O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

domingo, 25 de abril de 2010

O INF - CANTO XXVII

O INFERNO - CANTO XXVII

"A CHAMA QUE SE ERGUERA, QUIETA ESTAVA".

         Outro danado entra a falar com Dante. É Guido de Montefeltro, o qual pode notícias de Romanha sua terra natal. Conta depois, que foi condenado por causa de um mau conselho que fiado na prévia absolvição, dera ao Papa Bonifácio VIII. Texto do Tradutor.

         A labareda permaneceu imóvel. Com a permissão do Poeta, em silêncio já se retirava quando outra que vinha logo atrás chamou nossa atenção pelos confusos sons que saiam pela ponta da chama nos fazendo compreender que desejava falar.

         Igual ao touro siciliano cujo primeiro mugido foi produzido pelo sofrimento de seu inventor que recebeu como prêmio o horrendo sofrimento, (Mitologia: Perilo, para agradar Falarides, - tirano de Agrigento - construiu um touro de bronze, dentro do qual seriam colocados os inimigos do governador; sendo o bronze aquecido, os gritos de dor dos condenados, seriam iguais aos berros do animal. Falarides quis experimentar o invento, usando para isso, o próprio inventor: Perilo)  a voz do miserando ecoou em dor tão pungente como se estivesse sofrendo em vida. Assim o estalar das chamas em som lastimoso se transformava mas não nos alcançava em forma de palavras; então, com muito esforço conseguiu manter-se em equilíbrio; e em movimento, a língua do condenado apareceu falando: 

        “Ó tu, a quem me dirijo, e há poucos instantes dizias em idioma lombardo, ‘Podes ir, porque já me respondeste’ apesar de ter eu chegado atrasado, não te sintas incomodado em falar comigo, pois como podes ver não incomoda a mim mesmo ardendo em chamas. Se é certo que aqui caíste vindo daquela doce e saudosa terra latina onde, em tempos passados, tantos pecados cometi dizei-me se os Romenos estão em paz ou em guerra, pois fui de lá dos montes entre Urbino e a altiva montanha que origem deu ao Tibre”. (Guido de Montefeltro é a chama que fala neste Canto. Foi um capitão guibelino famoso por sua sabedoria e estratégias militares. Obteve sucesso em várias batalhas contra os guelfos. Chegou a ser excomungado mas, alguns anos depois, se reconciliou com a igreja e entrou para a ordem dos franciscanos. Seu filho, Buonconte, morreu lutando pelos guibelinos na batalha de Campaldino, na qual Dante lutava do outro lado, pelos guelfos.)

Atento eu o escutava quando meu guia me tocando no ombro disse: “Agora podes falar, por que este é italiano”. Eu que já tinha a resposta pronta voltei-me ao pecador dizendo: “Ó alma, que o fogo assim te reveste e  martiriza, tua Romanha, no modo de pensar dos tiranos que a oprimem está sempre preparada para a guerra. Porém, em nenhuma está ela envolvida agora. Ravena continua como sempre sob as garras da águia de Polenta e, também a Cérvia está sob suas largas asas. (A família de Polenta, que tinha como emblema, uma águia, dominou por muito tempo, Ravena e Cérvia.) A terra que tardiamente havia procurado se defender, (Forli) sofre ainda sob o jugo do Leão Verde que a inundou de sangue. (Leão Verde – Sinibaldo Ordelaffi, que tiranizou a cidade de Forli.) Dos mastins de Verruchio, a subjugada gente sente ainda os cruéis dentes, até que a Montagna deram desapiedada morte. (Os mastins de Verruchio: são os tiranos Malatesta e seu filho Malatestino de Rimini. Mataram Montagna dei Parciati, um guibelino também de Rimini). As cidades que são banhadas pelo rio Lemone e pelo rio Saterno, (as cidades de Faenza e Ímola), estão sendo governadas pelo ‘Leão de Alvo Leito’, que a cada inverno muda de partido. Outra cidade, a que é banhada de pelo rio Sávio e está situada montanhas e planície, (Casena) ora vive em liberdade, ora sob o jugo vai sofrendo. Agora sê condescendente conosco como temos sido contigo, dizendo-nos quem foste e se no mundo teu nome é muito conhecido”.

