O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

 

O PURGATÓRIO – CANTO XXXI

"DIZ A VERDADE, DIZ!..."

        Beatriz continua repreendendo Dante, o qual, confessa os seus pecados. Matilde o mergulha, então, no rio Letes. Depois as sete damas que participavam da procissão (as quatro virtudes cardeais e as três virtudes teologais) o levam até Beatriz, pedindo a ela que se desvele diante do seu fiel. Beatriz tira o véu. Texto do Tradutor

Ainda no 12º e último local = Paraiso

        “Ó tu, que estás diante das sagradas águas”, continuou Beatriz a falar agora diretamente a mim com palavras que antes já fora suficientemente doloroso; dizia: “digas a verdade, digas! É necessário que a acusação esteja unida à confissão do culpado”.

        Tanto me foi torturada a mente que a minha voz desapareceu na garganta. Ela então esperou que eu me recuperasse e continuou: “O que estás pensando? Em responder-me que ainda não fizeste apagar na água as lembranças do passado deplorável?” (apagar na água=As águas do rio Letes apagam da memória toda a lembrança do pecado, de quem delas beber).

        No meu espanto travado pelo temor, trêmulo respondi um tão confuso “sim” que foi necessário manifestá-lo também através de um movimento de cabeça. Como estando o arco esticado em excesso a ponto de romper-se a corda fazendo  com que a flecha chega ao alvo mas sem  força para penetrá-lo, assim estava minha alma; perturbada ao extremo me fez romper em lágrimas e soluços fazendo-me perder totalmente a voz.

        E continuou: “Se tivesses obedecido às inspirações enviadas a ti por mim como farol que ao bem te conduzisse – se era isso teu desejo – onde estariam os obstáculos que pudessem impedir seus passos? Quais as correntes que retiveram teus passos não permitindo trilhar o caminho do bem? Quais foram os encantos que em outros te prenderam e delícias que tanto te atraíram a ponto de envolver tua alma de tal modo?”.

        Do meu peito amargurados suspiros saíram. Conseguindo um pouco de ânimo, com a voz embargada pelo pranto respondi: “O engano, o fingimento me encaminharam ao prazer mundano nublando assim em meu pensamento tua lembrança”.

        Respondeu-me: “Se tivesses ocultado teu pecado, a gravidade da culpa aumentaria perante Aquele que tudo vê e por quem deves ser julgado. Mas, se o pecador confessando se sentir arrependido do mal praticado, a justiça divina torna-se mais branda. No entanto, para que sintas vergonha dos teus erros e no futuro ao ouvir sereias não voltes a proceder da mesma forma esquece o motivo do teu pranto e escuta-me: Verás que, mesmo tendo deixado a vida terrena eu te guiei te conduzindo pelo bom caminho. Jamais a arte ou a natureza te mostrou tanto encanto quanto a formosura do corpo que eu habitei e que agora está transformado em pó. Se por teu sublime amor quiseste ter baixado comigo à sepultura, como foi possível te deixar seduzir por outros amores menores? Sentindo estar sendo assaltado por tais enganos deverias ter elevado o pensamento aos céus até que minha imortalidade te elevasse às alturas; e não baixar do voou em que subias, te expondo a novos perigos atraído por vaidades passageiras. O pássaro inexperiente será duas, três vezes iludido pelo caçador; mas a ave adulta foge ao perceber a armadilha”.

        Como um menino que a mãe por longo tempo o repreendendo baixa a fronte em silêncio e envergonhado reconhece o erro cometido, tal eu me encontrava. E ela continuou: “Se estás magoado por me ouvir levanta a barba; olhando-me hás de te sentir mais castigado ainda!”

         O vendaval da Europa ou o tufão vindo da terra que a Jarbas obedecia (o frio vento austral ou o vento meridional que sopra da África, terra onde reinou Jarbas que na mitologia romana, é rei dos getulos, população nômade que vivia perto de Cartago, no norte da África. O poeta romano Virgílio o apresenta, na Eneida, como filho de Júpiter), com maior resistência abateria o altivo carvalho, do que suas palavras à mim. Quando ela disse “Barba” e não “semblante” e ao erguer o rosto, pensativo percebi a ironia e o que a motivou (Beatriz disse “barba” e não “semblante”, querendo se referir a idade adulta de Dante). Então, ao erguer os olhos compreendi rapidamente que a multidão dos radiantes anjos não mais lançavam flores ao ar.

