O INFERNO - CANTO XXVII
"A CHAMA QUE SE ERGUERA, QUIETA ESTAVA".
Outro danado entra a falar com Dante. É Guido de Montefeltro, o qual pode notícias de Romanha sua terra natal. Conta depois, que foi condenado por causa de um mau conselho que fiado na prévia absolvição, dera ao Papa Bonifácio VIII. Texto do Tradutor.
A labareda permaneceu imóvel. Com a permissão do Poeta, em silêncio já se retirava quando outra que vinha logo atrás chamou nossa atenção pelos confusos sons que saiam pela ponta da chama nos fazendo compreender que desejava falar.
Igual ao touro siciliano cujo primeiro mugido foi produzido pelo sofrimento de seu inventor que recebeu como prêmio o horrendo sofrimento, (Mitologia: Perilo, para agradar Falarides, - tirano de Agrigento - construiu um touro de bronze, dentro do qual seriam colocados os inimigos do governador; sendo o bronze aquecido, os gritos de dor dos condenados, seriam iguais aos berros do animal. Falarides quis experimentar o invento, usando para isso, o próprio inventor: Perilo) a voz do miserando ecoou em dor tão pungente como se estivesse sofrendo em vida. Assim o estalar das chamas em som lastimoso se transformava mas não nos alcançava em forma de palavras; então, com muito esforço conseguiu manter-se em equilíbrio; e em movimento, a língua do condenado apareceu falando:
“Ó tu, a quem me dirijo, e há poucos instantes dizias em idioma lombardo, ‘Podes ir, porque já me respondeste’ apesar de ter eu chegado atrasado, não te sintas incomodado em falar comigo, pois como podes ver não incomoda a mim mesmo ardendo em chamas. Se é certo que aqui caíste vindo daquela doce e saudosa terra latina onde, em tempos passados, tantos pecados cometi dizei-me se os Romenos estão em paz ou em guerra, pois fui de lá dos montes entre Urbino e a altiva montanha que origem deu ao Tibre”. (Guido de Montefeltro é a chama que fala neste Canto. Foi um capitão guibelino famoso por sua sabedoria e estratégias militares. Obteve sucesso em várias batalhas contra os guelfos. Chegou a ser excomungado mas, alguns anos depois, se reconciliou com a igreja e entrou para a ordem dos franciscanos. Seu filho, Buonconte, morreu lutando pelos guibelinos na batalha de Campaldino, na qual Dante lutava do outro lado, pelos guelfos.)
Atento eu o escutava quando meu guia me tocando no ombro disse: “Agora podes falar, por que este é italiano”. Eu que já tinha a resposta pronta voltei-me ao pecador dizendo: “Ó alma, que o fogo assim te reveste e martiriza, tua Romanha, no modo de pensar dos tiranos que a oprimem está sempre preparada para a guerra. Porém, em nenhuma está ela envolvida agora. Ravena continua como sempre sob as garras da águia de Polenta e, também a Cérvia está sob suas largas asas. (A família de Polenta, que tinha como emblema, uma águia, dominou por muito tempo, Ravena e Cérvia.) A terra que tardiamente havia procurado se defender, (Forli) sofre ainda sob o jugo do Leão Verde que a inundou de sangue. (Leão Verde – Sinibaldo Ordelaffi, que tiranizou a cidade de Forli.) Dos mastins de Verruchio, a subjugada gente sente ainda os cruéis dentes, até que a Montagna deram desapiedada morte. (Os mastins de Verruchio: são os tiranos Malatesta e seu filho Malatestino de Rimini. Mataram Montagna dei Parciati, um guibelino também de Rimini). As cidades que são banhadas pelo rio Lemone e pelo rio Saterno, (as cidades de Faenza e Ímola), estão sendo governadas pelo ‘Leão de Alvo Leito’, que a cada inverno muda de partido. Outra cidade, a que é banhada de pelo rio Sávio e está situada montanhas e planície, (Casena) ora vive em liberdade, ora sob o jugo vai sofrendo. Agora sê condescendente conosco como temos sido contigo, dizendo-nos quem foste e se no mundo teu nome é muito conhecido”.
