O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

domingo, 26 de maio de 2024

 

O PURGATÓRIO – CANTO XXIII

“ABRE-ME OS LÁBIOS, Ó SENHOR... 

No sexto compartimento estão as almas dos gulosos. Eles são atormentados pela fome e pela sede; Dante descreve a sua horrível magreza. O Poeta reconhece o seu parente Forese Donati, o qual louva a sua viúva , Nella, e repreende a impudicícia das mulheres florentinas. Texto do Tradutor.

Ainda no 10º local =6º círculo: terraço da gula

Com o olhar fixo sobre os verdes ramos corria eu em direção à árvore quando aquele que para mim foi mais que um pai disse: “Filho, o tempo que nos resta exige que seja melhor aproveitado. Vamos! Continuemos a caminhar”.

Voltando segui os Poetas com passos acelerados atento ao que falavam; apesar do rápido caminhar não me sentia fatigado. De repente escutei vozes que entre prantos entoavam “Lábia, Domine, mea” de tal modo, que ao mesmo tempo me causou prazer e compaixão (“Salmo 50,17- Senhor, abrirás os maus lábios, e a minha boca anunciará os teus louvores”; é a oração dos gulosos para lembrar que os lábios sevem para outra coisa além de come e beber). Disse eu então: “Explique-me, Pai, sobre as vozes que estou ouvindo”. Respondeu o Mestre: “São almas que, talvez por este meio tentam apressar o pagamento de suas dívidas”.

Do mesmo modo como piedosos peregrinos que estão atentos somente na jornada encontrando gente estranha voltam-se, olham, mas logo aceleram o passo, assim em nossa direção vinha uma multidão de almas em devoto silêncio; andavam rápido e ao se aproximarem de nós olharam, mas se afastaram prontamente. Todas elas tinham olhos encovados, faces pálidas e tão magras, que as peles estavam coladas, sobre os ossos. Não creio que Erisitão quando derrotado, ao sentir a terrível fome  tenha apresentado tamanha magreza. (Mitologia:  Erisitão era um rei da Tessália, rico, ímpio e violento, que não temia nem reverenciava os deuses. Um dia Erisitão violou um bosque consagrado a Demeter, deusa da agricultura, pondo-se a derrubar árvores consagradas à deusa e a golpear com o machado um imenso carvalho. Do tronco ferido esguichou sangue. Um dos criados tentou impedi-lo de continuar, mas teve a cabeça cortada com um único golpe. As divindades da floresta também não conseguindo impedi-lo correram a Demeter exigindo justiça. A deusa então recorreu a Éton, (a Fome) que se colocou no estômago de Erisitão despertando-lhe um apetite devorador que nada foi capaz de apaziguar. Em poucos dias ele consumiu toda a comida que havia em seu palácio e gastou toda sua fortuna para comprar mais e mais. Desesperado vendeu sua filha Mnestra como escrava para comprar mais comida.  Mesmo assim Erisitão não conseguiu saciar-se e emagreceu sem parar. Enlouquecido começou a comer os próprios membros e acabou devorando a si próprio). Cada olho parecia um anel sem pedra; o que na face humana alguém pode reconhecer a palavra omo, bem claro nelas se distinguia apenas a letra m. (Os místicos medievais diziam ter a capacidade de ler a palavra ‘omo’ - homem - no rosto das pessoas.  Os dois olhos representando as leras “O” e o nariz mais as sobrancelhas, a letra ‘m’). Quem poderia acreditar, não conhecendo o motivo, que este estado de fome seria acalmado pelo desejo de sentir o frescor de água a jorrar ou o aroma de um fruto maduro? Sem compreender perguntava a mim mesmo qual seria a razão para tanta fome a ponto de produzir tal magreza, quando lá da profundidade de suas órbitas uma daquelas sombras me encarou gritando: “Que merecimento tenho para receber graça como esta?”

        Quem havia falado seu gesto não me indicava; mas, pela voz tive prova segura do que seu aspecto não revelava. Foi como um clarão em noite escura. Neste rosto de traços deformados identifiquei Forese. (Forese Donati, parente de Danti). Dizia: “Oh! Não fiques assustado por me ver com os ossos descarnados, a face descorada e o corpo mesquinho. Mas diga-me a verdade a teu respeito: vejo-te acompanhado por outras duas almas; por isso rogo-te não demorar em me responder!”.

