O PURGATÓRIO – CANTO VI
"POR ONDE IREMOS, QUERIDO MESTRE!"
Dante promete às almas que a ele se recomendam que não se esquecerá delas quando voltar ao mundo dos vivos. Os dois Poetas encontram o poeta Sordello, o qual, ao ouvir o nome da sua pátria Mântua abraça o mantuano Virgílio. Esse episódio move Dante a uma violenta invectiva contra as divisões e guerras internas que devastam a Itália. Texto do Tradutor
Ainda no 3º local - Vale dos príncipes
Quando um jogo de zara (jogo de dados) chega ao final, o que perde amargurado e solitário põe-se a ensaiar
alguns lances que poderiam ter sido à seu favor. Os torcedores partem
acompanhando o vencedor. Uns o cercam pela frente, outros o seguram por trás;
os que estão ao lado pedem deles se lembrar; sem deter-se dá atenção a este e
àquele; ao que lhe alcança a mão dela rápido se defende. Assim cercava-me a
enorme multidão; ora a um, ora a outro me voltando, com promessas consegui me
livrar de todos eles.
Ali estava o aretino que perdeu a vida por horrendo golpe aplicado por Ghin di Tacco; (O juiz aretino Benincasa di Laterina foi assessor do Podestá de Siena e na época proferiu uma sentença de morte contra um parente do nobre e poderoso Ghin de Tacco. Ao tomar conhecimento do poder que Ghin exercia em Siena, Benincasa apressou-se em deixar a cidade e obter transferência para Roma. Mas Ghin o perseguiu, e disfarçado em peregrino conseguiu ter acesso ao escritório do juiz. Um dos relatos afirma que após matar sua vítima, Ghin escapou sem ser incomodado levando consigo a cabeça do juiz [Musa 95]. ) e também outro aretino que em perseguição ao inimigo se afogou. (Guccio dei Tarlati de Pietramala foi um aretino que morreu afogado ao tentar atravessar o rio Arno fugindo de seus inimigos após uma batalha de guelfos contra guibelinos em Bibbiena). Rogando-me em sentida súplica estava também Frederico Novello (era filho do Conde Guido Novello e neto do conde Ugolino della Gherardesca (veja Inferno Canto XXXIII). Foi morto pelos guelfos da família Bostoli durante batalha ocorrida no Cosentino [Musa 95] e ainda aquele pisano por quem seu pai Marzucco, teve grande atitude. (Farinata de Pisa filho de Marzucco degli Scornigiani. Marzucco foi um jurista que ao se aposentar entrou para a ordem franciscana. Quando seu filho Farinata foi assassinado por Beccio da Caprioni ou pelo Conde Ugolino della Gherardesca, Marzucco não buscou vingança mas perdoou os assassinos). Vi também o Conde Orso, (Conde Orso degli Alberti, filho de Napoleone degli Alberti e neto do Conde Alberto di Mangona. Foi morto pelo primo Alberto, filho de Alessandro degli Alberti - irmão de Napoleone-. Dante encontrou os irmãos Napoleone e Alessandro na Caína (Inferno, canto XXXII) e aquele que sofreu terrível morte, não por ter alguma culpa mas, por ódio e inveja (Pier de la Broccia - era conselheiro e cirurgião de Filipe III, da França. Foi enforcado por causa de uma falsa acusação de traição inventada pela rainha, a segunda esposa de Filipe, Marie de Brabant. Marie o acusara de ter tentado seduzi-la). A causadora dessa morte que ainda impera no Brabante se apresse em se penitenciar senão será levada a fazer companhia a maldita plebe lá onde poderá sofrer terríveis suplícios (no inferno).
Quando enfim pude me livrar daquela multidão aflita que suplicava preces para abreviar sua entrada na Celestial Mansão perguntei ao meu Guia: “Em teu livro, ó douto Guia, afirmas textualmente que a oração não tem força bastante para modificar as disposições divinas; no entanto, essa multidão pede-as com ansiedade; seria vã sua esperança ou não pude compreender o que afirmavas?”
Respondeu-me: “Fui bastante claro na minha afirmação; e a esperança dessa gente não é inútil. A Justiça Divina não se modifica mesmo quando o pecador padecente é redimido por meio de fervorosas prece. Lá expus o pensamento afirmando que, por estar afastado de Deus, aquele que suplicava nenhuma oração poderia ter valor. Porém esse imenso problema para a inteligência te será brilhantemente esclarecido. Por quem? Por Beatriz que risonha e feliz verás quando alcançares o cume desta montanha”.
Respondi: “Mestre, agora pudemos andar mais rápido pois não sinto a menor fadiga como antes e já estou percebendo a sombra do cume da montanha”.
Continuou o Mestre: “É preciso prosseguir na caminhada porém de acordo com nossas forças e enquanto tiver luz do dia; também não te enganes quanto aos teus desejos, pois as coisas não são tão fáceis como pensas. Antes de chegarmos ao cume aguardarás a volta deste astro que está oculto agora por causa da encosta da montanha; seus raios ainda não desapareceram. Vê do outro lado aquele espírito solitário que atento nos aguardada; ele nos dirá qual o melhor caminho por onde devemos seguir”.
