O PURGATÓRIO – CANTO XXXIII
Ainda no 12º e último local - Paraíso Terrestre
“Deus, venerunt gentes” (Salmo no qual Davi lamenta a contaminação do Templo de Jerusalém: (Salmo 78;1,6 – “¹Ó Deus, vieram as nações à tua herança, / contaminaram o teu santo templo, / e fizeram de Jerusalém uma como cabana de guarda de frutas. “6Derrama a tua ira sobre as nações que te não conhecem, / e sobre os reinos que não invocam o teu nome”) com os olhos lacrimejando cantavam as ninfas em suave melodia alternando-se em dois coros. Beatriz ouvia; mais dolorida do que ela estava somente Maria, ao pé da Cruz. Quando foi possível elevar a harmoniosa voz, de pé entre as formosas virgens com faces incendiadas por tão santo ardor disse-lhe: “Modicum, et non videbilis me”, (João;16,16.“Um pouco e já não me vereis”), amadas irmãs, et interum,” – continuou – “modicum et vos videbilis me!” (“e outra vez um pouco e ver-me-eis” (Provavelmente referindo-se ao pouco tempo que a Santa Sé teria ficado em Avinhão]). Depois, fazendo com que as sete ninfas se colocassem à sua frente acenou a mim, a Matilde e ao Poeta para que a acompanhássemos.
Assim íamos. Acredito que não havíamos dado dez passos quando seu olhar se encontrou com o meu; então, com tranquilidade me disse: “Chegue mais perto pois quero falar contigo se estiveres disposto e me escutar”. Assim que me coloquei ao seu lado, ela continuou: “Irmão, por que não fazes a pergunta que tantas desejas, já que estás ao meu lado?”
Fiquei como aquele que falando ao seu superior e tímido se sentindo apenas balbucia disse com voz confusa e entrecortada: "Conheceis bem, senhora, tudo quanto desejo saber e o que me seja necessário conhecer”.
Ela continuou: “De agora em diante deixa o temor e a vergonha; estando ao meu lado, pára de falar como quem está sonhando. O carro que foi profanado pelo dragão já não está mais ferido. O castigo que Deus imporá aos criminosos não será esquecida através da sopa. (Segundo uma lenda, o culpado que em sinal de expiação tomasse sopa sobre o túmulo do assassinado durante nove dias, não sofreria condenação.) Não faltarão ambiciosos herdeiros da águia que cobriu com suas penas o carro tornando-o monstro depois presa fácil. Olhando o futuro vejo o que os mais próximos astros anunciam, sem que nada impeça ou modifique o que está por vir. Profetizam eles que o Céu enviará um “quinhentos, dez, cinco” para punir a corrompida e o gigante. (DXV, isto é: um chefe, um capitão enviado por Deus, que punirá a Cúria Romana e o rei de França). O que estou expondo é enigmático é obscuro e talvez não o entendas, como aconteceu com Têmis (Mitologia: Têmis que decifrou de forma obscura o enigma que Deucalião lhe apresentou) e a Esfinge (Esfinge é um monstro. Tem cabeça de mulher, asas de ave, corpo de cão e patas de leão. Por muito tempo ela aterrorizou os habitantes de Tebas matando aqueles que não acertavam o enigma o qual finalmente foi solucionado por Édipo que por esse feito ganhou o reino de Tebas se casando com a rainha Jocasta); contudo, os fatos o farão compreender assim como aconteceu com Édipo que recebeu a chave do enigma sem causar dano ao trigo e ao gado. Que isto fique gravado em tua memória; faze chegar estas mesmas palavras aos vivos que na ansiedade em buscar os prazeres terrenos, intranquilos chegam ao fim da vida. Narre lhes a aflição que sentistes ao veres o estado em que ficou a árvore quando sofreu dois espantosos ataques. (A árvore foi duas vezes assaltada. Primeiro pela águia que rasgou suas folhas e casca, depois pelo gigante que roubou o carro. A árvore aqui representa o cristianismo). E avisa que todo aquele que mutila ou mata a sagrada planta ofende a Deus com blasfêmias pois Ele a criou perfeita somente para Sua glória. A primeira alma por ter experimentado o fruto da desobediência, esperou gemendo durante cinco mil anos por Aquele que tomou sobre si as culpas do seu pecado” (Adão por ter experimentado o fruto da árvore esperou durante cinco mil anos a vinda de Jesus Cristo, que tomou sobre si o seu pecado).
