O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

 

O PURGATÓRIO – CANTO XIX

“VINDE! POR AQUI SE PODE PASSAR”.

No sono Dante tem uma visão misteriosa. Acordando Dante conta a Virgílio, o qual a explica. Sobem, depois, os Poetas ao quinto compartimento no qual se purificam os avarentos, debruçados sobre o chão. Entre eles está o papa Adriano V, Ottobuono de Fieschi, que lhe pede que o recomende a sua sobrinha Alagia. Texto do Tradutor.

        Era exatamente a hora em que o calor do dia ainda não é suficiente para reprimir o frio que se eleva da Terra ou desce da Lua; (era manhã, pouco antes do alvorecer) e também o momento em que no nascente os astrólogos podem melhor observar as duas constelações,  (uma das combinações que os astrólogos desenhavam para adivinhar a sorte e que se parecia em parte, com a constelação do Aquário e também a do Peixes) quando em sonho vi uma mulher gaguejante que tinha os olhos vesgos, os pés tortos, as mãos deformadas e o rosto macilento. (Essa mulher simboliza os vícios.) Mantinha eu o olhar fixo nela; e como o Sol que aquece os membros de quem à noite o frio agrava, assim sob o efeito do meu olhar a quase morta movia a língua, erguia o corpo e no mundano e lívido semblante já se apresentava agradáveis cores como a desejar o amor.

        Depois soltando a voz há pouco titubeante entoava tão doce e inebriante canto que o enlevo me absorvia. Assim cantava: “Sou a deliciosa sereia que nos mares desvia os navegantes; por provocar tanto prazer, meus fascinantes cantos a Ulisses seduziram; e raros foram os que me deixaram, pois a quase todos prendem o som dos meus cantares”. 

        Mal seus lábios se fecharam, eis que apareceu junto a mim uma linda dama (símbolo da prudência e das virtudes) cujo olhar deixou a sereia terrivelmente perturbada. “Dize-me ó Virgílio, que mulher é esta?!” Bradava irritada a dama. E o Poeta acorreu respeitoso ante aquela senhora de celestial semblante e enérgicos gestos, pois, travando as mãos da sedutora sereia rasgou-lhe as vestes desnudando o ventre; e ao insuportável odor que dela se desprendeu acordei.

        Abri os olhos e vi ao meu lado Virgílio me dizendo: “Três vezes te chamei!”! – e continuou – “Levanta-te! Vamos! Apressemos o passo”. Ergui-me prontamente. O dia já havia iluminado todos os círculos do alto monte. Em direção a nossas costas surgia o Sol. De fronte baixa como quem oprimido pela dúvida seguia eu o Mestre quando ouvi uma voz dizendo: “Vinde! Por aqui se pode passar”. Foram estas palavras proferidas de modo tão suave, tão carinhoso, que igual nunca se ouviu na Terra. Quem nos havia falado indicando o caminho entre as rochas tinha asas estendidas cuja alvura era igual às de cisne. Depois agitando as plumas exclamou: “Venturosos os que choram, pois aqui terão a esperança como consolo”.  

        Assim que o luminoso anjo se elevou, o Mestre perguntou-me: “Por que estás preocupado olhando para o chão?” Respondi: “O sonho que tive no qual aparecia aquela  estranha Figura tanto me impressionou que ainda não consegui esquecer”. Disse-me o Mestre: “O que viste foi a antiga feiticeira; ela representa os males que no círculo acima são punidos. Ali verás também como o homem se desliga deles. No entanto, não penses mais nisso. Segue adiante e fixa o olhar na beleza dos astros que Deus criou como que para serem sempre apreciados!”

   9º local - 5º círculo =  terraço da avareza 

        Como o falcão que primeiro olha seus pés, depois obedecendo ao comando levanta voo e do ar se atira contra a presa, assim eu: acelerando o passo percorri o restante do caminho que estava aberto na rocha chegando rápido ao outro círculo.

