz retornar quem por ela desce, que,  qualquer um de nós vendo tua a alma sedenta de saber essa água te negasse, qual corrente de água represada, irmão, livre não seria. Contemplando-nos, ficas desejando saber como é formada a coroa de luzes que circunda a formosa Dama que, protetora, pelos Céus te guia. Fui cordeiro do rebanho santo que na voz de Domingos conduz a alma daquele que do Bem não se afasta. Sou Tomás de Aquino (santo teólogo da ordem dos dominicanos – 1225-1274). Á minha direita está, de Colônia, o grande Alberto (o célebre teólogo Alberto Magno) a quem devo o carinho de irmão e mestre. Se desejas conhecer quem foram os outros que aqui estão a brilhar, no santo círculo fixa o olhar e atento acompanhe minha voz: Nesse esplendor que sorri jubiloso está Graciano (Graciano de Chiuse, em Toscana; escreveu no século XII um volume de Cânones eclesiásticos que foi chamado o Decreto de Graciano) que no dois foros, (o civil e o religioso) digno se fez de estar no Paraíso. Aquele outro ornamento desta coroa de luzes, foi Pedro que semelhante a pobre viúva do Evangelho, deu à Santa Igreja rico tesouro (Pedro Lombardo, bispo de Pais, morto em 1164, que ao oferecer à Igreja o seu livro “Sentenciarum” comparava-se com a viúva do Evangelho de S. Lucas, cap, XXI). O quinto clarão, cujo esplendor ultrapassa os demais (o sapiente rei Salomão, filho de Davi) se exaltou tanto em sabedoria, que o mundo ainda busca sua inspiração. Tão profundo e extenso foi seu saber que a tão alto na Terra, ninguém se elevou. Ao seu lado está essa radiante luz que na terra, sua principal ocupação foi a de procurar conhecer a natureza dos Anjos. (Dionísio Areopagita, que escreveu uma obra intitulada de “Coelesti Hierachia”) Naquele clarão menor tranquilo e brilhante, sorri esse advogado dos cristãos da época de Agostinho, que tão útil foi no seu escrito. (Pedro Osório, que aconselhado por Santo Agostinho, escreveu a “História” em defesa da religião cristã). Se com os olhos da mente tens me acompanhado nestes louvores, do oitavo clarão saberás agora: nos fulgores do Supremo Bem se eleva essa alma santa; (Severino Boécio, autor do livro “De Consolatione  Philosophiae”, aprisionado e depois morto por Teodorico, em 524). Havendo demonstrado os julgamentos errados do mundo e seus rigores, seu corpo jaz em Cieldauro; sua alma chegou à paz divina depois de amargurado exílio e impiedosa morte. Mais adiante em cada chama purpurina, resplandece Beda, Isidoro e Ricardo (Ricardo, padre da Escórcia; Beda, bispo inglês; Isidoro= Santo Isidoro de Sevilha. Os três doutores teólogos) cujos pensamentos se aperfeiçoaram além do conhecimento humano (na teologia e na filosofia). Este de quem tua vista se despende a mim retornando, julgou ponderado e cautelosamente, que a morte sendo rápida, trás grande benefício; foi Singer que agora aqui brilha eternamente; outrora, Na Rua Fouarré, lera verdades, que provocou grande ódio" (Singer de Barbante, professor de teologia na Universidade de Paris, no século XIII a qual tinha a sua sede na Rua Fouarré).
E, qual relógio que nos desperta na hora em que a Esposa do Senhor (esposa de Deus) dá inicio ao dia no retinir dos sinos, inundando a devotada alma com agradável som que fervorosa o escuta, assim eu vi a gloriosa coroa de estrelas se movimentando e cantando com tal suavidade de vozes, que imagino haver igual somente no Paraíso celestial.