Comovido, agitando-se de um lado para o outro a aguda ponta de fogo murmurou: depois soltando a voz assim falou: “Se eu tivesse que dar essa resposta a quem estando aqui à luz do mundo voltasse, quieta ficaria minha aflita língua. Mas, como certo é quem ao inferno cai dele jamais retorna, não há medo que me impeça de falar. Primeiro fui guerreiro e depois franciscano acreditando que encontraria auxílio para corrigir meus erros; e assim teria sido não fosse o Papa - a quem tudo de ruim desejo que aconteça! - ter-me induzido a praticar o mal. Enquanto eu estava vivo sobre a terra, não me tornei um leão por meus feitos, mas abalizada raposa por minhas astúcias. Estratégias sutis, ardis perfeitos tanto armei, que meu nome se tornou conhecido por toda parte.”
Parando de falar por alguns segundos continuou: “Durante a existência, muito erra quem estando com seu navio em perigo e encontrando um porto de salvação não recolhe os cabos, nem baixa as velas. Por isso, deixando as coisas que mais amava, me humilhei confesso e arrependido.
“Mas, ai, de mim!... Certamente o perdão teria alcançado... Mas o Príncipe infiel, o chefe dos novos fariseus, (O Papa Bonifácio VIII.) lá de Latrão declarou cruenta guerra não contra mouros ou judeus descrentes, mas contra os cristãos. (Os Colonenses moravam perto da Igreja de São João, em Latrão.) Nenhum deles havia cometido crimes como invadir o Acre (que os sarracenos tomaram dos cristãos) ou praticar negócios fraudulentos com o Sultão. Nesse momento, não considerou em si as Sagradas Ordens nem o excelso cargo que ocupava, muito menos viu em mim o humilde cordão franciscano que símbolo é de penitência. Como fez Constantino que foi a solidão de Soracte pedir a Silvestre para o curasse da lepra, (conta uma lenda que, Constantino foi curado da lepra por São Silvestre, que morava numa gruta do monte Soracte) assim fez ele; (Bonifácio VIII) procurou em meus conselhos remédio para a cura do seu febril orgulho. Hesitante, calei-me percebendo em suas palavras verdadeira loucura! ‘Fala!’– insistiu – ‘Não tenhas receio; desde já estarás perdoado de todos os teus pecados se me ensinares como vencer, ardilosamente, a Palestina’. (Para onde os Colonenses se haviam retirado). Continuando eu em silêncio, ele insistiu: ‘Eu abro e fecho as portas do Céu; as Duas Chaves me dão esse puder divino que foi rejeitado por meu antecessor’. (Clemente V). Abalado diante de tão grave situação, respondi: ‘Santo Padre, se do pecado que agora vou cometer estás antecipadamente me perdoando, terás na tua Cadeira Pontifícia honras e glória prometendo muito e cumprindo pouco’.
“Depois que morri, São Francisco veio buscar minha alma; mas, prontamente surgiu um demônio gritando: - ‘Não o leves, porque assim me parece injusto! O lugar dele já está preparado entre os meus. Desde o momento que seu conselho foi pronunciado, o tenho prendido pelos cabelos. Perdão só recebe quem arrependido chora; não se pode sentir o arrependimento e ao mesmo tempo se praticar o mal; os dois não podem andar juntos’. - Ah! Qual não foi meu pavor quando com empolgado sadismo disse – ‘acreditas por acaso, que me falte a arte da lógica e inteligência da astúcia?- Então a Minos me levou, que sem demora agarrando a enorme cauda deu nela oito voltas; e mordendo-a, raivoso deu a sentença: - ‘Para um caso como este, o castigo é permanecer entre as chamas’. - E desde esse instante, fui condenado a viver eternamente envolto em tais vestes, onde me vês lamentando o meu pecado”.
Tendo assim concluído sua narração, aquela chama, agitando-se de um lado para o outro, se foi gemendo.
Quanto a mim e a meu guia dali partimos. Subimos pela escarpa em ruínas até ao arco que leva ao nono fosso onde estão em eterno sofrimento os que em vida semearam a discórdia.