Comovido, agitando-se de um lado para o outro a aguda ponta de fogo murmurou: depois soltando a voz assim falou: “Se eu tivesse que dar essa resposta a quem estando aqui à luz do mundo voltasse, quieta ficaria minha aflita língua. Mas, como certo é quem ao inferno cai dele jamais retorna, não há medo que me impeça de falar. Primeiro fui guerreiro e depois franciscano acreditando que encontraria auxílio para corrigir meus erros; e assim teria sido não fosse o Papa - a quem tudo de ruim desejo que aconteça! - ter-me induzido a praticar o mal. Enquanto eu estava vivo sobre a terra, não me tornei um leão por meus feitos, mas abalizada raposa por minhas astúcias. Estratégias sutis, ardis perfeitos tanto armei, que meu nome se tornou conhecido por toda parte.”

 Parando de falar por alguns segundos continuou: “Durante a existência, muito erra quem estando com seu navio em perigo e encontrando um porto de salvação não recolhe os cabos, nem baixa as velas. Por isso, deixando as coisas que mais amava, me humilhei confesso e arrependido.

“Mas, ai, de mim!... Certamente o perdão teria alcançado... Mas o Príncipe infiel, o chefe dos novos fariseus, (O Papa Bonifácio VIII.)  lá de Latrão declarou cruenta guerra não contra mouros ou judeus descrentes, mas contra os cristãos(Os Colonenses moravam perto da Igreja de São João, em Latrão.) Nenhum deles havia cometido crimes como invadir o Acre (que os sarracenos tomaram dos cristãos) ou praticar negócios fraudulentos com o Sultão. Nesse momento, não considerou em si as Sagradas Ordens nem o excelso cargo que ocupava, muito menos viu em mim o humilde cordão franciscano que símbolo é de penitência. Como fez Constantino que foi a solidão de Soracte pedir a Silvestre para o curasse da lepra, (conta uma lenda que, Constantino foi curado da lepra por São Silvestre, que morava numa gruta do monte Soracte) assim fez ele; (Bonifácio VIII) procurou em meus conselhos remédio para a cura do seu febril orgulho. Hesitante, calei-me percebendo em suas palavras verdadeira loucura! ‘Fala!’– insistiu – ‘Não tenhas receio; desde já estarás perdoado de todos os teus pecados se me ensinares como vencer, ardilosamente, a Palestina’. (Para onde os Colonenses se haviam retirado). Continuando eu em silêncio, ele insistiu: ‘Eu abro e fecho as portas do Céu; as Duas Chaves me dão esse puder divino que foi rejeitado por meu antecessor’. (Clemente V). Abalado diante de tão grave situação, respondi: ‘Santo Padre, se do pecado que agora vou cometer estás antecipadamente me perdoando, terás na tua Cadeira Pontifícia honras e glória prometendo muito e cumprindo pouco’.

 “Depois que morri, São Francisco veio buscar minha alma; mas, prontamente surgiu um demônio gritando: - ‘Não o leves, porque assim me parece injusto! O lugar dele já está preparado entre os meus. Desde o momento que seu conselho foi pronunciado,  o tenho prendido pelos cabelos. Perdão só recebe quem arrependido chora; não se pode sentir o arrependimento e ao mesmo tempo se praticar o mal; os dois não podem andar juntos’. - Ah! Qual não foi meu pavor quando com empolgado sadismo disse – ‘acreditas por acaso, que me falte a arte da lógica e inteligência da astúcia?- Então a Minos me levou, que sem demora agarrando a enorme cauda deu nela oito voltas; e mordendo-a, raivoso deu a sentença: - ‘Para um caso como este, o castigo é permanecer entre as chamas’. - E desde esse instante, fui condenado a viver eternamente envolto em tais vestes, onde me vês lamentando o meu pecado”.

Tendo assim concluído sua narração, aquela chama, agitando-se de um lado para o outro, se foi gemendo.

