O INFERNO - CANTO XXII
"TE PEGO MISERÁVEL!..."
Andando os dois Poetas pelo aterro, à esquerda vêm muitos trapaceiros que, por aliviar-se, boiam acima do piche fervendo. Sobrevêm os diabos e um deles é dilacerado. É deste Ciampolo, de Navarra, que consegue depois, livrar-se das garras dos diabos o que dá motivo a uma briga entre os demônios. Texto do Tradutor
Já vi cavaleiros marchando para a guerra, travando luta, engalfinhando-se em combate e até soldados fugindo a fim de protegerem a vida. Vi aretinos juntos entre esquadras em aguerrida luta. Vi vaquejadas e torneios. Ouvi clamor de trombetas, badaladas de sinos dando sinais de alerta nos castelos, tambores de guerra, disparo de novas e antigas armas usadas entre nós!... Porém jamais ouvi som semelhante aos que foi emitido por aqueles dez demônios ao soltarem terríveis gases. Que bela tropa militar!
Voltemos, pois, ao assunto. Enquanto seguíamos os dez demônios, minha atenção estava voltada para o piche fervente procurando conhecer quais os castigos e quem ali estava a gemer e a derramar seu pranto.
Assim como o navegador ao avistar o golfinho com dorso recurvado reconhece ser presságio de mau tempo e, para isto se prepara buscando abrigo, assim, alguns dos condenados buscando alívio os dorsos mostravam; mas, qual relâmpago, logo desapareciam. Também, como à beira de pântanos a rã deixa de fora a cabeça mantendo os pés e o corpo protegidos sob a lama, assim no piche fervente, aquela gente pecadora aparecia; mas aquela condenada gente vendo que Barbariccia próximo estava, rápido nas bolhas ferventes se escondia.
Porém, o que presenciei naquela horrenda vala, só ao lembrar me dá calafrios. Vi um desditoso condenado atrasando-se no mergulho ficar sobre a resina fervente enquanto as outras desapareciam. Perto, ali estava Graffiacane irado. Ao ver o condenado assim desprotegido, com seu terrível tridente rápido o agarrou pela viscosa cabeleira e como quem retira da água a lontra fisgada, o ergueu no ar. Lembro-me do nome de cada um dos dez demônios; pois prestei bem atenção quando foram chamados pelo chefe; também podia reconhecê-los rapidamente; então fiquei atento ao que fariam. Assim gritavam os agitados demônios: “Rápido, Rubicante! Crava-lhe os ferrões pelo costado! Esfola-o! Rasga- lhe a pele!!”
“Mestre” disse eu: “se puderes, pergunta ao miserável que caiu nas garras dos malditos demônios, quem ele é”. Aproximando-se da vala, o Mestre perguntou-lhe qual a sua terra natal. “Em Navarra eu nasci” respondeu. (Ciampolo de Navarra, que serviu na corte do rei Teobaldo II; abusou da confiança real trapaceando e faltando aos deveres). “Minha mãe me pôs a serviço de um fidalgo , após meu pai ter destruído nossa fazenda e a própria vida, com sua mão feroz. Na vida familiar de El-rei Teobaldo, entrei mas, abusando se sua confiança trapaceava vendendo seus favores. Agora sofro aqui, pelo mal que pratiquei“. De repente Ciriatto, que possuía presas iguais às do javali cravou-lhe cruelmente os enormes dentes. Na mão de seu maior inimigo, caiu o rato; o demônio Barbariccia segurando-o entre os braços, gritou: “Alto lá! A mim cabe dar-lhe o merecido tratamento” Então o condenado voltando-se para meu mestre, disse: “Antes que o bando me tenha dilacerado, pergunta-me o que quiseres, se ainda desejas”. Virgílio então perguntou: “Dos pecadores que te fazem companhia, há algum que seja latino?” Respondeu o condenado: “Deixei lá no piche um que dizia ter sido vizinho da Itália. Ah! Se eu tivesse ficado em sua companhia, não estaria agora sendo atacado por unhas e arpões”. Então, Libicocco que estava perto gritou-lhe: “Ah! Seu folgado!... Isso é demais!” E aquele algoz com um só golpe dilacerou um dos braços do desgraçado. Draghignazzo também queria as pernas do condenado; mas o iroso chefe do demoníaco bando os encarou, moderando-os.
