O PURGATÓRIO - CANTO XVII
"SOBE POR ESTA
ESCADA."
Saindo do denso fumo, Dante, novamente em êxtase vê exemplos de ira punida. Tornando a si vê um anjo que está perto da escada do quarto compartimento. Os dois Poetas continuam a subir. Sobrevindo, porém à noite param e Virgílio explica ao discípulo que o amor é o princípio de todas as virtudes e de todos os vícios. Texto do Tradutor.
Leitor, se já estiveste na cordilheira alpina e foste envolvido por tão densa névoa que através da qual nada poderias ver como se olhos de toupeiras tivesses, deves estar lembrado de que, quando a úmida e sombria cortina de fumaça começa a se dissolver, a esfera solar envia ao espaço uma escassa luz. Estava assim o sol quase a se esconder mas ainda espalhado sua luz sobre a região quando, acompanhando os passos do meu Mestre saí da cerração que me cercava.
Ó fantasia que enleva e domina o espírito do homem a ponto de que nem o rijo soar de mil tubas juntas o desperta ficando ausentes os sentidos. Move-se a luz no Céu por si ou por um querer do Onipotente? Pois meus sentidos se perderam novamente numa visão: Pareceu-me ver aquela que por castigo de seus crimes foi transformada em ave e em seus gorjeios encontrava consolo. (Filomela (incorretamente chamada de Filomena) foi ultrajada por seu cunhado Tereu, rei da Trácia, casado com sua irmã Procne. Para impedir Filomela de denunciar a violência sofrida, Tereu corta-lhe a língua. Apesar disso, Filomela consegue informar sua irmã sobre o acontecido bordando uma mensagem numa tela. Ao saber do crime do marido, Procne mata o filho do casal, Ítis, e serve sua carne a Tereu. Para escapar da perseguição de Tereu, as duas pedem ajuda aos deuses, que as transformam em pássaros. Filomela é transformada em rouxinol, e sua irmã e, numa andorinha.
Tanto ficou minha alma presa na suave visão, que nenhuma outra impressão a desviava. Naquele mesmo êxtase, em seguida, vi preso a uma cruz um homem de feroz semblante. Nem a morte lhe abatia a arrogância. No mesmo êxtase, em seguida vi um homem crucificado com semblante feroz (Amam, ministro do rei Assuero; estava ali sendo crucificado por ter mandado matar o inocente Mardoqueu. “[Bíblia: Est. 16;13 Porque, com novos inauditos artifícios, maquinou a morte de Mardoqueu, a cuja lealdade e benefício devemos a vida e também a de Ester, minha companheira no reino, com toda a sua nação,”). Próximo a ele estavam o grande rei Assuero, sua esposa Ester e o prudente Mardoqueu. Mas esta imagem fugiu-me da visão tão rapidamente, como a bolha de água que dela é formada e por falta dessa mesma água explode e desaparece. Logo em seguida surgiu outra visão: uma jovem que em prantos exclamava: “Ó mãe querida, por que cheia de ira buscaste a amarga morte? Por não querer perder Lavínia perdeste a vida e a mim a filha dolorida que lastima o teu fim com dor maior do que a que foi sentida por ocasião da perda do noivo” (Lavínia, filha do rei Latino e da rainha Amata. Turno, noivo de Lavínia antes da chegada de Eneias à Itália. Mas não consegue casar-se com ela, pois um oráculo aconselha Latino a aceitar como genro um estrangeiro que trará glória ao seu povo. Esse estrangeiro é Eneias. Indignado, Turno se decide a enfrentar Eneias num duelo, única saída segundo ele, para resolver o conflito. Num primeiro confronto, Turno tenta atingir a armadura de Eneias, mas vê sua espada voar em pedaços e procura salvar-se fugindo. Num segundo confronto, Eneias traspassa o escudo de Turno e o fere na coxa. Supondo Amata que Turno tivesse sido morto por Eneias, suicida-se. Lavínia encontrando a mãe morta lamenta que o seu ódio por Enéas fosse tão grande a ponto de acabar com a própria vida. (Virgílio, Eneida )
Como se despertasse do sono quando repentina e forte luz sobre as pálpebras desce e estas em luta tenta afugentá-la, assim desapareceu a visão, quando vivo clarão me banhou as faces; outro igual sobre a Terra nunca se viu. Voltei-me para ver onde me encontrava porém ouvindo uma voz dizendo: - “Sobe por esta escada” – desisti de qualquer outra intenção. Minha alma foi tomada por tão veemente desejo de saber quem assim havia falado que se não o visse teria ficado perturbada. Podes então imaginar qual foi minha espanto ao ver o sol resplandecente tendo já descido ao poente, pois uma luz flamejante impediu-me de fixar a vista em direção a tal voz; imediatamente senti perdidas as forças.
Disse meu Guia: “É o espírito celeste que vigilante e sem rogos o caminho nos indica. Se mantêm oculto em sua própria luz. Está agindo conosco como um homem agiria para com outro; pois aquele que vendo alguém em extremo perigo fica aguardando o pedido de socorro mostra não estar disposto a ajudar. Por isso apressemo-nos em aceitar seu convite e subamos antes do anoitecer. Se não fizermos agora só poderemos fazer quando o Sol tiver despontado”.
Logo dirigimos os passos em direção a uma escada. Quando chegamos ao primeiro degrau percebi bem próximo um mover de assas e ouvi um pequeno sopro no rosto dizer: ”Venturoso é quem isento da ira ama a paz”! Já no alto empalidecia os raios solares surgindo o formoso exército de estrelas.
“Ai de mim! Por que me faltam, as forças?” – murmurei a mim mesmo ao sentir esgotadas as forças que sustentavam as pernas para alcançar o topo da escada. Ali permanecemos imóveis imitando a nau que ancora à desejada praia, ficando eu atendo procurando ouvir algum rumor naquele lugar. Depois me voltei ao Mestre dizendo:
“Querido Pai, quais pecados recebem sua pena neste lugar?
8º local - 4º círculo- Terraço da preguiça
Não estejam tuas palavras tão imóveis quanto estão nossos pés”. Respondeu-me: “Aqui, a pena é aplicada aos que foram lentos na prática do bem. Para melhor compreenderes preta atenção ao que vou te explicar tirando o melhor proveito desse tempo de espera.
“ Meu filho, nem ao Criador nem à criatura jamais faltou o amor, quer venha da alma ou da natureza. O amor natural é destituído de erro; o outro pode poderá errar ao escolher mal o objeto do seu amor, por demasiado ardor ou por falta de vigor, (que é a tibieza). Quando o amor é dirigido tanto aos bens principais (os bens eternos) como aos bens secundários (os materiais) de forma equilibrada, não pode existir afeto criminoso. Porém, se de modo desregrado a criatura ao mal se inclina ou de modo exagerado ao bem se volta, ofende ao Criador. Podes compreender agora que no ser humano o amor tanto poder ser semente de virtude como de pecado. Portanto, como o amor não pode ser desviado do bem que é a finalidade para o qual foi criado, não pode acontecer que este amor se transforme em ódio. E como nenhuma criatura imagina sua existência sem seu Criador é natural que o amor os una de tal forma que não possa existir nenhum ódio entre eles".
E continuou: "Agora podes compreender que o amor pode ser semente de virtude ou de pecado por três modos. – Quando cobiçoso de grandeza e glória, (só admite a própria glória - orgulho). – Quando pretende conquistar honra, poder e glória, através da ruína de outro; (quer ter mais que outros - inveja). – Quando, sentindo-se injuriado insiste em vingar-se procurando todos os meios de praticar o mal contra que o injuriou (ira - por amor a si próprio). Surgindo do mal, essas três formas de amor desvirtuado têm sua expiação no terraço circular abaixo deste.
“Agora fiques atento ao que acontece a quem vai de forma desordenada em busca do bem. Confusamente cada um imagina o que seja o bem e ansioso o deseja. Para consegui-lo se aflige e sofre. Aqui, o castigo é aplicado de acordo com a forma de amor praticado quando no mundo estava. A quem, após adquirir o desejado bem espiritualpor ele sofre dissabores e por isso se torna inerte ao amor, é justo que aqui se veja em martírio.
“Existe ainda outro bem; este, porém não traz felicidade ao ser humano porque não sendo a essência do bem, que é fruto e raiz de toda virtude, não é a felicidade. O amor excessivo à esse bem tem seu tormento nos três círculos acima deste, porque assim se divide a inteligência. Sem que eu te diga quais são, por tu mesmo, delas terás conhecimento”.
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