O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

domingo, 9 de junho de 2024

 

O PARAÍSO - CANTO III

"ALI VI ROSTOS QUERENDO FALAR COMIGO"

        Na Lua estão as almas daqueles que não cumpriram plenamente seus votos religiosos. Aparece ao Poeta a alma de Picarda Donati que resolve uma sua dúvida sobre o contentamento dos espíritos bem-aventurados. Narra lhe como foi violentamente tirada do mosteiro. Indica-lhe a ala da imperatriz Constância. Texto do Tradutor

                 Ainda no primeiro céu

        O Sol que em tempos passados fez meu peito arder de amor (esse Sol é Beatriz), naquele momento aprovava  e desaprovava meus conceitos com argumentos que mostravam a beleza da sublime realidade. Reconhecendo o erro do meu raciocínio e convencido da verdade, para ela ergui a fronte o mais alto que pude a fim de isso lhe agradecer mas fui atraído por tão impressionante visão que fez me esquecer inteiramente o que pretendia lhe dizer.

        Como em vidro transparente ou à flor da água tranquila e límpida a ponto de ver no fundo algo quase invisível como pérola sobre alva pele, assim aconteceu. Ali vi rostos querendo falar comigo; então admirando aquela fonte caí no erro contrário ao de Narciso; pensando que aquelas feições estivessem sendo refletidos por um espelho, rápido voltei-me para saber de quem eram aqueles rostos. Mas não vi ninguém! (Narciso vendo sua imagem refletida na água dela se enamorou. Pensando tratar-se de outra pessoa Dante caiu no erro contrário: pensando que a imagem na água fosse o reflexo de alguém, voltou-se para ver quem era). Então minha doce guia que trazia no olhar o esplendor do santo amor, a sorrir me disse: “Não fiques admirado por me ver sorrir; a causa é teu novo engano. Na verdade teu pensamento anda trilhando por falsos caminhos como claramente se percebe; por isso fiques sabendo que as faces que aqui vês são reais; e o que as trouxe para aqui foi o não cumprimento dos votos proferidos. Pergunta-lhes o que desejas saber pois, a luz que as conduz não permitirá que se afastem da verdade”.

        Então me dirigi àquela face que se mostrava mais disposta a falar; a princípio nervoso depois mais calmo eu disse: “Ó espírito eleito que desfrutas as doçuras da vida eterna e que somente compreende quem as experimentou, grande favor me farás se me disseres teu nome e o motivo por estares aqui”.

        Sem hesitar e sorridente explicou-me: “Não posso deixar de satisfazer ao teu desejo porque temos que seguir a principal lei imposta por Deus a todos que aqui habitam que é a da caridade, a do amor. No mundo fui virgem monja; e se tua memória não falha verás que agora sou mais bela do que quando lá estava. Prestando bem atenção ao olhar-me, reconhecerás pelas minhas feições que sou Picarda. (Picarda Donati; monja da Ordem de Sta. Clara; irmã de Forese e de Corso; foi obrigada pela família a deixar o convento e a se casar com Rosselino della Tosa). Nossos sentimentos que somente a inspiração do Espírito Santo os inflama e guia elevam-se à maior perfeição ao cumprir as ordens que nos foi determinada. Estamos felizes aqui nesta esfera celeste que é a mais lenta de todas; fomos designados para este céu que parece ser inferior, uns pelo mau cumprimento de votos religiosos,  outros  pelo total esquecimento de tê-los pronunciados”.

        Respondi-lhe: “Em vosso semblante refulge algo de divino que torna vossas feições diferentes do que foi quando estáveis na Terra. Por isso demorei a reconhecer-vos. Porém, o que dissestes sobre vossa pessoa me ajudou a lembrar o que houvestes sido. Mas, dizei-me que mesmo sendo felizes aqui, não sentis o ardente desejo de subir ao mais alto dos céus e lá usufruir felicidade ainda maior?”.

        Voltando o olhar para as companheiras sorriu docemente; e radiante de alegria como se envolvida no mais puro amor respondeu-me: “Irmão, a caridade é a virtude que comanda nosso querer permanecer em constante harmonia com o amor divino; assim desejamos somente o que possuímos e nada mais. Desejando ir mais alto do que estamos, seríamos rebeldes à vontade d’Aquele que decidiu habitarmos neste lugar. Em nós não pode surgir tal sentimento que é virtude oposta à santidade. É condição para se ter a felicidade eterna cumprir as ordens do Onipotente; aqui, os nossos e os Seus desejos tornam-se um único desejo.  Cada parte refulgente do Seu reino e todo nosso ser  é governado pela vontade do Divino Rei que modela nossa mente com a Sua Lei. Nossa paz é adquirida ao mantermos obedientes aos Seus preceitos; Ele é o mar para onde todas as águas se encaminham e ao Seu comando toda a natureza foi criada”.

        Suas palavras me fizerem compreender que, no Paraíso habita quem está em qualquer parte do Céu; e também que a graça divina não é manifestada por igual em todas as partes dos Céus. Mas, se de um alimento nos sentimos saciados, de outro o apetite permanece; então a ele buscamos e nos alegramos ao encontrá-lo. Assim fiz; expressando-me com palavras e gestos quis saber qual o motivo que a impediu de cumprir os votos que fizera. Respondeu-me:

        “Em vida, foi perfeita em virtudes e elevados méritos e agora no mais alto dos Céus está quem determinou as normas, vestes e véus com que a monja promete pertencer inteiramente ao Esposo que aceita todo voto que Lhe é consagrado por amor (Santa Clara). Querendo segui-la, ainda adolescente submeti-me ao seu rigoroso regulamento e do mundo me afastando jurei estar sujeita aos seus preceitos. Contudo, pessoas cruéis impelidas mais pela maldade do que a praticar o bem, tiraram-me da paz do claustro e somente Deus sabe qual foi o meu viver e quanto sofri! Veja esta alma que à minha direita resplandece com a maior intensidade possível aos que estão nesse nosso astro; o que eu narrei sobre mim, a ela se aplica também. Tendo sido igualmente monja foi-lhe arrancado o santo véu que o voto lhe prendia à fronte. Sendo forçada a voltar ao mundo que aos seus piedosos costumes ofendia guardou sua alma fiel aos sagrados votos pronunciados. Essa outra que aqui resplandece é Constança, a que deu ao Imperador da Suábia um herdeiro cuja dinastia foi nele extinta”. (Constância, filha de Rogério - rei das Apúlias - e de Cecília; casada com Henrique VI e mãe de Frederico II).

        Tendo assim falado pôs-se alegremente a  entoar a “Ave Maria” e, assim cantando desapareceu diante dos meus olhos qual pesado corpo que mergulha em águas profundas. Queria acompanhá-la com o olhar mas, por desejo invencível atraído eles se fixaram em Beatriz;  seu semblante resplandecia tanto, que aquela intensa luz ofuscou-me os olhos.

        Pelo efeito daquele espetáculo maravilhoso, nada consegui falar.

 

 

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