O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

segunda-feira, 27 de maio de 2024

 

O PURGATÓRIO  – CANTO XXV

"TENS O ARCO DO DESEJO JÁ PREPARADO!.."

Subindo por estreita senda do sexto ao sétimo e último compartimento, Dante pergunta a Virgílio como podem as almas emagrecer, se não precisam de alimento. Responde-lhe Virgílio antes depois Estácio. Este fala da geração do corpo do homem, da alma que nele Deus infunde e da maneira de existência depois da morte. O compartimento no qual acabam de chegar está cheio de flamas, nas quais estão purificando as almas dos luxuriosos. Texto do Tradutor.

Do 6º ao 7º e último compartimento

        Tínhamos pressa em subir pois, lá (no Purgatório) o Sol já havia dado o meridiano à constelação de Touro e a noite cedia lugar à constelação do Escorpião (no hemisfério do Purgatório eram duas horas da tarde e no hemisfério oposto, eram duas horas depois da meia-noite). Qual viajante que não diminui o passo nem se distrai mas segue sempre avante pois tem pressa em chegar, assim íamos nós. Subíamos por uma estreitíssima escada que nos obrigava a ir um atrás do outro. O filhote da cegonha abre as asas querendo voar mas, logo as encolhe por lhe faltar coragem de deixar o ninho, assim crescia em mim o desejo de perguntar mas, logo desistia. Percebendo o Mestre o que se passava comigo, sem parar de caminhar disse:

        “Tens o arco do desejo já preparado! Arremessa pois a flecha da palavra; não fiques, constrangido”. Me sentindo encorajado perguntei: “Como pode emagrecer pela fome quem não necessita mais de alimento?”. Respondeu Virgílio: “Se recordares Meleagro que em forma de lenha foi consumido pelo fogo, isso não será tão difícil de compreender. (Personagem de Ovídio no qual ao nascer, as Parcas predisseram que a sua vida estava ligada ao um pedaço de lenha atirada ao fogo. Sua mãe Alteia, para preserva-lhe a vida retirou do fogo o tição apagou-o e escondeu. Algum tempo depois, tomada de ira contra o filho jogou o tição ao fogo o qual foi consumido juntamente com Maleagro.) Também te facilitaria a compreensão se lembrares que, ao te ver refletido num espelho os movimentos que fazes são imediatamente repetidos pela imagem refletida. Mas, para que tua dúvida seja totalmente esclarecida, aqui está Estácio a quem suplico te seja dada a explicação que tanto desejas”.

        Então falou Estácio: “Se ouso explicar este mistério divino estando tu aqui presente ó Mestre, ao teu querer me curvo respeitoso. E tu, filho, se guardares na memória o que eu disser, hás de ter tuas dúvidas prontamente esclarecidas,”. (Aqui é descrito como é formado o ser humano.) “O sangue que as minúsculas veias ainda não receberam permanece à parte, bem forte, como que alimentado por nutrida mesa e ao chegar ao coração recebe a divina virtude de como agir para dar forma aos membros, e ao chegar nas veias, possui a virtude de alimentar os órgãos. Depois, desce até aquele canal viril cujo nome  por decência é melhor não dizer, por onde é levado a um depósito natural misturando-se a outro sangue. Lá, um recebe o outro; e pela perfeita união existente começa então a força construtiva; coagulando e depois transformando-se em vida por efeito do germe primitivo um novo ser vai gerando seguindo as normas da perfeição do lugar onde se encontra. E em alma se transforma essa força ativa assim como ocorre nas plantas, porém de forma diferente pois, enquanto a planta crescendo permanece fixa, a alma evolui. E nessa evolução de vida, qual fungo marinho o novo ser se movimentando e sentindo vai desenvolvendo os sentidos que traz em si instintivamente. Filho, a força geradora vindo do coração, ora se contrai ora se expande e naturalmente vai formando os membros necessários. Porém filho meu, certamente ainda não sabes como este ser recebe o dom da inteligência. Este é o ponto onde um dos homens mais sábios errou quando em sua extravagante doutrina ensinava que o raciocínio é separado da alma. (O filósofo Averrois dizia que não encontrando no homem um órgão especial para o pensamento como os olhos para ver, os ouvidos para ouvir, etc., conclui que a inteligência é independente da alma). Agora abre tua mente e deixa entrar nela a luz da verdade; no feto, quando os órgãos ainda estão iniciando, o cérebro já se encontra em perfeita conclusão. 