Chegamos e nos dirigimos ao espírito! Como se mostrava altivo movimentando os olhos grave e lentamente! Então, encarou-nos e, majestosa qual leão em seu repouso nos deixou aproximar observando-nos em silêncio. Virgílio aproximou-se dele pedindo que nos mostrasse a melhor subida. Ao invés de responder, perguntou qual foi a nossa pátria e a nossa vida. Meu Guia tinha começado a lhe responder: “Em Mântua...” quando aquela alma, comovida, de onde estava a ele se atirou dizendo: ”Sou Sordello e lá também nasci”. E os dois se abraçavam estreitamente. (Sordello de Visconti; poeta, jurisconsulto e guerreiro, do século XII).
Ah escravizada Itália, morada da aflição! Nau sem comando em mar tenebroso! Outrora rainha agora transformada em prostituta! Esse espírito nobre e amável somente ao escutar o nome da doce terra logo ao patrício acolhe carinhoso enquanto os vivos no teu solo em sangrenta guerra atiram ferozmente uns contra os outros aqueles que nascem e crescem entre os mesmos muros. Ó mísera Itália! Onde em teu solo, poderá tua infeliz gente encontrar a paz? Cuidadosa abriga-asob teu manto aconchegando-a em teu seio! Em vão Justiniano veio te tomar as rédeas, pois tens ainda vazia a sela; maior vergonha te causou a tentativa de comando. (O Imperador Justiniano, que consolidou a legislação romana.) Ó Cúria Romana! Cuida dos teus deveres religiosos e deixa o Imperador governar o país conforme decretou Cristo deixando a César o que é de Cesar! Vê como a falta de domínio aguçou a fera dos maus instintos depois que mãos sem habilidade a está governando.
E tu Alberto de Germânia, tão inteligente porém tão jovem que me causou espanto ao ter se tornado o sucessor do Imperador, reflitas agora pois deverias tê-la governado antes de que tudo isso acontecesse! (Alberto I da Áustria; herdou de seu pai Rodolfo de Hapsburgo o trono do Sagrado Império Romano após derrotar seu concorrente Adolfo de Nassau vencido e morto por ele em batalha. Sua eleição desagradou ao papa Bonifácio VIII mas teve sua legitimidade reconhecida, porém nunca foi à Itália para ser coroado pelo papa. Alberto, que foi morto violentamente pelo seu sobrinho foi sucedido pelo imperador Henrique de Luxemburgo). Justo castigo do Céu deverão tu e teu pai receberem por estarem ausentes em terra estranha por cobiça, enquanto permitem que o Jardim do Império esteja sendo abandonado.
Com indiferença vês Capelleti e Montecchi entristecidos em tamanha aflição (eram duas famílias rivais de Verona, cujas brigas foram tema da peça Romeu e Julieta de William Shakespeare)! Vês também Monaldi e Filisppeche alvos da própria fúria (também duas famílias rivais de Orvieto). Vem insensíveis! Vem ver teus fiéis seguidores oprimidos e procura amenizar seus sofrimentos! Vai até Santafiori (castelo e feudo imperial nas vizinhanças de Sena) para ver como eles estão sendo tratados!
Vem ver tua Roma! Viúva e abandonada não se cansa de chorar e a todo instante clama: “Vem César! Vem ver o abandono em que me encontro”! Não deixe minha esperança morrer! Vem ver o amor que ainda existe no povo e se por nós não te move piedade, mova-te por zelo à tua fama! Se me é permitido perguntar ó Supremo Deus crucificado por amor aos homens, não Te comoves por nos ver sofrendo tanto? Ou no abismo insondável da Tua sabedoria já está preparado para nós algum bem que nos é vedado conhecer? Um imenso tropel de tiranos subjuga muitas cidades da Itália e, qualquer um acredita poder tornar-se um Marcelo dizendo-se inofensivo à pátria. (Cláudio Marcelo, adversário de Júlio César). Mas tu, Florença minha, esse episódio a ti não se refere pois sempre evitaste ser um desses facínoras. Enquanto muitos trazem na mente e no coração o desejo de vingança aguardando para isso apenas a oportunidade, teu povo pede justiça permanentemente. (Essas palavras de Dante são de ironia contra sua terra natal).
Oh! Gostaria eu que assim fosse! Muitos têm a justiça no coração; pensam antes de julgar mas a tua gente abre a boca sem pensar. A verdade é que enquanto muitos não aceitam altos cargos públicos teu povo solícito grita: “Estou me ofereço!” Mas alegra-te Florença, pois o mundo reconhece em ti prudência, paz e riqueza! Digo a verdade e disso ninguém duvida. Atenas e Esparta que se elevaram às alturas por leis e instituições viveram na incerteza; o que será de ti, ó Florença que te acostumaste a ver revogadas em novembro leis que foram aprovadas em outubro. Quantas vezes em curto período de tempo foram transformadas leis, moedas, hábitos antigos e tradicionais modificando até mesmo o temperamento e as atitudes de seu povo? Se olhares pra ti com clareza, hás de te comparar a um enfermo que se agita no leito procurando em vão aliviar e dor.
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