O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

 

O PURGATÓRIO – CANTO XIV

“DIGA-NOS QUEM ÉS E DE ONDE VENS...”  

        Dante conversa com outras almas de invejosos. Respondendo o Poeta a uma pergunta de Rinieri de Calboli, intervém Guido del Duca, imprecando contra as cidades de Toscana e lamentando depois, a degeneração das famílias nobres da Romanha. Os Poetas ouvem vozes que lembram episódios nos quais o pecado da inveja foi castigado. Texto do Tradutor.

  Ainda no 6º local - 2º círculo - terraço da inveja

         “Quem é este que vem a nossa montanha sem que a morte lhe tenha dado essa ordem e que pode abrir e fechar os olhos sempre que quiser?” “Ignoro quem seja, mas sei que vem acompanhado de outro. Tu que estás mais próximo pergunta-lhe; e para que nos responda procura lhe ser  agradável”.

Assim dois espíritos que estavam à minha direita, um encostado no outro se referiam a mim (Os dois espíritos  são Guido del Duca e Rinieri dei Paolucci, senhor da Calboli - que serão identificados  mais adiante). O que estava mais próximo, lenvantando o rosto disse: “Ó alma que estando ainda na estreita  prisão corpórea podes caminhar em direção ao Céu dá-nos consolo já que estás habituado a praticar a caridade. Diga-nos quem és e de onde vens pois nos deixas impressionados diante da Graça que te protege; proteção essa que jamais alguém viu ou compreende!”.

Respondi-lhe: “Dizer quem sou seria vão discurso pois meu nome ainda é pouco conhecido. Na Toscana passa um rio que nasce em Falterona e mesmo percorrendo mais de cem milhas nunca desaparece. Desde um povoado que fica às suas margens conduzo este meu corpo cansado”.

Respondeu-me a alma que eu tinha escutado a voz antes da que estava falando: “Está se referindo ao rio Arno”. (O Arno é um curso de água da península Itálica que nasce nos Apeninos, no monte Falterona a 1 358 m acima do nível do mar, e atravessa a região da Toscana, percorre 241 km e passa por Florença e Pisa antes de desaguar no mar Tirreno. É o mais extenso rio da Toscana, com o maior curso de água, e é fato determinante para a existência de várias civilizações que se desenvolveram na Toscana, antes mesmo dos romanos chegarem até o local. Serviu como uma importante via de transporte fluvial sendo servido por vários portos, ligando a cidade de Florença até o mar Tirreno. Suas águas são caudalosas e tranquilas. Em alguns pontos são formados vários bancos de areia em dias de estiagem, mas em outras épocas é frequente que as cheias transbordem suas bordas. Por vezes, ocasionou inundações por causa disso. A mais lembrada foi a inundação de 1966. Outra inundação muito recordada pela história ocorreu em 1333, que destruiu a Ponte Romano, situada onde hoje existe a Ponte Vecchio, em Florença [Wikipédia]).

Então a outra alma interrompeu: “Por que ele não se refere ao verdadeiro nome do rio? Será que em tal nome se esconde algum sentido que não seja bom?”

Quem respondeu foi a alma que falou primeiro: “Não sei; mas seria muito bom que também o nome do vale que esse rio percorre fosse esquecido. Suas águas são excessivas desde aonde nasce até a serra que se une ao Peloro; (promontório siciliano) e a partir daí percorre regiões pouco abundantes compensando as águas que o céu lhe suga pela evaporação que dá vida e fartura a vários rios, até desembocar no mar. Mas nesse trajeto, todos os que ali vivem abandonaram as virtudes qual víbora perigosa, ou por efeito do clima ou por código moral que despreza o bem. As pessoas que habitam esse vale tiveram sua condição humana de tal forma modificada que parecem apascentadas por Circe”. (Sereia que transformou os homens em animais. No decurso de suas perambulações, o herói Ulisses (personagem épico da Odisseia de Homero, também conhecido como Odisseu) e sua tripulação desesperada desembarcam na praia da ilha de Eana, onde vivia Circe, filha do Sol. Ao desembarcar Ulisses subiu a um morro e olhando em torno não viu sinais de habitação a não ser um ponto no centro da ilha onde avistou um palácio rodeado de árvores.

Ulisses enviou à terra 23 homens chefiados por Euríloco para verificar com que hospitalidade poderiam contar. Ao se aproximarem do palácio, os gregos viram-se rodeados de leões, tigres e lobos, não ferozes mas domados pela arte de Circe que era uma feiticeira poderosa. Todos esses animais tinham sido homens e haviam sido transformados em feras por seus encantamentos.