Quanto a mim e a meu guia dali partimos. Subimos pela escarpa em ruínas até ao arco que leva ao nono fosso onde estão em eterno sofrimento os que em vida semearam a discórdia.

 



O INF -CANTO XXVI

O INFERNO -CANTO XXVI

“ESTÃO JUNTOS NESSAS CHAMAS, DIÓGENES E ULISSES”

        Chegando os poetas ao oitavo compartimento, distinguem infinitas chamas, dentro das quais são punidos os maus conselheiros. Numa chama bipartida, estão Diógenes e Ulisses. Este último a pedido de Dante, narra a sua última navegação, na qual perdeu a vida com seus companheiros. Texto do Tradutor

         Alegra-te Florença! Vaidosa, tua fama percorre terra e mares e até no Inferno teu nome é lembrado! Pois em meio aos ladrões que estão na infernal cova, que vergonha!... Encontrei cinco dos teus principais filhos; será que te vanglorias por tal fama? Se for verdade que os sonhos que se formam na última hora do sono sofrem influência da realidade, em breve hás de sentir o que os habitantes de Prato (pequena cidade perto de Florença) e de outras cidades mais desejam a ti, para tua infelicidade. Se o mal tiver que acontecer, que aconteça logo porque quanto mais demorar, mais grave e doloroso será para mim.

        Deixamos então aquela horrenda cova; pelos mesmos inclinados degraus por onde havíamos descido subiu o Mestre e eu fui por ele guiado. Seguimos por um caminho deserto e de tão difícil acesso, que se tornava necessário fossem nossos pés auxiliados pelas mãos. Minha alma repleta de amargura ainda fica, sempre que à lembrança me vem de tudo aquilo que foi por mim presenciado; e, desde então, procuro guiar meu coração pelos caminhos da virtude, para que o bem que em mim ainda existe - por destino ou por Deus doado – não seja desviado e transformado em abominável mal.

        Durante a estação em que o Sol mostrando o seu radiante semblante ilumina a terra por mais tempo e ao cair da tarde, ao pé da montanha onde cultiva ou colhe a uva, não vê o camponês mais pirilampos do que eu, ao olhar curioso para o fundo do oitavo poço vi  subindo temerosas faíscas. Como aquele que tendo sido perseguido e vingado pelos ursos vendo Elias ser lançado ao céu em carro ardente puxado por cavalos de fogo não pode segui-lo com o olhar, mas apenas perceber uma tênue luz qual brilhante nuvem a elevar-se velozmente pela extensão do céu, assim, naquele abismo, chamas se agitando eu via elevar-se; e em cada uma delas ocultando-se em seus fulgores, preso estava a alma de um condenado.

De cima da ponte eu me inclinava para ver; se eu não estivesse amparado pela rocha, ao fundo daquela horrível cova teria caído. E o mestre ao perceber o meu encantamento por aquela visão disse: “Em cada chama está um condenado que queima e padece; está como se estivesse vestido em labaredas”. Respondi: “Disto, eu já suspeitava; no entanto, pretendia lhe perguntar o que significa aquela chama que se ergue, e depois se divide em duas, igual ao que ocorreu na fogueira erguida, para incinerar os corpos dos irmãos inimigos”. (Mitologia: Etéocles e Polínice, filhos de Édipo e Jocasta, que se duelaram até a morte tiveram seus corpos incinerados.) Então me explicou o Mestre: “Estão juntos nesta chama Ulisses e Diomedes; unidos estão no castigo como foram nas batalhas. E juntos gemem pela pérfida invenção do cavalo que serviu como porta de entrada aos inimigos de Roma, pela fraude que levou a morta Deidamia  a repreender Aquiles e pelo roubo da estátua sagrada.” (Mitologia: O Poeta lembra três façanhas audaciosas de Ulisses: o cavalo de madeira para enganar os troianos; a descoberta de Aquiles disfarçado em mulher entre os companheiros de Deidamia; e o roubo de uma estátua de Pelade, que tornava Tróia imbatível.)