        Respondi: “Minha dor foi tão verdadeira ao ver-te morto como é  agora encontrando-te em estado tão deprimente! Mas, por Deus, revela-me por que estás a sofrer tanto! Responder-te porque aqui estou não posso pois embarga-me a voz, tão absorto em mágoa estou”.

        Ele então me falou: “Por vontade da Sabedoria Eterna essa água e essa árvore que há pouco viste são dotadas de tal poder que produziram em mim tamanha consumação. Essas almas que cantam tendo o rosto banhado em lágrimas, durante suas existências terrenas se entregaram à gula e agora, pela fome e pela sede recuperam o estado de santidade. O aroma das frutas e frescor da água espargida sobre as ramas, estimulam ainda mais em nós insaciável desejo de comer e beber. Cada volta que damos pelo círculo faz aumentar nosso sofrimento – cometo erro quando chamo ‘sofrimento’ o que deveria chamar ‘purificação’. Esse ardente desejo que nos impulsiona em direção ao alimento é o mesmo que fez Cristo dizer “Eli!”, quando na Cruz, com seu sangue nos libertou do pecado”. (Cristo crucificado pouco antes de morrer disse: Mat. 27,46  Eli, Eli, lamma sabachtani” [Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?])

        “Forese”- disse eu -  "Desde o dia em que deixaste o mundo dos vivos passaram-se menos de cinco anos! Se em ti a capacidade de pecar foi interrompida (pela morte) antes de que tivesse chegado o arrependimento momento em que a alma é reconciliada com seu Deus, como podes estar aqui neste círculo? Eu acreditava que estivesses lá embaixo ao pé desta montanha (no Vale dos excomungados, dos preguiçosos) onde a alma permanece por tempo igual ao tempo em que na Terra manteve desligada dos preceitos divinos”.

        Respondeu Forese: “Minha querida Nella (Giovanella - viúva de Forese) com incessante pranto e insistentes preces induziu-me aqui a trocar a amargura da expiação pelas saborosas lágrimas do arrependimento. Assim, pelos méritos de suas súplicas e orações foi reduzido o tempo de espera ao sopé do morro sendo conduzido a outros círculos. Essa a quem na Terra tanto amei, quanto mais se dedica às virtudes, tanto mais Deus a tem com especial afeição. Pois se encontra mais pudor entre as mulheres de Barbagia da Sardenha, do que entre a da Barbagia onde a deixei. Ó caro irmão, queres que eu continue a manifestar minhas ideias? Não demorará a chegar o tempo em que vozes se erguerão e serão promulgadas leis proibindo a ousadia das damas florentinas que, sem pudor sentem vaidade em exibir os seios. Por acaso são necessárias disciplinas morais ou espirituais para que as mulheres pagãs ou sarracenas andem decentemente vestidas? Se essas seminuas tivessem a certeza de qual castigo está para elas reservado, já estariam com as bocas abertas berrando. E se antevendo não esteja eu enganado, tais tristezas hão de vir antes que se tornem adultas as crianças que atualmente dormem em berço. Agora irmão, dá-me a alegria de dizer quem tu és! Repare que toda essa multidão está atenta a observar a sombra que teu corpo produz ao se colocares em frente à luz“.

        Então comecei a falar: “Se agora recordares quem fomos outrora e na vida leviana que ambos levávamos, certamente sofrerias dor ainda mais aguda. Tenho sido conduzido desde o mundo dos vivos até aqui por aquele que está a minha frente. Estava então em sua plenitude a irmã desse que vês ". - E apontei para o Sol (irmã desse... a lua) - “Pelo mais profundo das trevas onde estão os verdadeiros mortos me guiou estando eu ainda com a carne unida aos ossos. E sempre por ele conduzido venho subindo pelos círculos desta montanha que em ti corrige o que trazes de errado. Conforme disse, ele me acompanhará cumprindo o que lhe foi determinado, até onde eu veja o semblante de Beatriz. A partir daí, não terei mais a sua companhia. Veja! É Virgílio o meu constante guia. E aquele outro é a venturosa alma por quem a montanha tremeu de alegria quando dela partiu para a liberdade eterna” .

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