Do lado de dentro do palácio vinham sons de uma música suave e de uma bela voz de mulher que cantava. Euríloco a chamou em voz alta e a deusa apareceu e convidou os recém-chegados a entrar, o que fizeram de boa vontade, exceto Euríloco que desconfiou do perigo. A deusa fez seus convivas se assentarem e serviu-lhes vinho e iguarias. Quando haviam se divertido à farta tocou-os com uma varinha de condão e eles se transformaram imediatamente em porcos, com "a cabeça, o corpo, a voz e as cerdas" de porco, embora conservando a inteligência de homens.

Euríloco se apressou a voltar ao navio e contar o que vira. Ulisses então resolveu ir ele próprio tentar a libertação dos companheiros. Enquanto se encaminhava para o palácio encontrou-se com um jovem que se dirigiu a ele familiarmente mostrando que estava a par de suas aventuras. Revelou que era Hermes e informou Ulisses acerca das artes de Circe e do perigo de aproximar-se dela. Como Ulisses não desistiu de seu intento Hermes (Mercúrio para os romanos) deu-lhe o broto de uma planta chamada Moli, dotada de poder enorme para resistir às bruxarias e ensinou-lhe o que deveria fazer.

Ulisses prosseguiu seu caminho e ao chegar ao palácio, foi recebido cortesmente por Circe que o obsequiou como fizera com seus companheiros. Depois que ele havia comido e bebido tocou-o com sua varinha de condão dizendo: - Ei! procura teu chiqueiro e vá espojar-se com teus amigos [Wikipédia]). O rio principia abrindo caminho entre porcos mais dignos de bolotas do que de manjares apreciados pelo homem. (Obs.: Todos esses animais são em sentido figurado). (Os porcos são os habitantes do vale do Casentino (o vale miserável). Mais abaixo onde a força e furor não se igualam, encontra-se com gente de falsas virtudes, sendo isso talvez, por desprezo, a razão de ter o rio mudado seu curso. Essa maldita e desgraçada vala quanto mais corre em caudal torrente mais encontra cães  (Os cães são os habitantes de Arezzo, que é a próxima cidade que o rio encontra, já na planície); e segue sempre descendo até que os cães dão lugar aos lobos (Os lobos são os habitantes de Florença). Daí, segue mais largo onde encontra raposas tão manhosas que os laços mais sutis não conseguem apanhá-la. (As raposas são os habitantes de Pisa, última cidade por onde passa o rio antes de desaguar no mediterrâneo). Em relação ao futuro direi coisas espantosas a quem me quiser ouvir. E bom será para este que está me ouvindo (o espírito de Rinieri) guardá-las na memória pois serão verdades bem dolorosas. Vejo teu neto, por rivalidade, caçando e aterrorizando os lobos que vivem nas margens do maldito rio e enquanto não os destroçar não descansará. Estando ainda vivos vendidos, depois serão cruelmente mortas como se fossem reses. A muitos privando da vida, priva a si mesmo da honra. Sai da terrível selva ensanguentado de tal forma, que ainda se passando mil anos, não poderá voltar ao seu estado normal”. (O  espírito (Guido) fala do neto do seu interlocutor (Rinieri), que é Fulcieri senhor da Calboli, autoridade em Florença. Como líder do partido Neri, Fulcieri cometeu várias atrocidades contra os guibelinos e os Bianchi que permaneceram na cidade. A triste selva é a cidade de Florença, onde Fulcieri governava).

        Como alguém ao saber que algo de ruim está para acontecer fica apreensivo, assim ficou o outro espírito que tendo se voltado para escutar melhor entristeceu-se ainda mais depois que o companheiro encerrou sua profecia. E eu tendo ouvido um e visto o gesto do outro, quis saber seus nomes; então roguei a eles que me dissessem.

