O PURGATÓRIO – CANTO XXVI
"OLHEM! O CORPO DELE É VERDADEIRO!"
Entre os luxuriosos e os que pecaram contra a natureza Dante encontra o poeta Guido Guinicelli, ao qual exprime a sua profunda admiração. Guido lhe aponta o poeta provençal Arnoud Daniel, que o saúda em versos provençais. Texto do Tradutor
Ainda no 11º local – 7º círculo =Terraço da luxúria
Enquanto íamos andando pela borda do precipício um após o outro o Mestre repetia: “Eu te aconselho ir andando com atenção!” O azul do céu já se tingia de branco e a luz do Sol que dourava todo o poente me atingia pela direita fazendo com que a sombra projetada pelo meu corpo tornasse as chamas mais vermelhas ainda; e as almas que passavam ao perceberem demonstravam seu espanto sendo isso motivo para que dissessem entre elas: “Olhem! O corpo dele é verdadeiro!” E para disso terem a certeza vinham em minha direção aproximando-se o quanto podiam tendo porém o cuidado de não deixarem o fogo expiatório.
Diziam: “Ó tu que vais seguido depois dos outros não por preguiça mas por respeito, fala comigo que em fogo e sede estou ardendo. Não sou o único que deseja ouvir-te; todos que aqui vês sentem sede da tua resposta mais que etíope sente pela água. Explica-nos como pode o teu corpo impedir desta forma a passagem da luz do Sol; por acaso não te colheu ainda a rede da morte?”.
Assim me falou uma daquelas sombras. Pretendia eu logo explicar, porém algo bem diferente atraiu minha atenção. Pelo caminho em chamas, outra multidão de almas vinha ao encontro desta. Parei de falar e fiquei prestando atenção. De parte a parte cada alma se dirigia à outra beijavam-se apressadamente e em seguida afastavam-se como que felizes pelo breve encontro como fazem as formigas que saindo em marcha se encontrando tocam-se umas nas outras como pedindo informações sobre a estrada, ou se tiveram sorte no que estavam procurando. Separando-se após essa manifestação de amizade, antes de completar a volta habitual cada grupo se afastava gritando. Um dos grupos gritava: “Sodoma!” Gomorra!“ E o outro grupo continuava: “Pasífae entrou na vaca para que o touro lhe saciasse a luxúria". (Ver Inferno Canto XII – mulher do reide Creta; para unir-se com um touro, se colocou dentro de uma vaca de madeira; desta união nasceu o Minotauro. Apesar de ser um exemplo de sexo com animais (o que estaria em desacordo com a Lei Natural) Sodoma e Gomorra foram duas cidades destruídas por Deus, por causa dos seus pecados (Gênesis 18:17-33 e 19:1-28), entre eles a prostituição homossexual (Bíblia: Levítico 18, 22Não te aproximarás dum homem como se fosse mulher porque é uma abominação) (Deuteronômio 23, 17 Não haverá mulher prostituta entre as filhas de Israel nem fornicador entre os filhos de Israel) e (Romanos 1, 27 e, do mesmo modo, também os homens, deixando o uso natural da mulher, arderem nos seus desejos mutuamente, cometendo homem com homem a torpeza e recebendo em si mesmo a paga que era devida ao seu desregramento). O nome da cidade de Sodoma deu origem ao termo ‘sodomia’ que hoje se usa para caracterizar o coito anal. Representa a luxúria homossexual, pecado contra a Lei Natural.
Lei humana, Lei natural e Lei divina: Diversos tipos de lei são definidas por Santo Tomás de Aquino. Acima de todas está a Lei Eterna, que representa a vontade de Deus. Abaixo da Lei Eterna estão a Lei Natural, que reflete a revelação da Lei Eterna através da natureza e da Lei Divina) que chega aos homens pela revelação através das escrituras sagradas. A Lei Humana deriva da Lei Natural e contém os princípios necessários para a regulação da conduta dos homens.
E iguais a grous quando a repartirem em bando, uma parte se encaminhando para a Líbia outra em direção aos montes Rifeus; uma parte em direção ao sol outra ao gelo distanciando-se uma da outra, assim aquelas almas umas iam outras vinham; e novamente juntando recomeçava o hino, o pranto e o lamento.
