O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

 

O PURGATÓRIO – CANTO XV

“VINDE POR AQUI..."

        Caindo a noite, os dois Poetas chegam ao terceiro compartimento. Aí Dante, em êxtase, vê exemplos de mansuetude e misericórdia. Voltando a si, encontra-se imerso em um fumo que obscurece o ar e impede a visão. Texto do Tradutor.

7° local - 3º círculo - Terraço da ira

A esfera luminosa que está sempre se movimentando igual a uma criança, já havia percorrido seu caminho no espaço, desde a aurora  (3:hs) à terça hora (9:hs) e mediava igual tempo para terminar o dia e dar entrada a noite.  ((das 3:hs às 9:hs = 6; – 3 = 3 horas.) Faltavam 3 horas para o ocaso, pois o Poeta percebe que deveria transcorrer tanto tempo para o pôr do Sol quanto transcorre entre o princípio do dia até a hora terça.)

(Horas Canônicas: Essas horas canônicas são as Matinas, Prima (hoje, Laudes), Terça, Sexta, Noa, Vésperas e Completas. Evocam cada uma um acontecimento do Evangelho ou dos Atos dos Apóstolos.

Matinas: ofício da leitura.

Laudes: "Segundo uma venerável tradição de toda a Igreja, as Laudes, como oração da manhã, e as Vésperas, como oração da tarde constituem como que os dois polos do Ofício cotidiano. Sejam consideradas como as horas principais e como tais sejam celebradas". Esse louvor da manhã consagra os primeiros momentos do dia a Deus. Após as trevas da noite renasce um novo dia lembrando a ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, "luz verdadeira que ilumina todo homem" (João 1:9) e "Sol de justiça que nasce do Alto" (Lucas 1:78). Por isso se inseriu o Cântico de Zacarias (Benedictus) nesta hora canônica, pois uma de suas tônicas é a glorificação do Senhor que obteve a vitória sobre a morte.

 Terça = 9:hs (Hora intermédia): recorda a vinda do Espírito Santo sobre os discípulos reunidos com Maria no cenáculo (Atos 2:15). Conforme Marcos 15:25, é a hora da crucificação de Jesus.

            Sexta = 12:hs (Hora intermédia): lembra a hora em que Pedro saiu no terraço para rezar e teve uma visão. Conforme Mateus 27:45, é a hora da morte de Cristo na Cruz.

Noa = 15:hs (Hora intermédia): Atos 3:1.  lembra a oração de Pedro e João no Templo, onde Pedro curou o paralítico, segundo Mateus 27:46 Lembra também a morte de Jesus na Cruz,

Vésperas: recebem seu nome do astro luminoso Vésper (Vênus), que começa a brilhar logo que caem as trevas da noite. Celebradas à tarde, ao declinar do dia conclui o dia e dá início à noite agradecendo a Deus os dons por ele recebidos naquele dia. Elas lembram também que o cristão deve cultivar a esperança da vinda definitiva do Reino de Deus, que se dará no fim da jornada deste mundo, quando habitará a Jerusalém celeste, onde não se precisará mais da lâmpada nem da luz do sol. Os cristãos celebram as Vésperas repetindo com os discípulos de Emaús: (Lucas 24:29).  "Permanece conosco, pois cai a tarde e o dia já declina"

O Ofício de Leituras pode ser celebrado a qualquer hora desde o anoitecer até o fim do dia seguinte. A característica desse Ofício é que nele podem os cristãos escutar mais longamente a Palavra de Deus e ter contato com os autores de espiritualidade tanto antigos como modernos, além de diversos documentos da Igreja.

Completas: deve-se rezar antes do repouso da noite. Nesse momento, faz-se um ato penitencial pelas faltas cometidas naquele dia e a salmodia exprime a confiança no Senhor: o sono da noite, que lembra o sono da morte, leva o cristão a se entregar e abandonar-se ao Senhor antes do repouso noturno. [Wikipedia].

        Havíamos caminhado bastante tempo em torno da montanha indo em direção ao poente, o que fazia com que eu estivesse com a face banhada pela forte luz do Sol. Lá, (no purgatório) era o momento das vésperas (18:hs); aqui, (na Itália) meia-noite. De repente essa luz se tornou muito mais intensa do que antes ofuscando-me a visão. Fiquei apavorado ao sentir a ação desse prodígio; então por alguns instantes ergui as mãos cima dos olhos para protegê-los melhor do excesso desses deslumbrantes raios. Como um raio de luz indo de encontro a um espelho, ou como água límpida que corre em direção oposta subindo em linha vertical logo após ter baixado e mantendo sempre a mesma distância conforme nos ensina a ciência e a experiência, assim a luz que estava em frente a mim se refletia tão penetrante em minha vista que me voltei para um lado, dela desviando o olhar. Então, ao Mestre amado perguntei: “Quem é esse que me ofusca tanto e parece vir ao nosso encontro?”

Respondeu-me: “Ainda que sua luz prejudique tua visão não fiques assustado. É um mensageiro celestial que vem falar contigo. Ao veres serás envolvido por tão imensa felicidade quanto é possível ser concedido à criatura humana”.

        Aproximando de nós disse alegremente o anjo: “Vinde por aqui; certamente que por essa escada a subida será menos penosa”.