        Respondeu o espírito que havia falado primeiro: “Pergunta tudo o que quiseres que prontamente responderei apesar de teres pouco apreço a mim pois não quiseste nos dizer seu nome. Mas, como em ti transluz a Graça de Deus, não há de ser esse que foi Guido del Duca, tão esquivo que não satisfaça o teu desejo. (Guido del Duca é filho de Giovanni del Duca, da família Onesti de Ravenna que fixou residência em Brettinoro [Musa]. Os Duca eram guibelinos e seguidores de Pier Traversaro, líder guibelino que expulsou os guelfos de Ravenna  com a ajuda dos Mainardi. Guido simboliza o invejoso que sofre com a alegria dos outros). O fogo da inveja ardeu tão vivo em mim que, ao ver o sorriso no semblante de alguém, em meu rosto era visível a insatisfação. Estou colhendo agora o repugnante fruto daquilo que semeei! Ó raça humana! Por que aquele que se nega a compartilhar com outros está sempre a desejarmais?  Este que está ao meu lado é Rinieri (Rinieri da Calboli era um guelfo de Forli tendo sido autoridade em Faenza, Parma e Ravenna. Foi derrotado por Guido da Montefeltro (veja Inferno XXVII); nele estava a honra dos Calboli; seus descendentes não lhe herdaram a glória e o valor. Sua gente que vive entre o Pó e as montanhas, entre o Reno e o mar, (essa descrição define os limites do mapa da Romanha) não somente tem faltado virtudes como despreza o bem e a verdade entregando-se a uma vida de prazeres nefandos. Por toda a extensa amplidão dessa região alastram-se vícios e maldades. Quando vai ser possível extinguir-se tal veneno? Onde estão os bons Lízio e Arrigo Mainardi? Qual o destino de Guido di Carpigna? E Píer Traversaro? Ó Romanha, (Bolonha) de bastardos sem sentimentos de dignidade! Quando terás um novo Fabbro? Quando surgirá em Faenza outro Bernardino Fosco, forte tronco nascido de frágil semente? Não julgues meu pranto pouco digno por estar rememorando nossos companheiros Guido da Prata e Azzo Ugolino; Frederico di Tignoso e sua gente; deploro os solares de Anastagi e Traversara por se extinguirem sem herdeiros damas e cavalheiros de gestos inspirados no amor e na cortesia, desapareceram dessa terra onde os corações se tornaram pedras. ; (Lízio e Mainardi,  Guido di Carpigna e Píer Traversaro, Fabbro, Bernardino Fosco, Guido da Prata, Azzo Ugolino, Frederico di Tignoso, Anastagi e Travessara, senhores e famílias da Romanha notáveis por cortesia e generosidade) Ó ímpia Brettinoro, por que não te tornas em ruínas! Viver em ti não quiseram tua gente e outras famílias temendo serem contaminadas pelos teus males pecaminosos; faz bem Bagnacaval que não gera mais filhos; os descendentes de Castrocaro agem mal e pior ainda os de Cônio que dão a luz da vida a tais condes! (Bagnacaval, Castrocaro,  Cônio, cidades da Romanha cujos senhores eram maus). Farão bem os Pagani quando os deixar o Demônio; porém jamais possuirão nome limpo (Pagani, Família nobre de Faenza, da qual fazia parte Mainardo, apelidado de ‘Demônio’ por suas crueldades). Ó Ugolino de Fantolini! (guelfo – autoridade em Faenza) Seguro está o brilho do teu nome pois já não tens filhos homens que o possa ofuscar”. E continuou “Podes agora, ó toscano, prosseguir na tua jornada porque mais que as amarguradas recordações da pátria, me consola o pranto”.

        Em silêncio as almas ouviam nossos passos que seguiam na estreita vereda. Era a confirmação de que íamos pelo caminho certo.      Estávamos sozinhos a andar quando de repente ouvimos vibrar nos ares uma voz dizendo: “... quem me encontrar me matará! (Gen.4, 14)” (Palavras pronunciadas por Caim depois de ter assassinado o irmão Abel); e fugiu qual trovão que se distancia.

        Logo a seguir ouvimos outra voz igual ao som emitido por um trovão após o outro: “Sou Aglauro, transformada em rocha(Aglauro é uma das três filhas de Cécrope rei de Atenas. Mercúrio apaixonado por sua irmã Herse pediu a Aglauro para que ela permitisse o encontro. Ela assentiu, mas Mercúrio teria que compensá-la financeiramente. Quando Mercúrio voltou, disposto a pagar o suborno que Aglauro pedisse, ela, com inveja da irmã que despertara a paixão de um deus, sentou-se na soleira da porta do quarto da irmã para impedir-lhe a entrada e disse: “Eu nunca me moverei até que sejas afastado!” “Negócio fechado!” respondeu Mercúrio, aceitando a oferta, e abriu a porta com sua vara mágica. Aglauro tentou se levantar, mas descobriu que não podia mover-se, tentou respirar, e não conseguiu. Havia se tornado uma estátua de pedra [Ovídio, Metamorfoses, livro II]

        Assustado com essa última voz me aproximei de Virgílio dando um passo, não para frente, mas para o lado. Vendo por toda a parte a tranquilidade do ar, explicou-me o Mestre:

        “Este é o freio (O freio da inveja são vozes que gritam exemplos de inveja: Caim e Aglauro)  que deveria manter os homens em seus limites; mas vós mordeis o anzol agarrando a isca apresentada pelo inimigo. Assim, chorando ou contendo o pranto, que importa os meios? O Céu vos chama mostrando esplendores eternos que vos cerca; mas vossos olhos estão voltados para a terras razão pelo qual sois punidos pelo Todo Poderoso.

 

 

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