Tendo diminuído a gritaria, o Mestre perguntou ao infeliz que, aflito olhava o efeito doloroso causado pelo golpe: “Quem foi essa alma que lá no piche deixaste antes de vir a toma?” Respondeu o pecador: “Foi Frei Gomita de Galura; por conhecer todas as fraudes protegia os inimigos de seu amo. Em troca do ouro livrava-os de dívidas e culpas. Em várias ocasiões provou que, se tratando de ardil foi ele soberano (Gomita - um frade da Sardenha, chanceler de Nino Visconti, governador de Pisa. Se aproveitando de seu status social e da confiança que Nino lhe depositava, se envolveu com a venda de cargos públicos. Quando Nino descobriu que o frade havia aceitado propina em troca da libertação de prisioneiros mandou enforcá-lo. [Musa 95]. Com ele está Miguel Zanche, o que foi juiz de Logradouro, e que não cansava de ostentar seu tesouro conseguido através da prática de crimes cometidos em Sardenha” (Dom Michel Zanche: Acredita-se que tenha sido governador de um dos distritos da Sardenha. Após a morte do rei da Sardenha, Dom Michel utilizou recursos fraudulentos para conquistar a viúva do rei). De repente gritou o condenado: “Ai!... Vede como range os dentes esse outro demônio! Mais coisas eu diria se não fosse o medo de sentir na pele a fúria dos seus afiados arpões”. Foi quando Barbariccia se aproximando de Farfarello que já se preparava para feri-lo gritou: “Sai daí, pássaro nojento!”
E o triste condenado então continuou: “Se queres ver e ouvir lombardos e toscanos tenho como satisfazer-vos. De onde estou, com apenas um assobio segundo nosso costume quando queremos avisar uns aos outros que podem vir à tona, faria aparecer não um, mas, muitos dos que estão escondidos. Mas é preciso que os Malebranche estejam afastados pois eles o temem”. Tendo Cagnazzo escutado essas palavras sacudindo a cabeça levantou o focinho tentando rir e gritou: “Cuidado! Então é essa a astúcia usada para se livrarem do piche fervente?!...”. Ao que o condenado respondeu: “Na verdade astúcia é encontrar um modo de causar maior sofrimento aos meus companheiros!” Ao ouvir isso, mesmo no alto da vala Alichino respondeu: Se mergulhando tentares escapar fiques sabendo que irei te prosseguir não correndo mas voando sobre o pez fervente. Protege-te como puderes junto à margem. Então veremos se sozinho és capaz de nos vencer”.
Agora, caro leitor, surpreso ficarás com o que ocorreu! Já iam os demônios se preparando para a planejada cilada, quando todos, ao mesmo tempo voltando enfurecidos a olhar para um dos lados viram o navarrês firme sobre a margem que calculando bem o tempo ao piche fervente se lançou ganhando assim a liberdade. De tal afronta todos os demônios sentiram o azedume, principalmente o causador da vergonhosa fuga, que aos berros dizia: “Te pego miserável!” Porém o pecador mudando de direção e rápido como um raio, no profundo e fervente pez mergulhou, desaparecendo.
Calcabrina furioso com mais essa derrota voou para alcançar o condenado, porém vendo já estar ele no fundo da vala, retornou e voltou as garras contra o maligno companheiro procurando briga; 0s dois se atracaram; furiosa luta foi formada sobre o lago fervente. Então o feroz demônio rápido, no outro as unhas lhe cravaram. E espantosamente entrelaçados ambos no piche ferventem caíram de corpo inteiro. Sentindo a grande fervura os dois se separaram e tentaram subir mas foi inútil, pois as asas ficaram presas ao viscoso betume. Os outros vendo aquilo, se condoeram. Então diligente, Barbariccia enviou quatro companheiros que, de lanças em punho, foram rápido socorrê-los. De um lado e do outro chegaram rapidamente, estendendo os arpões aos companheiros enviscados mas, em vão tentavam salvá-los, porque naquela crosta ardente, cozidos já estavam. E, desta forma os deixamos lá na vala, junto aos condenados.
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