O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

domingo, 30 de dezembro de 2012

O Paraiso - CANTO VI

A alma do Imperador Justiniano fala ao Poeta e narra-lhe a história do Império, de Enéias a César, a Tibério a Tito, a Carlos Magno para mostrar-lhe a santidade da autoridade imperial. Diz-lhe que no Céu de Mercúrio estão os espíritos daqueles que se esforçaram para conseguir fama imortal. Discorre-lhe acerca de Romeu, que administrou a corte de Raimundo Beranguer, conde de Proença. Texto do Tradutor.

(Ainda em Mercúrio)
“Tendo Constantino conduzido a Águia contra o curso do Sol, essa Ave Sagrada permaneceu  naquele ponto da Europa, perto dos confins de Deus e vizinha dos montes donde partira, durante duzentos anos. (Depois que Constantino transferiu o império de Roma – a Águia é o símbolo do Império Romano; - Constantino a levou do Oriente para o Ocidente percorrendo o caminho oposto ao do herói que conquistou Lavínia - Enéia que se deslocou-se de Tróia para a Itália, seguindo o curso do Sol), Dali, sob a suave sombra de suas plumas teve o domínio de uma parte do mundo passando o cetro por diversos imperadores, até chegar as minhas mãos para governar o Império com bondade e mansidão.
Sou Juliano; fui eleito César duzentos anos depois de Constantino; movido pelo Espírito Divino e pelo amor a verdade, retirei das leis do Império tudo o que havia de injusto e supérfluo. Antes de me envolver com esse empreendimento, acreditava eu ter Cristo uma só natureza e nessa crença, perdido andava; mas a poderosa voz de Agapito que governava a Santa Igreja de Roma como zeloso pastor, levou-me a verdadeira fé. (Segundo a doutrina de Eustáquio, Cristo tinha somente a natureza humana. Justiniano foi conduzido à Igreja católica pelo Papa Agapito.) O que então ele me ensinou é verdadeiro, e isso hoje vejo tão claramente, quanto entre uma afirmação e outra percebe-se qual a que não oferece dúvida. Quando acreditei no que a Igreja afirmava, meu espírito logo à sublime empreendimento se dedicou. Passei o comando do exército a Belizário; e na vitória que lhe concedeu o Poder Divino, reconheci como uma ordem para que eu promovesse a paz. (Belizário: grande general de Juliano que, na Itália, combateu contra os Godos). Até o momento respondi uma parte da tua pergunta. Porém, esse assunto me obriga a maiores explicações o que estou propenso a dar-te afim de compreenderes como são infames as razões que induzem os que dizem estar falando em nome da Água romana e os que  se moverem com ela, tentando dela se apossar ou destruí-la. Pelos fatos verás quanto se tornou digna de respeito e reverência, desde quando Palante morreu pela honra e soberania do sagrado manto. (Palante foi companheiro de Enéias; morreu combatendo contra Turno). Sabes como se comportou ela em Alba (cidade fundada por Ascânio, filho de Palante, companheiro de Enéias; morreu combatendo contra os Turcos) por mais de 300 (trezentos) anos, até que lutaram três contra três, quando então foi levado dali. (combate dos três Horácios contra os três Curiácios). Sabes tudo sobre o que foi feito pelos sete reinados para que os povos vizinho fossem dominados; desde o rapto das Sabinas (rapto das mulheres dos Sabinos, efetuado pelos romanos) até ao ultraje a Lucrécia (mulher de Colatino; foi violentada por Torquínio; daí resultou a rebelião dos romanos contra a monarquia), que causou o fim dos Reinados. Tens conhecimento dos feitos de tantos heróis romanos nas batalhas contra Breno e Pirro, (o Breno foi general dos Galos e Pirro do Epiro; os dois  invadiram a Itália) e de muitos outros reis e suas coligações malignas que tornaram famosos a Torquato e a Quincio – que recebeu o apelido de Cincinato – aos Décios e aos Fábios a quem os amo e louvo. (Décios = pai e neto; morreram pela pátria; Fábios = ilustre família romana) derrubou o orgulho dos cartagineses comandados por Aníbal – o Africano, durante a travessia dos montes alpinos, de onde corre as águas do Rio Pó. (O Africano: general cartaginense que invadiu a Itália). Fez triunfar ainda na juventude  Cipião e Pompeu que lutavam à sua sombra; a colina perto da qual nasceste tornou-se violentíssima, porém algum tempo depois, quando o Céu havia decidido levar a paz ao mundo inteiro, iluminou-me, e me fez criar leis em conformidade com as de Roma e nas mãos de César entregou as nações. A coisas admiráveis que ele realizou do Varo ao Reno tiveram por cenário o Isara, o Erro e o Sena e esse vale imenso onde o Rio Ródano é o soberano. Depois