E as mesmas almas que antes me haviam interrogado, de mim se aproximaram outra vez mostrando com gestos que desejavam saber alguma coisa sobre minha pessoa. Então lhes respondi: Ó espíritos que através da purificação se preparam para alcançar a glória eterna fiqueis sabendo que este meu corpo não jaz em terra fria; trago-o comigo em toda a sua composição, todo o sangue nele contido e toda a sua forma natural. Ando por aqui a procura de luz para o entendimento, pois lá no céu uma excelsa Dama obteve a graça de que eu, ainda em vida, por aqui me eleve à Suprema Altura. Desejo que todos vós em breve estejais no Céu que é cheio do puro amor! Mas, para que eu possa melhor descrever ao meu povo lá na terra sobre vós dizei-me quem fostes e que multidão é aquela que está vindo ao vosso encontro”.
O espanto que sente o rude e simples montanhês ao se encontrar no meio de uma grande cidade e observar tudo o que nela pode estar contido, para aquela multidão o efeito não foi diferente porém dele rápido se libertando, pois o espanto logo se esvai em peito altivo. E assim respondeu aquele que primeiro me havia perguntado:
Ditoso és tu que vendo o nosso pranto alcanças um grande aprendizado para o teu viver! Corromperam-se aqueles que outrora vendo o triunfo de César, por escárnio, o chamaram de “Rainha” (Narra Seudônio que os soldados de César, no triunfo que lhe foi concedido por ter vencido os galos, cantavam: “César submeteu as Gálias; Nicomedes a César. Viva a Rainha!” Aludindo à relações de Cesar com o rei Nicomedes). Eis por que ao se separarem acusam-se chamando de Sodoma acrescentando a desonra à pena do fogo. Nosso pecado foi o de temos sido bissexuais; porque tendo transgredido as leis da natureza no apetite desregrado, para nossa injúria, quando os outros gritam os nomes das cidades malditas, respondemos lembrando o nome daquela mulher que ao assumir a bestial imagem, em besta se tornou. Agora sabes quais foram os atos que nos incriminaram; quanto aos nomes dos que aqui estão, não sei; também o tempo não seria suficiente para indagar disso aos outros. Mas o meu nome te é bem conhecido; estás vendo Guido Guinicelli. (célebre poeta bolonhês) Estou sendo purificado aqui neste lugar por haver me arrependido a tempo".
Como os dois filhos de Liturgo que correndo ao encontro da mãe ficaram felizes mas, não plenamente, (Ipsífile, que foi condenada à morte por Liturgo, rei da Nemeida, mas foi salva pelos dois filhos que antes não a conheciam) assim eu, quando ouvindo nessas palavras o nome daquele que foi inspiração para mim e para muitos outros que em doces versos cantaram amores. Em silêncio, sem nada ouvir, longamente o contemplei; eu queria me aproximar dele porém impediam-me os ardores das chamas; então declarei estar à sua disposição e solenes promessas o afirmaram.
Respondeu-me Guido: “Tuas palavras de afeto ficaram tão profundamente impressas em meu peito agradecido, que nem as águas do Letes os apagariam. Mas se de ti tenho escutado sentimento verdadeiro, o que está te perturbando tanto que deixas transparecer através da voz e do olhar?”. Respondi: “Foram os teus versos; enquanto existir nosso idioma salvas estarão do esquecimento”.
Ele então continuou: “Irmão, este que te indico” – falou-me com ternura e com o dedo indicava-me outra alma – “nos versos, nos romances superava a todos; somente os tolos ousaram dizer que o Limosino superava a ele. (Geraldt de Berniel de Limonges, outro trovador provençal.) Pelo simples desprezaram a verdade e como desconheciam a arte, formaram opiniões sem fundamento. Assim outrora aconteceu com Guittone mas, no final todos reconheceram a verdade e seu nome foi proclamado. Já que alcançaste o privilégio de entrar neste portentoso mosteiro cujo abade é o próprio Cristo e onde não se pode mais cometer pecados reza por mim um piedoso Pai-Nosso”.
Depois, para dar lugar ao outro espírito que próximo estava, em meio ao
fogo desapareceu qual peixe que ao fundo das águas mergulha. Aproximei-me do
espírito que apareceu em meio às chamas e lhe disse que eu havia reservado em
meu coração um lugar especial para o seu nome. Então ele me respondeu em
versos:
“Tão delicado vosso pedido é, que escutando,
Encobrir-me não quisera ou poderia;
Arnaldo sou, que choro e vou cantando,
Com tristeza os erros passados meus, lamento,
E o ditoso dia, alegremente estou esperando,
Peço-vos então pelo alto valimento,
Que da escada às alturas ora vos guia,
Que no mundo vos lembreis do meu tormento.”
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