        Íamos andando – o Mestre e eu - quando ouvimos atrás de nós um coro a cantar em voz tristonha ‘Beati misericordes!’ (Bem-aventurados os misericordiosos). E o ‘Exulta na gloriosa vitória!’ Continuávamos subindo; pela oportunidade de estarmos a sós procurei tirar proveito de seus conhecimentos perguntando: “Mestre, o que quis dizer Guido del Duca quando se referia aos que se negam a compartilhar?”

        Respondeu-me: “Conhecendo agora os danos que seu pecado pode causar não fiques admirado se o condenado passar a te prevenir sobre as consequências da prática do mal; e a inveja é um dos que conduz a intranquilidade; para aquele que deseja somente os bens terrenos, a partilha não interessa porque sendo esses bens divididos entre muitos, a parte que compete a cada um é menor do que se fosse somente de um deles. Mas, se o desejo é voltado para os bens celestiais, para o amor divinal, esse temor desaparece porque quanto mais se aperfeiçoa no amor, quanto mais esses bens celestiais são compartilhados, tanto mais ventura e felicidade cabe a cada participante”.

        Lhe disse: ”Agora compreendo menos do que antes de te haver perguntado e mais dúvida me vem à mente. Como pode, um bem que é compartilhado por muitos, produzir maior riqueza a cada um que dele se apossa, do que se aquele bem fosse dividido entre alguns poucos?” .

        Respondeu-me o Mestre: “Estando teu espírito submerso nas coisas terrenas vês trevas onde há luz intensa. Esse inefável bem vindo do infinito céu, procura atingir a criatura humana assim como um raio de luz procura atingir um corpo polido que o reflita. Quanto mais intensa for a chama do amor na alma, mais essa chama a envolverá e sobre ela se espalhará a virtude eterna. E quanto mais o ser humano for se elevando espiritualmente mais a capacidade de amar vai aumentando e sendo distribuído, assim como espelhos um nos outros se refletindo. Se as dúvidas continuarem persistindo em ti hás de falar com Beatriz; na sábia mente encontrarás a razão que tudo explica. Para que sejam apagadas as cinco marcas (os cinco Ps que Dante tem na testa) que ainda estou vendo em tua fronte é preciso que sintas profundo arrependimento dos teus pecados” .

Quando eu ia dizendo “Começo a compreender” eis que, imediatamente, num outro círculo acima entramos. Calei-me, e ansioso olhava para todos os lados a procura de novidades. De repente me encontrei em um templo onde grande multidão orava. Na entrada estava meiga senhora com piedoso semblante dizendo –“Filho, por que procedeste assim conosco ? Eis que teu pai e eu te procurávamos cheios de aflição”[Lc.2,48] (Maria mãe de Jesus, que tendo perdido seu filho e encontrando-o depois de três dias o repreende com meiguice).

         Ao mesmo tempo que a voz foi cessando a imagem desapareceu mas, logo surgiu uma outra senhora em cujo rosto molhado de lágrimas demonstrava mágoa e ira, clamando: “Se és senhor desta cidade onde a luz da ciência irradia, por cujo  mandato os deuses combateram entre si, castiga ó Pisístrato,  os ímpios braços que se atreveram a abraçar nossa filha!” (a mulher de Pisístrato, príncipe de Atenas, pediu ao marido vingança contra um jovem que abraçara publicamente sua filha.) E ele, a quem tais vozes não comoveram, respondia tranquilo – “Se, com quem nos ama e demonstra esse amor devemos corresponder com tal ira, o que faremos então com aqueles que nos querem mal?”

        Em seguida vi uma multidão enfurecida bradando cheia de ira que com pedradas linchava um jovem– “Morra! Morra!” E o martirizado já muito ferido, debruçava a dolorida fronte sobre a terra; e, voltando o olhar ao céu, naquele horrível sofrimento, suplicava a Deus que perdoasse aqueles perseguidores. Depois, com um sorriso piedoso fechou os olhos para sempre. (Santo Estevão, que foi apedrejado pela multidão.)

        Quando então em minha alma o êxtase se desfez reconheci que naquela visão aparecia não ficção mas a face da realidade. E o Mestre que me via como se eu estivesse acordando de pesado sono me perguntou: “Que está acontecendo contigo para caminhares assim vacilante? Por mais de meia légua vens andando cambaleante e olhos baixos como quem estivesse embriagado ou com muito sono”.

        Respondi: “Meu bom Mestre vou te contar tudo o que meus olhos e ouvidos contemplaram enquanto me vias com os joelhos enfraquecidos”.

        Disse Virgílio: “Ainda que estivesses com a face oculta sob centenas de máscaras não terias conseguido me ocultar os pensamentos que ainda há pouco te enlevaram. As imagens que vistes te induziram a receber na alma águas da fonte perene enviadas pelo amor Divino, para melhor compreenderes os desígnios eternos. Não perguntei ‘que está acontecendo contigo’ como quem somente vê com os olhos da matéria e sim, para acelerar teus passos pois cumpre assim incentivar os preguiçosos que se negam a uma atitude rápida, mesmo estando acordados”.

        Caminhávamos apressados a tarde toda estendendo o olhar para o mais distante possível, porém procurando evitar que os raios luminosos do Sol impedissem nossa visão. Foi então que uma fumaça intensa se elevando, condensou-se à nossa frente qual noite escura, nos impedindo a visão e encobrindo-nos totalmente.

 

 

 

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