Beatriz
anuncia com linguagem misteriosa, que brevemente aparecerá quem libertará a
Igreja e a Itália da servidão e da corrupção. Impõe-lhe que escreva o que viu.
Pede depois, a Matilde que o mergulhe nas águas do Rio Eunoe. Dante, depois da
imersão, se sente mais forte e disposto a subir às estrelas.
Texto
do Tradutor.
“Deus,
venerunt gentes”, (Salmo 78 no qual Davi lamenta a contaminação do Templo de
Jerusalém: “Senhor as nações entraram no teu domínio e contaminaram o Templo”), alternando-se
em dois coros
e com os olhos lacrimejando cantaram as ninfas em
suave melodia. Beatriz ouvia; mais dolorida
do que ela estava somente Maria, ao pé da Cruz. Quando lhe foi possível elevar
a harmoniosa voz, de pé entre as formosas virgens com faces incendiadas por tão
santo ardor, disse-lhe: “Modicum, et non
videbilis me, (“ Pouco tempo passará e não me vereis”, João;XVI,16) amadas
irmãs, et interum,” – continuou –
“modicum et vos videbitis me!” (“e novamente, pouco tempo passará e me
vereis”. Provavelmente referindo-se ao pouco tempo que a Santa Sé teria ficado
em Avinhão.) Depois, fazendo com que as sete ninfas se colocassem à sua
frente, acenava a mim, a Matilde e ao Poeta para que a acompanhássemos. Assim
íamos. Acredito que não havíamos dado dez passos, quando seu olhar se encontrou
com o meu; então, com tranquilidade me disse: “Chegue mais perto, pois quero
falar contigo se estiveres disposto e me escutar”. Assim que me coloquei ao seu lado, ela continuou: “Irmão,
por que não fazes a pergunta que tantas desejas, já que estás ao meu lado?”
Fiquei, como aquele que falando ao seu superior e tímido se sentindo apenas
balbucia, disse com voz confusa e entrecortada:"Conheceis bem, senhora, tudo
quanto desejo saber e o que me seja necessário conhecer”.
E ela continuou: “De agora em
diante, deixa o temor e a vergonha; estando ao meu lado, pára de falar como
quem está sonhando. O carro que foi profanado pelo dragão, já não está mais ferido. O castigo que Deus
imporá aos criminosos não será esquecida através da sopa. (Segundo uma lenda, o culpado que em sinal de expiação, tomasse sopa
sobre o túmulo do assassinado, durante nove dias, não sofreria condenação.)
Não faltarão ambiciosos herdeiros da águia que cobriu com suas penas o carro tornando-o
monstro, depois presa fácil. Olhando o futuro vejo o que os mais próximos
astros anunciam, sem que nada impeça ou modifique o que está por vir. Profetizam eles que o Céu enviará um “quinhentos, dez,
cinco” para punir a corrompida e o gigante. (DXV,
isto é um chefe, um capitão enviado por Deus, o qual punirá a Cúria Romana e o
rei de França). O que estou expondo é enigmático é obscuro e talvez não o
entendas, como aconteceu com Temis (que o
decifrou de forma obscura, a Deucalião que a foi consultar) e a Esfinge (que
propôs o enigma a Édipo) e contudo, os fatos o farão compreender; assim
como aconteceu com Náiade, (Édipo que solucionou
o enigma) sem contendas, darão a chave do enigma sem causar dano ao trigo e
ao gado. Que isto fique gravado em tua memória e estas mesmas palavras, repete
aos vivos que na ansiedade em buscar os prazeres terrenos, intranquilos chegam
ao fim da vida. Narra-lhes a aflição que sentistes ao veres o estado em que
ficou a árvore, quando sofreu dois espantosos ataques. E avisa que todo aquele
que mutila ou mata a sagrada planta, afronta a Deus que a criou perfeita,
somente para Sua glória. Na verdade, ousadamente o ofende. A primeira alma (Adão esperou durante cinco mil anos a vinda
de Jesus Cristo, que tomou sobre si o seu pecado) por ter experimentando o
fruto da desobediência, esperou gemendo durante cinco mil anos por quem tomou
sobre si, as culpas do seu pecado”.
