O PURGATÓRIO – CANTO XXVIII
"APÓS ISSO, VOLTEI O OLHAR..."
O Poeta descreve a beleza do Paraíso Terrestre. Chegam Dante, Virgílio e Estácio perto de um rio que lhes impede de prosseguir. Do outro lado do rio aparece uma mulher de maravilhosa beleza que discorre a respeito das condições do lugar, resolvendo dúvidas que Dante lhe propõe. Texto do Tradutor.
12º local – Paraíso Terrestre
Tinha pressa em me afastar da encosta pois desejava andar por aquela encantadora, espessa e divinal selva onde ao novo dia a luz do Sol se fazia mais branda. Afastando-me um pouco dos Poetas a passos lentos entrei pela belíssima campina sentindo o doce aroma que dela exalava. A suave brisa que circulava afagava-me a fronte e agitava levemente a copa das árvores no lado onde na santa montanha já apresentava as primeiras sombras.
Esse movimento produzido pela brisa não perturbava o repouso dos pássaros que ali se encontravam calmamente pousados entre os ramos e sim parecia que o ruído brando das folhas os despertava aos murmurinhos fazendo-os saltar de ramo em ramo e com seus gorjeios saudavam a alvorada. É deste modo que às margens do Chiassi as aves se abrigam nas ramas dos pinhais quando Éolo deixa livre o caminho para o Siroco (o rio Éolo). Por tanto tempo havia eu caminhado tranquilamente pela selva, que não podia mais ver o lugar por onde havia penetrado. De repente um riacho a deslizar pela esquerda cujas leves ondas afagavam a ervinha que crescia às suas margens me impediu de continuar. A pureza e transparência cristalina dessa água, superavam a de qualquer uma outra existente na Terra; no entanto, pela permanente sombra que a luz do sol ou da lua nunca atravessa, aquela plácida correnteza parecia negra. Detendo o passo lancei o olhar para a outra margem daquele singelo riacho e fiquei a contemplar belezas que somente no mês de maio aparecem. Então, como quando algo extraordinário surge em nossa mente desviando o nosso pensar de qualquer um outro, surgiu ante meus olhos uma sorridente mulher cantando, colhendo as mais belas de entre as flores que cobriam o chão de matizes (é Matilda cujo nome será revelado mais adiante no último canto = Canto XXXIII. Ela está associada à imagem de Lia (vida ativa) no terceiro sonho de Dante).
Vendo-a, assim falei: “Bela dama cuja alma sente os fervores do amor divino – assim devo julgar pelo teu sorriso – se chegares até a margem do riacho eu poderia entender as palavras do teu cantar. Estando sozinha a caminhar por este lugar, tão formosa, colhendo flores e com este cantar inebriante faz-me recordar Prosérpina que foi arrebatada de sua mãe e que, ao perdê-la perdeu também a juventude”. (Mitologia: Prosérpina, filha Ceres, que foi raptada por Pluto enquanto colhia flores no vale do Etna.1)
Ela então se voltou qual graciosa bailarina e, deslizando os passos sobre o solo coberto de relva e flores atendendo ao meu pedido de mim se aproximou tendo o olhar modestamente abaixado; tanto se aproximou que pude ouvir claramente o sentido dos versos da bela canção. E, tendo chegado ao ponto onde a delicada erva era banhada pela cristalina água fez-me a graça inigualável de pousar o seu olhar sobre o meu. Não creio que no rápido olhar de Vênus ao feri-la a seta do amor resplandecesse tal brilho. (Enquanto brincava com sua mãe, Vênus, Cupido acidentalmente feriu-a no peito com sua flecha, e fez com que Vênus se apaixonasse pelo mortal Adônis (Ovídio, Metamorfoses, livro X).
Permanecendo na margem oposta ela sorria tendo as mãos repletas de lindas flores que a natureza o solo guarnecia. A distância que havia entre nós era de mais ou menos três passos, mas o riacho não possibilitava que o cruzasse. Leandro não sentiu maior indignação contra o rio Helesponto ao ser obrigado a atravessá-lo a nado e que Xerxes ao atravessá-lo deixou penosa lição aos soberbos, do que ao empecilho que esse riacho me causava. (Leandro, todas as noites atravessa o Helesponto a nado, de sua cidade Abidos a Sesto onde morava sua amada Heros; e Xerxes, rei da Pérsia atravessou-o por uma ponte feita de barcos para invadir a Grécia e que derrotado, teve de retornar do mesmo modo.)
Ela então assim falou: “És recém-chegado aqui! Quando clareava o dia ao ver-te neste lugar designado para receber a espécie humana senti imensa alegria que se manifestou através do meu sorriso e que não compreendeste. Mas, se recordares o Salmo “Delectasti” (Salmo 91.6 – Quão magníficas são, Senhor, as tuas obras!) toda tua dúvida terá esclarecida. Tu que antecipaste aos demais e me dirigiste a palavra que desejas saber? Pronta estou a te dar qualquer informação”.
Falei: “Esta água e os sons desta floresta não combinam com o que eu acreditava nem com a lição que recebi neste momento”.
E ela continuou: “Te explicarei por que isso acontece bem como a razão da tua surpresa dissipando assim as névoas que encobrem teu espírito enchendo-o de luz. O Supremo Bem que a Si próprio se basta, criou o ser humano apto ao bem e como garantia concedeu-lhe a paradisíaca abundância de eterna paz. Mas por sua própria culpa ele perdeu esse lugar de paz. A culpa transformou sua vida de risos e prazeres em prantos, em desgostos. Para que os maus efeitos causados pela evaporação das águas e da terra acompanhados de intenso calor não lhe causassem danos, é que tão alto se eleva esta montanha; por isso, desde a escada que para aqui dá acesso até seu pico, perturbação nenhuma a atinge. O ar gira constantemente em círculo, impelido pelo impulso do Primeiro Motor – Deus. Neste elevado cume tão atingido pelo ar celestial, o denso bosque sensível ao Seu movimento ressoa inteiro; as plantas ao serem tocadas pela brisa espalham seus perfumes por toda floresta. A terra sendo para isso preparada torna-se fértil; por si ou por determinação divina germina e produz plantas de gênero e forma variadas. Por isso claramente se percebe como há plantas viçosas e floridas mesmo que a terra não tenha recebido as sementes. Esta água que aí vês, não tem origem em vapor ou chuva como rio que enche ou seca. Vem de certa fonte que nunca se esgota pois, por vontade de Divina flui tanto que aqui se divide em dois canais. A que neste leito que agora vês, faz desaparecer a lembrança da culpa; a outra desperta a memória para as virtudes humanas. Um se chama Letes (o rio do esquecimento); o outro Eunoé (o rio da boa recordação); mas suas águas somente atuam sobre o ser humano, quando este experimenta o sabor de uma e da outra. Comparando-as a outras, sabor igual ao desta água não existe. Assim falando creio ter esclarecido tuas dúvidas. Porém não receio que te desagrade se eu for além do que me perguntaste. Os Poetas que cantaram a idade do ouro e seu estado de felicidade certamente situaram no Parnaso um lugar como este. Aqui a origem da espécie humana viveu em feliz inocência; aqui a primavera é eterna e esta água é o néctar ao qual eles se referiam ".
Então aos Poetas meu olhar se dirigiu. Em seus olhos se revelou um sorriso dando-me a perceber que escutaram o que fora dito. Após isso voltei o rosto para a formosa dama.
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