O PURGATÓRIO – CANTO XXI
“DEUS VOS CONCEDA A PAZ, IRMÃOS!”
Enquanto os dois Poetas continuava no seu caminho uma alma se aproxima deles. É o poeta latino Estácio, o qual explica que o abalo do monte que se deu pouco antes foi o sinal de que, purificado dos seus pecados ele pode subir ao Céu. Sabendo que está falando com Virgílio, Estácio demonstra-lhe o seu afeto. Texto do Tradutor.
Ainda no 9º
local - 5º terraço da avareza
Atormentado pela sede que é saciada apenas por aquela água que a mulher de Samaria implorou ao Senhor (‘aquela água’ a verdade: a água simbólica que a Samaritana pediu a Jesus. [Bíblia: João 4, 6-15] Foi, pois,-Jesus- a uma cidade de Samaria, chamada Sicar, junto da herdade que Jacó dera a seu filho José. E estava ali a fonte de Jacó; Jesus, pois, cansado do caminho, assentou-se assim junto da fonte. Era isto quase à hora sexta. Veio uma mulher de Samaria tirar água; disse-lhe Jesus: Dá-me de beber. Porque os seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida. Disse-lhe, pois, a mulher samaritana: Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana? (porque os judeus não se comunicam com os samaritanos) Jesus respondeu, e disse-lhe: Se tu conhecesses o dom de Deus, e quem é o que te diz: Dá-me de beber; tu lhe pedirias, e ele te daria água viva. Disse-lhe a mulher: Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva? És tu maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço, e ele mesmo dele bebeu, e os seus filhos, e o seu gado? Jesus respondeu, e disse-lhe: Qualquer que beber desta água tornará a ter sede; mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna. Disse-lhe a mulher: Senhor, dá-me dessa água, para que não mais tenha sede, e não venha aqui tirá-la).
Como escreve Lucas na Sagrada Escritura que, após a ressurreição Jesus apareceu aos dois caminhantes amigos, assim uma sombra surgiu. (Bíblia: Lc.24,13 - Eis que, no mesmo dia, caminhavam dois deles para uma aldeia chamada Emaús, que estava à distância de Jerusalém sessenta estádios. Iam falando um com o outro sobre tudo o que se tinha passado. Sucedeu que, quando eles iam conversando e discorrendo entre si, apareceu Jesus e caminhava com eles...)
Estando a caminhar contemplando aquela multidão, nem o Mestre nem eu a tínhamos percebido. “Deus vos conceda a paz, irmãos!” – assim falou. Rápido nos voltamos àquela voz e Virgílio com gesto cortês respondeu a saudação dizendo: “Na paz te receba a feliz assembleia do Santo Reino que a mim desterrou no eterno exílio”.
Então ela perguntou: “Como podeis andar como passos animados se sois espíritos que Deus não permite vossa entrada? Quem vos conduz deste modo às alturas?”. Respondeu Virgílio: “Os sinais que estão marcados na fronte deste homem feitos por um anjo mostram ser ele digno de entrar na eternal morada; mas, como aquela que incessantemente tece (Laquécia) não terminou ainda o fio da trama que Cloto impõe à quem a existência inicia. (mitologia: aquela que tece: Laquécia (a vida) não teceu ainda todo o fio (o decorrer da existência desde o nascimento) que Cloto: (a morte) impõe), Essa alma que é tua irmã e também minha, sozinha não poderia ter subido até aqui pois não teria conseguido enxergar as coisas eternas como nós somente espírito, as enxergamos. Fui tirado do lugar que faz limite com o Inferno, (do Limbo) para guiá-lo e feliz o farei até onde é permitido à compreensão humana. Agora gostaria de saber, se puderes me explicar, por que há alguns instantes essa sublime montanha tremeu desde o pico até a base e imediatamente retumbou da multidão esse clamor de glória?”
A pergunta ajustava-se tão bem ao meu desejo, que apenas ao ouvi-la me aliviou a ardente sede que somente a esperança consegue. Então a sombra respondeu:
“Quanto ao tremor, nada acontece com relação a essa montanha; o contrário é que causaria estranheza, pois aqui mudanças seriam impossíveis. Assim lhe ordena o Céu assim deve ser cumprido. Nunca chuva, orvalho ou neve cai nesta montanha que passe da altura dos três degraus que estão na escada. (Onde está a porta do Purgatório). Aqui não se vê nuvem clara ou escura, nem a luz do relâmpago, nem se apresenta o passageiro colorido da filha de Taumante. (Filha de Taumante: Isis, mensageira de Juno; foi transformada em arco-íris.) Jamais além daqueles três degraus onde domina o sucessor de Pedro, (o Anjo) em instante algum se eleva nem mesmo neblina.
