O PURGATÓRIO - CANTO XI
“MEREÇO ESTA PENITENCIA...”
Virgílio pergunta às almas que purgam o pecado da soberba qual é o caminho para subir ao segundo compartimento e uma delas dá a indicação requerida. Umberto Aldobrandeschi dá-se a conhecer e fala com Dante, que, depois reconhece Oderisi de Gubbio, pintor e gravador. Oderisi dá-lhe notícias de Provenzano Salvani que está junto com ele. Texto do Tradutor.
Ainda no 5º local - 1º círculo no terraço do orgulho
“Ó Pai nosso que estais no céu, louvado seja Vosso Nome, Poder e Saber! Não por estar no céu limitado e sim por haver dedicado maior amor aos principais seres de Vossa criação! Jubilosas todas as criaturas Vos rendam sublimes graças! Do Vosso Reino nos venha a ditosa paz que inútil seria nosso empenho em alcançá-la se não vier de Vossa bondosa mão! Como os anjos entoando hosana fazem Vossa vontade, assim façam humildemente os homens a cada dia! O sustento quotidiano nos dê hoje. Sem ele, não consegue ir além quem pretende caminhar pelo árduo deserto da vida! E, na proporção que perdoamos a aqueles nos fazem mal, com clemência nos perdoai Senhor, mesmo sendo nós indignos desse perdão! Oh! Não deixeis nossa frágil virtude cair na tentação do inimigo! Nós não estamos mais nesse perigo Senhor; porém para os que na terra necessitam de amparo, que esta oração lhe seja perfeita!”
Suplicando ao Céu para que providências sejam tomadas em seu e em nosso benefício, aquelas almas andavam sob o peso de suas culpas como se o que as oprimisse fosse um pesadelo. Em cada uma, o peso da pedra que carregavam às costas correspondia a gravidade da culpa; assim no primeiro círculo se arrastavam ofegantes, expurgando as névoas do pecado. (A penitência dos orgulhosos consiste na humildade forçada pelo peso do pecado que carregam nas costas, impedindo que levantem a cabeça. Dorothy Sayers identifica três tipos de orgulhosos que estão nesta situação: Omberto, o aristocrata – orgulho pela sua nobre linhagem; Oderisi, o artista – orgulho pelas suas realizações; Provenzano, o déspota – orgulho pelo poder de dominar).
Se lá com verdadeiro zelo aquela almas suplicam em oração por nós, o que podemos fazer aqui no mundo em seu benefício daqueles que já receberam o sinal da salvação? Com nossas preces ajudemo-las pois a limpar os vestígios das culpas, por mais leves que sejam; e assim purificadas se elevem à Eterna Luz!
Disse o Mestre: “Que justiça e piedade vos consiga rapidamente alívio e possais, alcançando o voo, ir até onde desejais! Agora socorrei-nos indicando um caminho mais curto ou o que é menos difícil para se subir porque para este meu companheiro, pesada são as carnes de Adão que ainda o reveste e, por mais que se esforce lhe causa enorme cansaço essa jornada”.
A voz que respondeu ao Mestre não deu o menor indício sobre quem as pronunciou. Disse: “Vinde conosco; à direita ao longo da encosta vereis o caminho por onde essa pessoa ainda viva poderá subir. Esta pedra que carrego e me domina a fronte orgulhosa obrigando-me a unir o rosto ao peito, impede de olhar para a face deste homem que talvez o conhecesse, podendo assim solicitar que me seja compassivo. Fui toscano; tive pai ilustre que se chamava Guglielmo Aldobrandeschi; seu nome algum de vós o conheceu? (Quem fala é Umberto, que guerreou contra Pisa. Ele começa sua apresentação, ainda no hábito do orgulho dizendo-se um latino de família nobre citando o nome de seu pai, Guglielmo. Em seguida, já revelando sua humildade adquirida diz que talvez Dante não conheça sua família, e confessa sua culpa.) Tanta arrogância me inspirava a gloria e os feitos valorosos de nosso nome que na origem comum não mais pensava, olhando a todos com indiferença e desprezo. Assim, nessas condições morri deixando em Siena o orgulho que em Campangnático era conhecido por todos. Chamei-me Umberto; a pena da soberba não coube somente a mim. Esta é a causa da desgraça que condena igualmente a todos os meus. Mereço esta penitência que atrapalha os passos, para que se cumpra a lei divina. Quando eu era vivo isto não fiz, portanto é justo que o faça agora”.
Enquanto eu curvado a escutava, uma das almas (não a que falava) com o corpo dobrado sob o peso do fardo retorcendo o pescoço olhou-me e me reconheceu; então gritando pelo meu nome pediu que a acompanhasse; e também encurvando-me, acompanhei-a.
