O PURGATÓRIO – CANTO XXVII
“NÃO TEMAS FILHO!..."
Para chegar à escada que do sétimo e último compartimento leva ao cimo do monte, Dante é obrigado por um Anjo a atravessar as flamas. Pouco depois de ter começado a subir, o ar escurece e sobrevém à noite. Param e Dante cansado, adormece. Despertados pela madrugada, os Poetas recomeçam a subir, chegando ao Paraíso Terrestre. Texto do Tradutor.
Ainda no 11º local
No mesmo instante em que o Sol envia seus primeiros raios lá onde Cristo derramou Seu sangue, a constelação de Libra resplandece sobre o Ebro e sobre o rio Ganges sua ardente luz é lançada; onde nós estávamos sua luz já ia se declinando (Em Jerusalém o Sol surgia; na Espanha era meia-noite; meio-dia no Ganges; e no Purgatório, era o pôr-do-sol) quando de repente nos apareceu um resplandecente anjo de Deus. Estava ele à margem do penedo, longe das chamas, e com voz que superava a qualquer voz humana entoava o Beati mundo corde, (O anjo da castidade, guardião da sétima terraço canta “Bem-aventurados os puros de coração porque eles verão a Deus – Bíblia: Mateus V, 8), acrescentando: “Para ir adiante ó piedosas almas, purificai-vos no fogo! Entrai prestando bem atenção aos cânticos que além são entoados”. Ouvindo de perto sua poderosa voz esmoreci como quem estando morto sai sepulcro e desce às tenebrosas trevas. Com as mãos cruzadas fiquei paralisado; de olhos fixos nas chamas relembrava aqueles que foram condenados à fogueira.
Virgílio se voltando a mim disse: “Não termas filho! Aqui há sofrimento mas não morte. Lembra-se de que te levei a salvo sobre Gerião, ou em ti desapareceu a memória? (Ver Inferno XVII). Em mim aumenta o desejo de te ver mais próximo de Deus. Tendo fé, mesmo que permaneças dentro destas chamas por espaço de um milhão de anos nem um só fio dos teus cabelos terá sofrido dano. Se não acreditas no que digo, te aproxima das chamas e por ti mesmo experimenta; expondo um pedaço de tuas roupas ao fogo verás que nada acontece; então todo o teu temor desaparecerá. Vem pois! Mostra que és valente”.
Eu acreditava mas não sentia coragem. Vendo-me assim obstinado e firme disse Virgílio entristecido: “Ó filho amado! Entre Beatriz e ti existe somente este obstáculo!”
Assim como Píramo já morto ao ouvir a voz de Tisbe chamando-o abre os olhos para vê-la ( mitologia), assim cedeu a minha resistência pois escutando aquele nome que permanece sempre em meu pensamento, me voltei rápido para Virgílio. Balançando a cabeça e sorrindo como quem convenceu uma criança ao acenar-lhe com saboroso doce disse-me: “Vamos! Queres que fiquemos aqui para sempre?” Então, seguido a minha frente no fogo penetrou. Estácio que sempre caminhava após mim, atendendo ao seu convite nas chamas também adentrou. E eu seguindo-os apenas no fogo entrei senti tanto ardor que para sentir alívio poderia me lançar em vidro incandescente. Procurando um meio de me confortar Virgílio assim falava-me de Beatriz: “Julgo estar vendo seu olhar cheio de fulgor!”
Escutei uma voz solitária que cantava; guiados pelo som daquela voz fomos seguindo até sairmos na parte onde se mostrava a subida. “Vinde ó benditos do meu Pai!”, ouvia-se o canto vindo do meio de um clarão tão intenso que meus olhos se cerraram ofuscados; e continuava: “O Sol já desaparece atrás da montanha; a noite se inicia; não vos demoreis; caminha a passos rápidos que o Ocidente já anuncia trevas”.
Do lado em que a claridade do dia se desfaz a trilha subia reta ao altivo penhasco. Nosso passo havia vencido apenas alguns degraus, quando a sombra projetada pelo meu corpo desapareceu indicando que o Sol já não difundia sua luz. Antes que todo o horizonte apresentasse igual aspecto e a noite estendesse todos os seus véus, cada um de nós ocupou por leito um degrau que nos convidava mais ao repouso do que ao desejo de continuar subindo.
Como as cabras à procura de alimento sobre os penhascos são rápidas e impetuosas depois à sombra e a ruminar mostram mansidão e brandura enquanto o sol envia seus ardentes raios e as guarda o pastor com seu cajado e olhar previdente; também como o vigilante guardador que na planície, quieto pernoita em sentinela ao gado contra o assalto das feras, assim estávamos os três: eu como se fosse uma cabra e os Poetas como pastores um ao lado do outro aconchegados sobre a rocha.
Olhando para cima, por estreita abertura viam-se fulgores de estrelas que naquela parte do firmamento se mostravam mais brilhantes e maiores. Envolvi-me de tal modo nessa paisagem noturna que me senti como embriagado pelo sono, sono esse que na mente se torna previsão do futuro.
Naquela hora em que no Oriente Vênus lança sua luz sobre a montanha parecendo estar sempre ardente de amor, em sonho eu acreditava eu ver uma formosa jovem que, tranquilamente, passeava pela planície colhendo flores; e cantarolando dizia: “Quem quiser saber quem sou, me escute: sou Lia e com minhas mãos vou tecendo bela guirlanda de flores; hei de, no espelho, ver-me mais bonita. Minha irmã Raquel dele não se afasta; passa o dia inteiro sentada mirando-se enquanto eu sou negligente em me adornar. Ela admira a própria beleza enquanto eu gosto de trabalhar! ( Bíblia: Genesis, 29 e 30 -Lia = filha de Labão e primeira mulher de Jacó, símbolo da vida ativa. Raquel = irmã de Lia e segunda mulher de Jacó, símbolo da vida contemplativa) ”
Já a alvorada espalhava no céu suas luzes que tanta esperança traz ao peregrino; com a presença da luz matutina fugiam as trevas e com elas o sono. Seguindo o exemplo dos Poetas ergui-me prontamente.
"O doce pomo que tão ansiosamente é procurado pelos mortais, hoje há de saciar-te a fome”. Nenhuma saudação me causaria maior prazer do que o ouvir dessas agradáveis palavras que foram pronunciadas pelo meu Mestre; e, tanto em mim crescia o desejo de alcançar o cume da montanha que, cada passo dado era como se estivesse sendo auxiliado por asas. 12º local – Paraíso Terrestre
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