        O Primeiro Motor (Deus), satisfeito fitando o olhar em tal primor da natureza, lhe inspira a Alma repleta das potências naturais, potências estas que são a própria substância; assim, alma e corpo formam um único ser que vive e sente e pensa e em torno de si mesmo se envolvem. Creio que essas explicações aclararam tua mente. Porém, para melhor compreenderes lembras-te disso: o suco da uva unindo-se ao calor do Sol se transforma em vinho. Então, quando Láquesis (a Parca que fia a trama da vida) não tem mais linha para tecer, a alma deixa a carne levando consigo todas as potências adquiridas – divinas e humanas. E enquanto na nudez do jazigo ficam as potências corpóreas, as divinas ou sejam - memória, vontade e entendimento - permanecem unidas à alma que por espontâneo movimento precipita-se para uma ou outra margem da eternidade, para ali tomar conhecimento do seu destino eterno. Chegando ao lugar a que foi destinada, aquela mesma força que lhe deu a existência a envolve como se presa estivesse por poderosos braços; também como o ar quando repleto de umidade é tocado pelos raios solares mostra-se adornado de várias cores, assim o ambiente ao redor daquela alma adquire a forma e o colorido que está contido no seu íntimo fazendo com que ela, a alma, permaneça em seu centro. E semelhante ao fogo que acompanha os movimentos da labareda, cada alma acompanha os movimentos do ambiente que a envolve. Tornando-se ela visível chama-se “sombra”; e estando assim formada recompõe sentidos principalmente o da visão. Por isso ela pode falar e rir, amar, odiar ou simpatizar, manifestar dor chorando ou suspirando. Nesta montanha já tiveste prova suficiente disso. E quando os sentimentos como desejos, afetos e sofrimentos agem sobre ela, isso também altera a sua forma”. Então, Estácio completou sua explicação dizendo: “Compreendes agora porque a punição à gula está nos causando tanta magreza”.

        
   
11º local – 7º e último compartimento – terraço da luxúria

Voltando à direita, chegamos a um lugar considerado final do círculo, quando outra cena nos chamou a atenção. Da ribanceira brotavam chamas que subiam e rápidas desciam. Andávamos um a um por estreito caminho à beira do precipício tendo do outro lado as chamas que me causavam medo, quando Virgílio falou: “Aqui, quem não quiser dar passo perigoso, deve estar bem atento”.

"Summae Deus clementiae," (hino com que a Igreja roga a Deus que nos livre da luxúria) as almas que estavam no meio do grande incêndio entoavam  esse hino com tanto fervor, que  me deu vontade de voltar o olhar para ali. Foi então vi espíritos que caminhavam no meio daquelas chamas. Atento aos seus movimentos meu olhar se alternava entre o movimento de seus passos e os meus os quais eram dados em perfeita harmonia. E quando terminavam aquele canto, ouvia-se gritar bem alto: Virum non cognosco! (Palavras da Virgem Maria ao Anjo Gabriel [Lucas 1,34  Maria disse ao anjo: Como se fará isso, pois ‘EU NÃO CONHEÇO’ varão?])  Então, esposas e maridos exaltavam a fidelidade conjugal que foi ordenada por Deus; depois, em voz mais baixa continuavam o cântico; e no final todos repetiam em coro: “Diana expulsa Hélice da floresta por ter ela experimentado o filtro do amor”. (Mitologia: Helice - ou Calixto – era uma ninfa que servia Diana que vivia refugiada na floresta para preservar a sua castidade. Seduzida por Júpiter, Helice cedeu aos instintos de Vênus e foi expulsa da floresta por Diana. Quando seu filho (Arcas) nasceu, Juno a transformou em uma Ursa. Dezesseis anos depois, Arcas foi surpreendido uma Ursa na floresta. Quando estava prestes a ser morta pelo filho, que não a reconheceu, Júpiter interferiu e colocou-a no céu como a constelação Ursa Maior (Ovídio, Metamorfoses, livro II). Acredito que essa repetição no cantar deve ser a penitência deles; e somente por esse meio serão purificadas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário