O PURGATÓRIO – CANTO XVI
“CUIDADO PARA QUE NÃO TE AFASTES DE MIM”
Sempre ao lado de Virgílio, Dante continua a viagem. Denso fumo envolve os iracundos. Entre eles está Marco Lombardo, o qual lamenta os tempos, que eram bons e agora ficaram maus. Dante pergunta de que depende essa mutação, e Marcos responde que a corrupção dos tempos novos do mau governo do mundo e especialmente da confusão entre poder espiritual e o poder temporal. Texto do Tradutor.
Ainda no 7º círculo no 3º terraço (da ira)
A fumaça que nos rodeava era mais espessa e tenebrosa do que as sombras que eu vi no Inferno. (Os iracundos pagam seus pecados sufocados pela fumaça. O sufocamento já foi usado por Dante para representar o sofrimento pelo pecado da ira no inferno, onde os condenados gorgolavam as lamas do rio Estige [Canto VIII]). Coisa tão terrível jamais foi lançada sobre meu rosto. Tinha eu os olhos totalmente fechados. O meu fiel e diligente amigo vindo em meu auxílio, em seu ombro deu-me guarida. Qual cego que vai acompanhando seu guia para não se desviar do caminho, se chocar com algo que venha a machucá-lo ou que possa provocar a morte, assim no meio daquela escuridão atento seguia eu Mestre, que repetia: “Cuidado para que não te afastes de mim”.
Eu ouvia vozes; parecia que suplicavam misericórdia ao Cordeiro de Deus que às culpas dá alívio; (a Jesus, símbolo de mansidão, virtude contrária ao vício da ira.) Todas as preces começavam com o Agnus Dei. (Essa oração faz parte da missa católica e se baseia em João1:29) Letra e melodia guardavam perfeita consonância entre si. Perguntei: “Por quem essa oração que ouço é cantada?”. Respondeu-me o Mestre: “Pelos espíritos; desse modo, através da oração tranquila e calma é diminuída a culpa da ira”.
“Quem sois que fendeis a névoa e falais sobre nós qual criatura viva a calcular o tempo pelo calendário?” Falou uma das vozes. Disse-me Virgílio: “Responde e pergunta se por aqui se pode subir”. Então falei: “Ó alma que implora a graça de ir pura e bela para junto d’Aquele que te criou, se me seguires ouvirá maravilhas”. Respondeu-me: “Irei até onde me for permitido; e como através da fumaça não conseguimos nos ver, iremos conversando porque assim nos manteremos próximo um do outro”.
Comecei a dizer: “Meu espírito ainda está coberto por aquela veste que a morte usa despir. Estou subindo desde as profundezas infernais. E se Deus, Suprema bondade, permitir que eu chegue a ver a Sua Corte por este meio tão estranho, diz-me quem foste antes de morto e, qual o melhor caminho para a subida; assim, conversando, poderemos acompanhar teus passos”. Respondeu-me: “Fui lombardo e meu nome era Marcos. (Marco, de Veneza; conhecido pelo nome de Lombardo, homem sábio e prudente.) Conheci o mundo e amei os feitos honrosos os quais hoje ninguém mais dá valor. Para encontrardes o bom caminho deveis ir à frente”. Depois acrescentou: “E rogo que intercedais por mim ao chegardes ao alto”.
Logo repliquei: “Quanto me pedes prometo fazer porém, encontro-me oprimido por dúvida que desejo seja desfeita. Antes era simples; mas ouvindo tuas palavras aqui e outras ali, tiveram elas para mim duplo sentido. Dizes que o mundo terreno está vazio de virtudes e tens razão de sobra quando lamentas por ele estar cheio de maldade e coberto por vícios. No entanto peço-te me esclarecer os motivos que o levaram a tão mísero estado, para que eu possa revelá-los à outros. Alguns dizem que ser a vontade Divina, outros que vem da maldade humana”.