“A montanha treme apenas em suas bases talvez por força de ventos ocultos sob a terra; não sei como lá se mantêm porém não atinge seu cume. Somente quando uma alma se sentindo purificada movimenta-se em direção aos Céus é que ela treme por inteiro devido ao festivo e forte clamor. Este desejo de vibrar sempre existiu. Mas, pelo rigor da Justiça Divina os movimentos são impedidos assim como à inclinação ao pecado corresponde a pena. Eu, que em sofrimento esperei quinhentos anos e momentos atrás fui libertado sinto-me agora livre indo em direção à morada Celestial. Foi isto que motivou o tremor e os brados de glória! É porque cada alma aguarda ser chamada ao Senhor cantando Seus louvores! E agora sou uma delas”
E como aquele a quem, quanto maior é a sede tanto mais satisfação sente ao beber, assim indizível prazer senti escutando-o. Respondeu Virgílio: “Agora vejo a rede que vos prende e depois o liberta e de onde procede o tremor e o júbilo. Mas, se a verdade não te constrange dize-nos quem foste e a causa que te fez passar tantos séculos em sofrimento”.
Respondeu a sombra: “No tempo em que o bom Tito protegido pelo Supremo Deus vingou as chagas que verteram o sangue Daquele que foi vendido por Judas, eu ainda estava vivo”. (o Imperador Tito destruindo Jerusalém, vingou a morte de Jesus Cristo - Os romanos sob o comando do Tito entraram na cidade capturaram a Fortaleza Antônia e iniciaram um assalto frontal ao Templo que foi totalmente destruído e a cidade saqueada, após o qual os soldados proclamaram Tito Imperador ainda no campo de batalha mas ele recusou aceitar uma Coroa de erva (condecoração militar romana) alegando que "não há mérito em vencer umas gentes abandonadas pelo seu próprio Deus".. E continuou –
“Deram-me o nobre título que me fez famoso, porém não me vieram as luzes da fé. O som dos versos foi tão agradável que de Tolosa fui chamado a Roma. Glorioso recebi coroas de mirto. O nome de Estácio ainda domina o tempo! (O poeta latino Públio Papínio Estácio, autor de “Tebaida”). Cantei Tebas e cantava Aquiles, quando este esforço me exauriu o físico. No vivo ardor que me invadiu a mente, a causa estava na flama divina que em milhares de ideias fluíram. Na Eneida me alimentava; inspirado, bebi até a última gota e o quanto pude me servi de tudo o que da Eneida derivava. E para existir no mundo no tempo em que Virgílio viveu, te afirmo que passaria um ano a mais daqueles que tive de cumprir os quais estou deixando o penoso exílio”.
Ouvindo estas palavras, Virgílio me olhou. E sem nada pronunciar, disse-me: “Cala-te!” Mas nem sempre se pode dominar a vontade quando o sentimento no pranto ou no riso se manifesta, tanto que nos sinceros a arte de disfarçar se torna mais difícil; assim não pude esconder um leve sorriso. Tendo percebido minha sutil manifestação, calou-se o espírito e fitando-me profundamente nos olhos, local onde mais se compreende os sentimentos, disse: “Sejas feliz na sua excelsa intenção! Porém, queira me explicar por que em teu rosto vi, por um instante, disfarçado sorriso!”.
Eu estava entre dois sentimentos: um me exigia o “silêncio” e o outro me estimulava a falar. Então, sem saber como deveria agir, suspirei! Meu Mestre percebendo minha difícil situação disse: “Fala! Que fique bem clara a verdade que ele deseja saber”.
Então falei: “Se meu riso causou estranheza ao ilustre espírito provavelmente maravilhado ficarás ao ouvir o que tenho a revelar. Este que me guia ao Paraíso é Virgílio; dele recebeste a inspiração necessária para cantar os feitos de deuses e heróis. Se outra causa atribuíste ao meu riso, te enganaste! O verdadeiro motivo está nas palavras que disseste a seu respeito”.
Ia então Estácio se colocando aos pés do amado Mestre para abraçar-lhe as pernas, quando este falou: “Irmão, que fazes? Lembra-te que és sombra e estás ao lado de outra sombra”. Erguendo-se disse Estácio: “Tanto me extasia a admiração que sinto por ti, que a vaidade humana me fez esquecer que somos sombras; e pretendia tratar sombras como se fossem corpos”.
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