        Assim que entramos no quinto círculo vi uma multidão em grandes lamentos; prostrados, tinham os rostos voltados para o chão. “Adhaesit anima mea pavimento... ([Bíblia – salmo 118, 25] “Minha alma prostrou-se por terra; dai-me a vida, segundo a tua palavra) diziam suspirando com tanta dor que mal compreendi suas palavras. Disse-lhes o Mestre: “Ó eleitos de Deus que padecendo encontram alívio na justiça e na esperança, dizei-nos por onde devemos seguir para chegarmos ao cimo”. A pergunta feita pelo meu Guia foi respondida por uma alma que mais adiante estava. “Se não fostes atingido por punição igual a nossa e mais rápido pretendeis chegar ao alto, deveis ir sempre pela direita seguindo a parte externa da rocha”.

        Supondo que nesta resposta estava oculta outra intenção voltei os olhos para Virgílio que com delicado gesto aprovou o desejo que em meu olhar se manifestava. Tendo recebido a aprovação do Mestre, depressa procurei me aproximar daquele ser doloroso cujas palavras chamaram minha atenção. Perguntei-lhe: “Ó tu que lacrimoso expias  as culpas eliminando o mal que te impede de elevares à glória Divina, interrompe por alguns instantes o teu pranto fervoroso e responde- me: Quem foste? Por que estás assim lançado ao solo? Estando eu ainda vivo pretendo voltar ao mundo de onde eu vim; desejas algo de valioso de lá que te traga benefício?”

        Respondeu-me: “Te direi a razão de sermos castigados deste modo; primeiro convém que “Scias quid ego fui sucessor Petri(Saibas  que  fui  sucessor  de  Pedro”). "O  título  de  minha  família  teve origem no famoso rio que corre entre Siestre e Chiavari. (Lavagna é uma comuna (município) italiana da região da Ligúria, província de Génova; faz fronteira com Siestri e Chiavari. Já na época pré-romana, havia nesta região um povoado com esse nome. O território foi entregue para o abade Columbano à monges que o cuidaram e a desenvolveram economicamente).

        “Em pouco mais de um mês senti quanto pesa o cuidado que se deve ter para que se mantenha puro o grande manto. Qualquer outro fardo parece feito de plumas se comparado a esse. Ai de mim! Quanto foi difícil o converter-me! Mas, apenas eleito Pastor de Roma, (Ottobuono dei Fieschi, conde de Lavagna eleito  Papa Adriano V) fiquei sabendo como é fútil a vida no mundo. Meu coração sequer teve um momento de paz ou tranquilidade. No entanto sentindo  que os valores terrenos não me satisfaziam, me consumi inteiro no desejo pela vida eterna. Minha alma mísera e triste que antes havia se afastado de Deus buscando apenas a sórdida avareza, bem merece esta punição que vês. Aqui, a gravidade do pecado da avareza se apresenta pelo castigo que se recebe; neste monte não há outro que seja mais severo. Como nosso olhar não se erguia ao Céu porque estava embevecido somente nas coisas terrenas, a Justiça Divina o prende a terra não sendo permitido erguê-lo por um só instante. Tendo a avareza extinguido em nós a inclinação ao bem, a Justiça Divina nos tem castigado mantendo-nos com os pés e mãos estreitamente unidos; e assim estendidos, imóveis estaremos enquanto a Deus aprouver”.

        Querendo lhe falar mais havia me  ajoelhado; porém tendo ele reconhecido esse meu ato, me impediu dizendo: “Por que te curvas?” Respondi: “Procedendo desta forma cumpro um dever em reverência a vossa dignidade de sucessor de Pedro”. Então falou: “Ergue-te irmão! Não cometas esse erro! Somos todos iguais. Eu, como tu e a humanidade inteira obedecemos a lei de uma única Vontade. Se compreendeste o verdadeiro sentido do Evangelho, quando diz – neque nubet  “no céu não há núpcias”.  saberás quanto é correto meu modo de pensar. (Palavras de Jesus aos saduceus em [Mt. 22,30 Porque na ressurreição, nem os homens terão mulheres, nem as mulheres marido, mas serão como os anjos do céu]. Com essa expressão Adriano V quer que Dante entenda que após a morte ele não é mais chefe da Igreja). Agora deves ir; já te detiveste demais. Tua presença aqui impede meu saudável pranto que apressam o perdão. Na Terra tenho uma sobrinha; é o único parente que me restou; chama-se Alagia. Tem bons sentimentos; espero que a  maldade de nossa maldita raça não a tenha corrompido”.

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