“Se não consegues compreender a
única razão porque tem a árvore tão alta e tão larga copa, é porque tens o espírito
a dormir. Se a satisfação produzida pelos pensamentos inúteis como as águas Elsa,
(confluente do rio Arno) não tivesse
produzido efeito sobre sua mente tornando-a escura qual suco de amora, terias
compreendido; o que te expliquei já foi suficiente para compreenderes o justo
ensinamento que Deus deixou na velha árvore. Como a luz de minhas palavras te
confunde porque o entendimento não permite ver o efeito que isso causa sobre a
culpa, quero que guarde na memória uma comparação: as palmas que
enfeitam o bordão do peregrino lembram que ele deve
regressar”.
Respondi-lhe: “Vossas palavras ficarão
gravadas em minha memória qual cera conservando a marca impressa pelo carimbo. Mas,
porque vossas palavras se elevam com tamanho excesso que não consigo alcançá-las?”.
E ela continuou: “Veja, portanto, em que pervertida escola tens cursado, pois seus
ensinamentos não desenvolverem em ti a capacidade de alcançar o sentido das
minhas palavras; teu caminho está mais
distante do divino, do que a distância existente entre a terra e o céu”.
Respondi à minha sublime amada:
“Não me lembro de ter me afastado das vossas leis; a vigilante consciência,
disto não me acusa”. “Possível é que estejas enganado” - respondeu-me a sorrir
– “não te recordas que ainda há pouco, bebeste do Letes a água e de acordo com
o dito popular, a fumaça é sinal de fogo. Que tua vontade andou perdida no
erro, teu esquecimento demonstra isto seguramente. De agora em diante o sentido
de minhas palavras serão mais claras para ti”.
Com passo mais lento e brilho mais
intenso o Sol já atingia o círculo que divide os climas, tornando-os diferentes,
(era meio-dia; o Sol atingia o círculo
imaginário do equador) quando as damas, qual guia que indo à frente da
tropa pára de andar e disfarçado espia, caso se anuncie alguma novidade, assim
pararam. Haviam chegado a um lugar de espessa sombra parecido com os frios
bosques alpinos de árvores verdejantes e troncos escuros e pareceu-me ver não
muito distante delas, brotando da mesma fonte o Tigre e o Eufrates e em seguida
separando-se lentamente, como sendo dois amigos. (O Letes e o Eunoe; pareciam esses dois rios com o Tigre e o
Eufrates, pois nasciam na mesma fonte e depois se afastavam aos poucos, um do
outro).
“Ó glória! Ó esplendor da
humanidade! Dizei-me que água é essa que corre dividida depois de sair de uma
mesma nascente!” Disse-me então Beatriz, “Deve essa pergunta ser respondida por
Matilde”. Então me respondeu a dama: “Já estive lhe explicando tudo! A
lembrança na memória se apagando esse efeito não deve ter vindo do Letes”.
E Beatriz continuou falando a
Matilde: “Talvez a falta de interesse pelas coisas belas e maravilhosas pode
ter perturbado sua mente fazendo com que a compreensão se torne difícil. Eis as
águas do Eunoé; nele imergindo-o seu coração adormecido se reanimará”.
A alma nobre que à obediência jamais
rejeita faz do querer do outro o próprio querer mesmo através do simples
sinal. Matilde me conduziu para junto de Estácio dizendo-lhe com altivez e
majestade: “Segue-o também!” Caro leitor, ao ser mergulhado naquelas águas o
sabor do doce licor que experimentei não desapareceu do meu paladar; e eu o
descreveria em texto especial se ainda tivesse espaço suficiente nesta página;
mas como as páginas destinadas a este Canto já foram todas ocupadas, a arte da
poesia impede de satisfazer esse desejo. Por isso canto assim:
Como da
plantas as flores renovadas
Mais
frescas na haste mostram-se mais belas,
Puro saí
das águas consagradas
Pronto a
me elevar às lúcidas estrelas!
FIM DA 2ª PARTE