        Disse eu: - “Mestre, se através da labaredas eles puderem falar, te suplico e rogo com insistência mil vezes repetida conceder-me o que desejo! Gostaria de ouvir o que a chama bipartida que em nossa direção vem está querendo dizer! Assim, poderá ela ter um pouco de descanso”.

        Respondeu-me: “Merece toda a minha atenção a tua súplica e de bom grado o atendo, mas terás que aguardar. Deixa-me falar; sei o que pretendes saber; pode acontecer que na alma esquiva desses gregos, tuas palavras não produzam bom efeito”.

        Tendo a chama em nossa direção vindo e parecendo ao Mestre ter chegado o momento propício, assim lhes falou: “Ó vós que vejo juntos nestas chamas, quando vivo eu estava sentia prazer em cantar vossos feitos através dos eloquentes versos que eu escrevia, escutai-me benevolentes por um instante, e respondei-me: como e quando vieram ao fim vossas vidas?”.

        A parte mais alta daquela chama como que agitada pelo sopro do vento começou murmurando e depois as pontas da labaredas revirando-se de um lado para o outro como se língua fosse, soltou a voz e nos disse: 

        “Quando consegui me livrar dos encantos de Circe, os quais me detiveram durante um ano junto a Gaeta, – antes que Eneias assim a chamasse - (Eneias, ao fundar Gaeta, deu à cidade o nome de sua mãe.) as saudades que sentia do meu filho, da minha amada esposa que em santo amor ansiosa me aguardava, bem como as do meu velho pai, não impediram o forte desejo que me impulsionava de ser aventureiro, conquistador de nações e de conhecer os costumes de outros povos. Lancei-me às ondas em mar aberto, tendo como companhia um barco e uma tripulação pequena, mas de peito corajoso e mente consciente. Tendo percorrido o imenso oceano, chegamos à Espanha, Marrocos, à península dos Sardos (Sardenha) e à outros países que banhados são pelo imenso mar azul. Já cansados e envelhecidos chegamos enfim ao famoso estreito onde Hércules ergueu nove gigantes como defesa e que deveriam ser respeitados para bem deles próprios. (Famoso estreito de Gibraltar, cujos montes – as colunas de Hércules – eram considerados como aviso para que não se passasse além deles.)         "Vencendo perigos mil e a má sorte, já havíamos deixado Spta (Ceuta), que fica ao lado esquerdo, e Sevilha que ao lado direito está. Então eu disse aos meus companheiros: Chegastes irmãos ao fim da jornada! Estes rostos já minguados pela existência não sejam a razão para que vossas mentes deixem de se estender além da vida tentando novas aventuras, e o mundo veja que não existem mais pessoas com a vossa coragem e decisão! Viver sem um objetivo impede seguir vosso exemplo; havendo glória ela foi impelida apenas pela ambição. Com essas palavras, os ânimos se erguem cheios de entusiasmo e coragem, dispostos a continuar com a aventura. Já com a popa voltada para o flamejante Nascente, os remos são como que possuídos de asas; e o navio, avante seguia! No Poente, ao anoitecer, víamos astros a brilhar enquanto na imensa planície salgada navegávamos. Cinco vezes a lua no celeste manto sua luz espalhara e recolhera, Enfrentávamos com coragem o terror do oceano, quando, de repente, deparamos com uma imensa montanha envolta em nevoeiro. A alegria, que sempre nos acompanhava em pranto se converteu! Da nova terra, eis que de repente cresceu imenso furacão, três vezes irrompendo-se contra nós. Na quarta vez, a proa do navio ergueu-se para bem alto, e a popa, como que puxada por alguém, ao fundo foi descendo!... De repente, pelo mar fomos sepultados!...

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O INF - CANTO XXV

O INFERNO - CANTO XXV

"ONDE ESTÁ O FACÍNORA?"

        Vanni Fucci depois das negras predições desafia a Deus, pelo que o Centauro Caco, todo coberto de serpentes, lhe corre atrás. Dante reconhece entre os danados alguns florentinos que, em Florença, desempenharam funções públicas e descreve suas transformações de homem serpente e vice-versa. Texto do Tradutor.