“Se não consegues compreender a única razão por que tem a árvore tão alta e tão larga copa é porque tens o espírito a dormir. Se a satisfação produzida pelos pensamentos inúteis não tivesse escurecido tua mente impedindo-a de ver além do aspecto externo, o que te expliquei teria sido suficiente para compreenderes o justo ensinamento que Deus deixou na velha árvore. Como a luz de minhas palavras te confunde porque o entendimento não permite ver o efeito que isso causa sobre a culpa, quero que guardes na memória uma comparação: as palmas que enfeitam o bordão do peregrino lembram que ele deve regressar”.
Respondi-lhe: “Vossas palavras ficarão gravadas minha memória qual cera conservando a marca impressa pelo carimbo. Mas, por que vossas palavras se elevam com tamanho excesso que não consigo alcançá-las?”. E ela continuou: “Veja portanto, em que pervertida escola tens cursado, pois seus ensinamentos não desenvolverem em ti a capacidade de alcançar o sentido das minhas palavras; teu caminho está mais distante do divino do que a distância existente entre a terra e o céu”.
Respondi à minha sublime amada: “Não me lembro de ter exposto qualquer opinião contrária a vós; a vigilante consciência disto não me acusa”. “Possível é que estejas enganado” - respondeu-me a sorrir – “não te recordas que ainda há pouco bebeste a água do Letes e de acordo com o dito popular, a fumaça é sinal de fogo. Que tua vontade andou perdida no erro teu esquecimento demonstra isto seguramente. De agora em diante o sentido de minhas palavras serão mais claras para ti”.
Com passo mais lento e brilho mais intenso o Sol já atingia o círculo que divide os climas, tornando-os diferentes, (era meio-dia; o Sol atingia o círculo imaginário do equador) quando as damas, qual guia que indo à frente da tropa pára de andar e disfarçado espia caso se anuncie alguma novidade, assim pararam. Haviam chegado a um lugar de espessa sombra parecido com os frios bosques alpinos de árvores verdejantes e troncos escuros e pareceu-me ver não muito distante delas, brotando da mesma fonte o Tigre e o Eufrates e em seguida separando-se lentamente, como sendo dois amigos. (O Letes e o Eunoé; pareciam esses dois rios com o Tigre e o Eufrates, pois nasciam na mesma fonte e depois se afastavam aos poucos um do outro. Eunoé é o rio que restaura a memória apagada pelo Letes que apaga toda a lembrança do pecado. Dante pode lembrar agora dos seus pecados mas, apenas como coisas passadas e superadas. Não sentirá vergonha ou culpa, pois as suas faltas foram perdoadas).
“Ó glória! Ó esplendor da humanidade! Dizei-me que água é essa que corre dividida depois de sair de uma mesma nascente!”
Beatriz respondeu: “Deve essa pergunta ser respondida por Matilde”. Então me respondeu a dama: “Já estive lhe explicando tudo! A lembrança na memória se apagando esse efeito não deve ter vindo do Letes”.
E Beatriz continuou falando a Matilde: “Talvez a falta de interesse pelas coisas belas e maravilhosas pode ter perturbado sua mente fazendo com que a compreensão se torne difícil. Eis as águas do Eunoé; nele imergindo-o seu coração adormecido se reanimará”.
A alma nobre que à obediência jamais rejeita, faz do querer do outro o próprio querer mesmo através do simples sinal. Matilde me conduziu para junto de Estácio dizendo-lhe com altivez e majestade: “Segue-o também!”
Caro leitor, ao ser mergulhado naquelas águas o sabor do doce licor que experimentei nunca desapareceu do meu paladar; e eu o descreveria em texto especial se ainda tivesse espaço suficiente nesta página; mas como as páginas destinadas a este Canto já foram todas ocupadas, a arte da poesia impede de satisfazer esse desejo. Por isso canto assim:
Como da plantas as flores renovadas
Mais frescas na haste mostram-se mais belas,
Puro saí das águas consagradas
Pronto a me elevar às lúcidas estrelas!
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