Continuando
no discurso do canto anterior, Beatriz explica a Dante que o voto é um pacto
entre o homem e Deus. Pode mudar-se a matéria do voto, mas deve ser
substituída, por oferecimento de maior mérito. Beatriz lamenta a leviandade dos
cristãos. Beatriz e Dante voam depois para a esfera de Mercúrio, onde estão as almas
dos homens que viveram uma vida digna, adquirindo fama no mundo.Um espírito
fala ao Poeta. Texto do Tradutor.
O Planeta Mercúrio
“Se me vês
resplandecente mais que o comum ao ser humano; se diante do meu olhar teu olhar
desfalece, não te espantes; este efeito tem origem na Suprema Visão que aos
nossos olhos o bem revela; e o compreendendo em aperfeiçoar-se apressa. Já distingo
bem claramente quanto na tua inteligência resplandece a Divina Luz, a qual
apenas percebida acende para sempre a chama do Divino Amor. E se outro objetivo
humano atrai teu espírito seu vestígio é bem pouco percebido refletindo-se
apenas na matéria. Estais querendo saber se um voto não cumprido pode ser por
outros atos piedosos, substituído e se ao julgamento divino, são aceitos”.
Desse modo começou a falar Beatriz; e como quem
no raciocínio não pára, assim continuou no seu santo discurso: ”O maior dom que Deus concedeu à humanidade, aquele que
revela a Sua maior bondade e o que em maior e mais alta conta Ele tem, é
certamente o desejo a liberdade que a toda criatura inteligente foi dado; o
livre arbítrio. Daí, por dedução, fica evidente o alto valor do voto, quando
feito por acordo entre Deus e a razão humana. Por contrato firmado entre Deus e
o ser humano, esse tesouro que é vítima imolada e ao sacrifício vai com
semblante jubiloso pode, por ventura, ser ele substituído? Fiques, pois ciente
de um ponto fundamental: com a dispensa ou anulação da promessa feita, a Igreja,
em tal caso, parece estar agindo de modo contrário ao que escutaste. Porém
convém que te detenhas um pouco mais, aguardando o auxílio que pretendo te
oferecer, afim de melhor compreenderes o que ouviste. Ao que te explicarei,
prestai bem atenção e guardai-o na memória, pois não é inteligente se escutar o
que depois vai ficar no esquecimento.
“Do sagrado voto é exigido a
essência, isto é: aquele objeto dado em sacrifício e do próprio contrato a
consistência. E este jamais pode ser extinto, apagado, ainda que sob tortura;
bem clara demonstração, sobre este ponto te dei. Aos Hebreus rigorosa Lei
determina oferecer piedosos sacrifícios, mas lhes fica concedida, a permuta da
oferta. No voto a permuta é permitida quando necessidade própria se apresenta,
sem ser por isto falta cometida. Mas não se muda a essência quando bem se quer.
Somente se a Igreja, tendo usado das chaves de ouro e prata, o concedesse
(somente se a Igreja, que possui a chave de ouro – da autoridade – e a de prata
– da ciência – o permitir). Acredita-se que toda permuta é passo errado quando
no novo não se inclui o antigo, bem como em seis o quatro está contido. Se na
grandeza da promessa o peso for de tal forma que obrigue a se inclinar toda a
balança, não há outra promessa que a substitua.
“Mortais, não façais promessas que
não possam ser cumpridas! Cumpre-as, mas não imitando Jefte a quem louca
promessa lhe trouxe desgraça. (Juiz de Israel que prometeu a Deus que se
vencesse os Amonitas, sacrificaria a primeira pessoa que encontrasse no caminho;
e esta foi a sua filha). “Fiz mal”! – dissera ao voto seu faltando por não
cumpri-lo piedosamente. Porém mais insensato foi o poderoso Rei dos gregos, quando
ao ver a filha, chorou, e a piedade comoveu a todos que ouviram falar naquela
abominável promessa. (Agamenon prometeu - e cumpriu - aos deuses o que possuía
de mais belo. Depois chorou a beleza de sua filha Ifigênia).
“Cristãos, pensai bem nas razões que
vos levam a certas atitudes! Não sejais como plumas soltas ao vento! A água não
apaga todas as nódoas. Tendes o Velho e Novo Testamento e, da Igreja o Pastor
que guia vossos passos! Que mais desejais para vossa salvação? Se a ambição por
bens materiais o peito vos inflama, sede homens e não animais irracionais! Que
estando entre vós o avarento, de vós não escarneça. Não façais simplesmente
como o cordeiro que, prejudicando a si próprio rebelde luta, não querendo mais
o leite materno”.
Assim falou Beatriz; depois, ansiosa e
arrebatada em êxtase voltou-se para o alto de onde jorra toda a Luz que o
universo recebe. Diante do encanto em que se transformou, calou-se o meu desejo
de resolver outras questões já prestes a serem expostas. E, qual flecha que
atinge o alvo antes mesmo de ter a corda voltado ao ponto inicial, no segundo
céu (em Mercúrio) velozmente entramos. Eu via a amada Beatriz tão jubilosa
penetrando na luzes daquele céu cujo planeta se tornou maior em esplendor; e se
o astro sorriu se transformando, como não fiquei eu que, por consequência da
natureza humana, sujeito a fantasiar essas impressões? Como em viveiro de água
mansa e limpa, na esperança de que algum alimento se oferecido sofregamente os
peixes procuram o anzol, entre mais de mil luzes, vindo às pressas, uma voz a
nós se dirigiu dizendo: “Eis que chega quem maior incentivo ao amor nos traz!”.
O sentimento de felicidade de cada espírito ao
se aproximar de nós, se mostrava no aumento da sua luminosidade. Caro leitor, qual
não seria a tua ansiedade, se por acaso a narração de quanto então se via,
interrompida fosse? Podes por tanto imaginar o que eu teria de conhecer sobre
aquela linda multidão que ante meus olhos aparecia.
Assim falou. “Ó ditosa criatura que
antes mesmo de haver findado a cansativa batalha terreal estás a conhecer os
tronos do triunfo eterno. Estamos envoltos na luz que irradia por todo o Céu;
se, desejas, te daremos muitas informações sobre todos nós que aqui estamos”.
“Responde que assim queres”. - ouvi
Beatriz dizer – “Faz tuas perguntas com tranquilidade e franqueza e acredita
como divino o que compreenderes”.
“Vejo que estás
encoberto pela própria luz que de ti irradia, pois o brilho do teu olhar e do
teu sorriso isso revela; mas não sei quem és, ó bela alma, nem por que estás a
ocupar esta estrela que nos clarões de outra aos mortais se oculta” Assim disse
dirigindo-me à luz de onde surgiu voz, e que naquele momento refulgia mais
tremulante do que quando antes a vi. E, como o sol quando ao fecharem-se as
cortinas do dia, encobre em seu próprio esplendor o que excede de luzes e no
poente se esconde, repleta de felicidade, a santa visão desapareceu nos seus
próprios raios luminosos; e envolta na sua luz que se tornava cada vez mais
intensa, contou-me o que conto no próximo Canto.
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