Disse-lhe eu: “Quando em vida não foste Oderisi? Honra daquela arte que Paris agora apelida de iluminura?” (Oderisi de Agobbio foi um famoso pintor de miniaturas e ilustrador de manuscritos) Respondeu-me: “Hoje me agrada mais a pintura de Franco de Bolonha; (Outro célebre miniaturista. Foi discípulo de Oderisi que superou seu mestre.) a glória é dele; a minha é em parte; esta verdade não fora por mim proclamada em vida, pois a ambição de ser o primeiro em tudo me dominava a alma. Aqui se paga pelo mal da soberba; poderia eu estar agora em terrível lugar mas, no último momento de vida pude mostrar a Deus que me arrependera. Oh! Como a vaidade ilude o ser humano! Cimabue julgava ter conquistado o troféu como pintor mas foi vencido, pois Guiotto obscureceu lhe a ilusória competição. Assim, no estilo da arte Guiotto cede a Guido e este cede lugar a outro Guido. (Os dois Guidos são provavelmente os poetas Guido Guinicelli de Bologna que Dante tem como “pai” que influenciou sua poesia, e Guido Cavalcanti de Florença amigo de Dante e até então, o poeta mais importante da Itália (ver Inferno, canto X). Agora é bem provável que já tenha surgido um novo mestre sucedendo a ambos. A opinião humana é instável como o vento; muda rapidamente de direção; e a fama varia de acordo com a opinião. Que fama permanecerá em ti se chegares a velhice ou morreres na infância se em proporção a eternidade um milênio é mais curto que um minuto em relação a Terra que está solta no espaço? - (Guiotto di Bondone é considerado o “pai da pintura moderna”. Ao romper de vez com a tradição iconoclasta bizantina, representando figuras humanas com realismo e profundidade, fundou a escola realista na pintura renascentista de Florença. Nascido em Vespignano, provavelmente estudou em Florença como discípulo de Cimabue. A seguinte história é relatada nas notas de H. Longfellow: “Dizem que Giotto, quando ainda era uma criança e aluno de Cimabue, havia pintado uma mosca no nariz de uma figura na qual o próprio Cimabue estava trabalhando. A mosca era tão fiel que, quando o mestre retornou para continuar o seu trabalho, ele pensou tratar-se de uma mosca de verdade e levantou sua mão várias vezes para afastá-la.” Giotto era amigo próximo de Dante e provável autor do único retrato do poeta feito durante sua vida atualmente em exposição no museu do Bargello em Firenze. Vários afrescos e peças religiosas em Pádua, Arezzo, Florença, Roma, Nápoles, Rímini e Assis são atribuídos a Giotto). - Esse que vai a minha frete caminhando lentamente, na Toscana foi o mais famoso de todos; está salvo do esquecimento apenas em Siena onde foi muito poderoso, quando então se perdeu na soberba tornando-se hoje objeto asqueroso, alvo da ira do povo de Florença. A fama terrena se iguala à margarida rasteira que floresce e morre; o mesmo sol que a fez florescer, queima suas pétalas lançando-a por terra”.
Respondi: “O que dizes faz estimular em mim a humildade desprezando o orgulho. Mas, quem era esse de quem falas!”. Respondeu-me: Trata-se de Provenzano Salvani; (foi um dos nobres e orgulhosos guibelinos de Siena que propuseram a destruição de Florença após a batalha de Montaperti (veja Inferno, canto X). Está aqui porque pensou ter Siena em suas mãos – pura presunção de alma insensata! Agora permanece caminhando curvado desde que a vida o deixou. Eis aí o castigo para quem tanto à soberba se entregou!”.
Continuei a perguntar: “Se alguém leva a vida inteira andando pelo caminho errado e demora a reconhecer esse erro, ao morrer não pode subir a montanha devendo permanecer ao sopé contando somente com o auxílio de piedosas orações pelo tempo igual ao de sua existência na terra, como pôde Provenzano ter conseguido chegar aqui?”
Respondeu-me Oderisi: “Quando ele estava no auge da influência, teve perante o povo grande gesto de humildade; procurando obter a liberdade de um amigo que fora por Carlos (Carlos di Anjou, inimigo de Provenzano) detido e levado a prisão esteve em praça pública angustiado e miserável pedindo esmolas para obter o valor do resgate. Mas não direi mais do que isso. Talvez não me tenhas compreendido porém te há de ser em breve tudo explicado pelos teus conterrâneos. Por esse generoso feito, o ingresso antecipado no monte do Purgatório lhe foi permitido
Nenhum comentário:
Postar um comentário