        Voltei o olhar tímido para Beatriz; ela tinha voltado a fitar o grifo que em uma única pessoa encerrava duas naturezas. Assim, distante do rio sob o véu e a coroa, sua formosura ultrapassava em muito a que havia possuído em vida, ela que em vida tinha sido entre todas a mais formosa. E a dor e o remorso me fizeram ver que, as coisas que eu mais amei no mundo odiei-as como se  fossem minhas inimigas. E tal dor e o remorso torturaram-me tanto, que tombei vencido; como me senti, somente sabe quem já sentiu dor igual.

        Quando as forças me foram recuperadas notei ao meu lado aquela dama que primeiro vi colhendo flores no bosque (Matilda); disse-me: “Apoia-te em mim”. Então me levou até ao leito do rio fazendo-me mergulhar até ao pescoço; e correndo sobre a água arrastou-me junto. Já próximo à sagrada margem ouvi cantar o Asperges me, tão suavemente que não consigo descrevê-lo mesmo que eu quisesse. (Bíblia: “Salmo 50,9 Tu me borrifarás com o hissopo e serei purificado...” O Asperges é cantado no início da missa quando o padre asperge os fiéis com água benta). De repente Matilda abriu os braços e segurando-me pela fronte rapidamente me afundou. Era necessário que eu bebesse daquela água. Assim purificado ela me conduziu até as quatro damas que ainda bailavam e cada uma delas abraçando-me cantavam “Aqui, cada uma de nós ninfa é, mas nos céus somos estrelas; (As quatro ninfas são as quatro estrelas que Dante viu quando chegou à ilha do purgatório. Representam as quatro virtudes cardeais – prudência, justiça, fortaleza e temperança. Elas levarão Dante a ver o que se passa nos olhos de Beatriz) até mesmo antes que Beatriz descesse ao mundo, suprema ordem nos elegeu suas servas; poderás fitar seus olhos porém deverás ter teu olhar preparado para suportar sua intensa luz. E Isso deverá ser feito pelas três damas cuja virtude é mais elevada do que a nossa” (...pelas três damas = três ninfas que representam as 3 virtudes teologais - fé, esperança e amor ou caridade).

E na harmonia da angelical canção consigo me levaram diante do Grifo. Lá estava Beatriz voltada para nós. Disseram-me as ninfas: “Sacia-te em contemplar as esmeraldas (os verdes olhos de Beatriz) de onde partiram as agressões que por amor tanto te magoaram”.

Mil desejos mais ardentes do que a chama prenderam os meus aos seus formosos olhos que permaneciam na adoração ao grifo; e em tal momento eu via refletidos nesses lindos astros como em espelho, o Grifo se alternando em duas naturezas. (A dupla natureza do grifo é refletida nos olhos de Beatriz “ora como leão, ora como águia, separadamente”. Supondo que o grifo seja o reflexo da natureza de Cristo, Dante ainda não é capaz de perceber a natureza divina [águia] e humana [leão] como uma coisa única. Para isto, precisará da ajuda das outras três ninfas). Qual não foi meu espanto, Leitor, vendo na imagem aquele ser transmutado e no aspecto permanecendo o mesmo? E enquanto meu espírito entre prazer e pavor deliciava-me naquele divino manjar que ao mesmo tempo em que sacia é sempre mais desejado, as três damas demonstrando pelos seus gestos pertencerem a mais alta categoria celestial, dirigiam-se à Beatriz cantando de maneira angelical:

“Ó Beatriz, volta teus santos olhos ao leal servo que para te ver difíceis passos caminhou. Nós receberemos como graça especial, que o fiel amante contemple neste divinal semblante, sem véus, tua segunda formosura”.

        Ó resplendor da luz eterna e pura! Quem poderia, bebendo apenas na fonte da poesia encontrar tamanha doçura em sua alma  ao tentar descrever tal como te contemplei ó Beatriz, quando o céu te cercando de harmonia tua face revelaste?

 

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