Então um suspiro dolorido escapou-lhe do peito. E continuou: “Irmão, o mundo onde estás vivendo é cego e ouvindo-vos, bem se percebe. Vós os vivos julgais que o Céu é o autor de todas as causas como se por ele tudo fosse determinado. Se assim realmente fosse, desaparecendo no homem o livre-arbítrio portanto não sendo ele responsável pelos seus atos, não seria justo aplicar-lhe prêmio ou castigo. É verdade que as primeiras inspirações para vossas ações vêm do alto, da permissão divina. Não digo todas, pois isso não se refere às más ações; mesmo que assim fosse tendes a luz da razão que vos faz diferenciar o bem do mal. Sendo livre para escolher, quem não se cansa e em seu querer prossegue, alcança a vitória; e com o auxílio do Céu tudo vencerá. A Natureza mais poderosa vos domina e vos concede o raciocínio para que usando-o, não fiqueis sempre dependentes da vontade do Céu. Mesmo assim, se o mundo desviou-se do bom caminho, a causa está em vós. (Nesse discurso sobre livre arbítrio, Marco Lombardo é o porta-voz das ideias de Dante sobre o determinismo. Ele critica os que põem na influência divina ou dos astros toda a responsabilidade pelas ações humanas. Ele explica que embora o céu seja responsável por alguns dos movimentos humanos, os homens, tendo a inteligência para distinguir entre o bem e o mal, têm o poder de decidir e seguir caminhos por sua própria vontade. Se os astros ditassem todo o futuro, os homens não teriam responsabilidade alguma por seus atos, pois não poderiam evitá-los.) Disto, explicarei fielmente o que acontece: Das mãos do Criador surge a alma que, mesmo antes de sua existência já era por Ele amada. No instante em que foi criada conhecendo apenas o amor do Deus, ingênua acreditando em tudo e em todos, se prende a doçura dos mais frívolos prazeres desviando-se, se freio não a impedisse de afastar a visão da justiça divina. O freio consiste nas leis. Portanto, leis existem; mas quem as cumpre? Ninguém! Nem mesmo o pastor que aos mais precede; rumina as palavras mas não dá bom exemplo. E, vendo o povo que o próprio guia se excede em busca do prazer dos bens materiais segue-lhe o exemplo nada mais além disto desejando. Agora podeis compreender que a causa de o mundo se ter corrompido é o exemplo de má conduta dos governantes e, não o enfraquecimento das leis naturais. Roma que era exemplo para o mundo, tinha dois sóis que iluminaram o caminho do Estado e o de Deus (Os dois sóis são o Império e a Igreja. Refletem a concepção de Dante do que seria um estado perfeito, controlado ao mesmo tempo pela Igreja e pelo Estado laico. Dante não propõe um estado religioso nem uma igreja mundana, mas a partilha equilibrada do poder entre as duas entidades, cada uma assumindo um propósito: o Império com a finalidade de governar a Cidade dos Homens e a Igreja para guiar os homens à Cidade de Deus). Aconteceu que um apagou o outro e se juntaram: do Bispo o báculo e do guerreiro a espada. Mal unidos, mau andavam, não mais se respeitando naquela união forçada. Para reforçar o que digo observeis a natureza: se conhece a erva pela semente que produz. Valor e cortesia em abundância encontravam-se nas terras banhadas pelos rios Ádige e Pó, (a Lombardia e a Marca Trevisana) antes de chegarem as atitudes de Frederico. (As guerras entre os Papas e Frederico II de Suábia.) Atualmente por ali, os que se envergonhavam de praticar o bem e de fazerem parte da liga dos corretos, podem entrar livremente pela região sem nada recearem. Contudo, ainda existe nesta terra três anciãos que com seus costumes de vida antiga, se diferem dos novos; brevemente Deus os retirará dessa terra inimiga. São eles: Conrado de Palazzo (foi um guelfo que assumiu vários cargos na Toscana), o bom Gherardo (capitão-general em Treviso. Era conhecido por sua bondade e também pela beleza e fama de sua filha Gaia) e Guido di Castello ( Papa - reconhecido pela sua bondade e virtude. Emprestava dinheiro sem cobrar juros. Ele também emprestava a fundo perdido: cavalos e armas aos que viajavam à França ou que de lá voltavam tendo perdido seus bens de forma honrada) chamado segundo ao estilo francês simplesmente o Lombardo. A Igreja de Roma por fundir-se aos poderes antigos, enlameia-se, e si enrola ao seu pesado fardo”.
Então eu lhe disse: “Marcos, ouvindo tuas sábias razões, percebo por que partiu de Levi a Lei que exclui seus filhos de qualquer herança. (Segundo a lei mosaica, os descendentes de Levi, isto é, os levíticos – os sacerdotes – não podem possuir bens temporais “O Senhor é a sua herança”. (Deuteronômio,18:2). Mas que Gherardo é este que invocaste, representante da glória e brasão de antiga raça, lançando censura a este século repleto de vícios?”.
Respondeu-me: “Quereis que eu continue a falar ou estais a me enganar! Pois, como posso acreditar que falando italiano ignoreis quem seja o bom Gherardo? Não o conheço com outro nome; por isso dou-vos como indicação o nome de Gaia, sua amada filha. Bem, a partir daqui não posso mais seguir convosco; Deus vos acompanhe! A fumaça já está menos densa e o dia clareando; devo voltar pois o anjo está preste a se apresentar”.
E assim falando se foi, nada mais querendo ouvir.
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