        Assim que o ladrão terminou sua profecia levantando ambas as mãos em forma de figa exclamou: “Recebe Deus, porque são tuas!” As serpentes que sempre me horrorizaram, no meu conceito tornaram-se amigas porque uma delas rapidamente se enroscou no pescoço do condenado blasfemo, como a dizer: “Não quero que continues blasfemando!”; outra impedindo-lhe os movimentos, enrolou-se ao redor do peito, e em nó prendeu-lhe os braços.

Ah! Pistóia! Ah! Pistóia! Deverias ter sido destruída pelo fogo, porque assim, tendo sido extinto esse nome impuro, seus descendentes ficariam isentos do mal. Não vi em qualquer outra parte deste infernal abismo nenhum outro espírito tão soberbo quanto este! Nem o ousado que, já morto, caiu do penhasco. (Capaneu.) Sem mais nada dizer, fugiu o condenado. 

Foi então que apareceucorrendo um furioso centauro, gritando: “Onde está o facínora?” Acredito que nem em Maremma tenha tão grande quantidade de serpentes quanto havia sobre este animal-homem! Em todas as partes onde esse animal apresenta ter a forma humana, elas estavam: em volta do pescoço, sobre os ombros, enroladas nos braços, ao redor do tórax, e em torno da cintura. De azas estendidas o atroz dragão cuspia imensas labaredas sobre aqueles que encontrava. Disse-me o Mestre: “Esse aí é Caco; ladrão assassino que sentia imenso prazer ao torturar suas vítimas e tê-las sob seu poder; tanto estrago fez que a região ficou em lagos de sangue. (Região do Monte Aventino). Não viveu em companhia dos irmãos pois aos dez anos perdeu a vida. Sobre ele, Hércules desfechou sua clava em centenas de golpes por haver roubado, disfarçadamente, seu rebanho de ovelhas que pastava. (Mitologia: ladrão que, para roubar o rebanho de Hércules, segurava as ovelhas pela cauda, se escondendo atrás delas.) Assim teve fim juntamente com seus crimes”.

        Enquanto o Mestre falava, foi-se o centauro porém, não havíamos prestado atenção em três espíritos que próximos já estavam e só os vimos quando gritaram: “Quem sois?”. Interrompendo nossa conversa somente dele nos ocupamos. Não reconheci nenhum deles, mas, como às vezes acontece um interromper o outro sem reparar que esse outro está a falar com alguém, um diz: “Onde está Cianfa?” (Cianfa dei Donati, famoso ladrão florentino.) Ouvindo essa voz, rápido coloquei o dedo sobre os lábios fazendo sinal a Virgílio para que ficasse atento.

        Se não acreditares no que vou contar, caro Leitor, não ficarei surpreso, pois o que presenciei quase eu mesmo não acredito. Enquanto eu estava prestando atenção naqueles espíritos, uma serpente com seis patas se atirou contra um deles ficando nele enroscado (Cianfa dei Donati é um nobre florentino que se tornou grande ladrão. Estando condenado ao inferno Cianfa se transforma em serpente com seis patas) Com as pernas de cima lhe amarrou os braços; com as do meio abraçou-lhe o ventre; e com as de baixo prendeu-lhe as pernas enquanto furiosa lhe mordia as faces; e com a cauda feria lhe os rins. Jamais árvore trepadeira entrelaçaria seus ramos uns aos outros como aquela fera se uniu ao condenado! Depois, como se de cera quente feitos fossem, os dois, homem e serpente fundiram-se misturando formas e cores; e nem um nem outro apareciam como eram antes, assim como o papel branco tendo sido queimado branco já não é. E os dois que admirados a tudo assistiam, gritavam: “Ah! Agnel, como estás mudado; não és um, nem podes te transformar em dois! (Agnel é Agnello dei Brunelleschi, nobre florentino que se transformou em grande ladrão. Ele aparece inicialmente como uma alma humana, mas é depois mesclado com Cianfa que aparece como um réptil de seis patas).

        Foi então que as duas cabeças se transformaram em uma única, porém conservando nela os dois semblantes. Os braços que eram quatro voltaram a ser dois; as coxas se misturaram com as pernas; o ventre e peito colocados ao redor das pernas. E assim aqueles dois seres se transformaram em um único ser jamais imaginado. E dessa forma deturpada o monstro se foi a passos lentos.

        Depois disso, qual lagarto que em dia de muito calor a procura de uma moita fresca rápido cruza a estrada, assim surgiu uma serpente menor; escura como um grão de pimenta, lívida, irada que  atirando-se velozmente sobre um dos dois condenados  picou-lhe o umbigo - que é por onde se recebe o primeiro alimento - caindo em seguida aos seus pés, em violenta queda. O ferido em silêncio, imóvel, bocejando como que tomado por pesado sono ou febre permanecia de olhos fitos na serpente e a serpente nele; e eu via pela ferida do condenado e pela boca da serpente fumaça levantando e se misturando no ar.

        Cale-se Luciano ao descrever sobre o que ocorreu com os infelizes Sebélio e Nassídio. (Personagens de “Farsália”, de Luciano, que, após serem picados por serpentes, Sebélio estoura de inchado e Nassídio se transforma em cinzas.) Cale-se e escute, porque sobre acontecimentos mais extraordinários descreverei agora. Cale-se Ovídio; não o invejo pela narração da história de Cádimo e Aretusa; (personagens do poema “Metamorfoses”, de Ovídio, onde Cádimo se transforma em serpente, e Aretusa em fonteali ocorreu prodígio maior! De tal modo se uniram os dois seres, que mudaram sua própria natureza; a cauda da serpente abrindo-se ao meio formou as pernas do homem e as pernas do homem unindo-se formaram a cauda da serpente; no homem as coxas se uniram de forma tão perfeita, que essa união não deixou vestígios; na serpente a cauda que fora dividida voltou novamente a sua forma anterior, porém sua pele tornou-se macia enquanto a do homem fez-se dura. Vi braços penetrando nas axilas, e pernas desaparecendo ventre adentro; e enquanto na serpente apareceram curtos pés, no homem encolheram seus longos braços. Retorcendo os pés, o horrível monstro deixou à mostra o órgão que o homem traz escondido, enquanto no homem esse órgão partindo-se em dois transformou-se em pés.

        Enquanto os dois iam sendo cobertos pela fumaça, e as peles tomando nova cor, os cabelos do homem foram transferidos para a serpente. Depois ergueu-se a serpente e arrastou-se o homem tendo sempre um no outro os ímpios olhos cravados acompanhando toda a funesta transformação. Na que ficou de pé (na serpente) subiu-lhe à fronte a matéria que sobrou do rosto do companheiro: na face, onde não havia  orelha apareceu-lhe duas; o nariz ajustou-se ao seu orifício nasal; os lábios se colocaram ao redor da boca que era estreita. Enquanto no  outro (no homem) que em terra se arrastava qual caracol as orelhas se transformaram em antenas; a língua preparada no falar tornou-se enforquilhada ao mesmo tempo que a boca se transformava em focinho. As transformações aconteciam num e noutro  ao mesmo tempo, sem um segundo sequer  de diferença. Daí então, a fumaça desapareceu. E aquela alma que em réptil foi transformada, pelo vale arrastou-se sibilando, enquanto a outra falando escarrou-lhe em cima indo-se embora irada. Depois voltando-se para a terceira alma que a tudo assistia, disse: “Que Buoso ande agora como eu andava: rastejando”

        Essas terríveis transformações, com espanto eu vi acontecerem na sétima vala. Desculpe-me caro Leitor, o modo rude e mal escrito deste canto onde tanta coisa estranha estou a descrever. Apesar de estar eu dominado pelo assombro, meus olhos não ficaram tão perturbados a ponto de não reconhecerem quem era o condenado: Puccio, (Puccio, o Desancado; ladrão florentino) o único que não sofreu transformação. O outro era Gavile, que, morte sofrida, teve. (Gavile, ladrão que foi linchado, pelos parentes da vítima.)