que saiu de Ravena atravessando o Rubicão com César, sempre acompanhando da Águia; seus feitos foram tão grandes que é absolutamente impossível descrevê-los com precisão. Levou seu exército contra a Espanha depois contra Durazzo; em Farsália, sentiu-se perturbado pelos efeitos do calor do Nilo. Voltou então ao Simeonte (rio perto de Tróia) e ao Antandro  (cidade da Frésia) sua terra natal, e onde se encontram os restos mortais de Heitor. Mas movendo batalha contra Ptolomeu, qual raio, logo alcança Juba, destruindo-a; em seguida volta para as terras do Ocidente de onde escutou vozes de desafio enviadas pelos seguidores de Pompeu. Pelos atos infames praticados por aquele que depois o assassinou, (a morte de César foi vingada pelo Imperador Augusto) sofrem agora no Inferno, Brutus e Cassio ao lado de Perúgia e Modena; e também de Cleópatra (rainha do Egito que se suicidou) que, com o auxílio de uma serpente, teve morte atroz. A partir daí tudo, até o Mar Vermelho, esteve sob o domínio da soberana Águia, (a Águia é o Símbolo do Império Romano); foi então que a paz mais serena o quanto possível desceu sobre o mundo, até se fecharem as portas de Jano sobre Roma.
Tudo fez e faria a sagrada ave para trazer o desenvolvimento e equilíbrio financeiro a esse  império. E parece pouco em seus merecimentos quando com puro afeto e claro entendimento a vemos em mãos de Tibério. Pois foi ele quem, com viva justiça, permitiu a glória de aplacar a ira que nós lhe despertamos. Me ouvindo agora ficarás mais espanado ainda com o que vou te dizer: quis Deus vingar-Se servindo-Se daquela vingança praticada por Tito. (destruiu Jerusalém cujos habitantes tinham crucificado a Jesus Cristo = não ficara pedra sobre pedra). Quando a Santa Igreja gemia sob as presas lombardas, Carlos Magno salvou-a do perigo. (Desiderio, último rei Lombardo que foi derrotado por Carlos Magno). Portanto os crimes cometidos por aqueles a quem há pouco me referi, é que  foi o motivo para os males italianos; enquanto um partido tem hasteado lírio de prata (as armas da Casa de França) o outro a quer como símbolo de guerra. Portanto é difícil dizer qual seja o mais culpado. Que os gibelinos pratiquem suas iniquidades sob outra bandeira, pois esta que é santa, é contra os que desprezam a justiça. Que o novo Carlos (Carlos II de Anjou, chefe do partido guelfo) nem tenha intenção de usá-la em combate com os guelfos; deve ele ter sim medo das garras que souberam arrancar a juba inteira do poderoso leão. Mais de uma vez já aconteceu os filhos se envergonharem pela culpa dos pais; portanto, louca é a esperança de Carlos D´Anjou ao imaginar que Deus vai trocar a Águia pelo Lírio.
Nessa estrela em que agora habito, (em Mercúrio) estão muitos espíritos generosos que na terra se esforçaram para nela deixarem honra e fama. Quando esses desejos os inflamam em demasia, ao elevarem-se ao Céu a chama do verdadeiro amor se torna menos intensa e sua luz com menos brilho. Porém é parte do nosso destino compreender o valor dos méritos adquiridos e do prêmio recebido, não desejando que seja maior ou menor, mas, o justo. Assim sendo a divina justiça acalma e modela os nossos sentimentos deixando-os livres da inveja ou do ciúme. Assim como várias vozes produzem a harmonia dos sons, assim também os vários graus de santidade criam a harmonia do Céu; neste astro belo e polido em que estás, brilha a luz de Romeu que recebeu como pagamento pelos seus valiosos trabalhos apenas a ingratidão. (Segundo conta G.Villani, Romeu foi administrador de Raimundo Berenguer - conde de Provença - aumentando-lhe o patrimônio e conseguindo casar as filhas de Raimundo com quatro reis. Caluniado, não quis mais ficar na corte de Provença e, velho e pobre, desapareceu). Os provençais que o atraiçoaram não obtiveram nenhum benefício, pois quem julga tirar proveito do mal feito a outrem, muito se engana. Beranguer teve quatro filhas e todas se tornaram rainhas; todas foram beneficiadas por Romeu, homem humilde e obscuro. Preso na trama formada por calúnias, Berenguer pediu-lhe explicações acusando aquele que além de honesto, aumentou em cinco vezes os bens do patrão que o acusava de desonestidade. O velho Romeu, desgostoso, partiu pobre e injuriado; e o mundo que o viu mendigando, deveria vê-lo agora no brilho da glória eterna.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O PARAÍSO - CANTO V


Continuando no discurso do canto anterior, Beatriz explica a Dante que o voto é um pacto entre o  homem e Deus. Pode mudar-se a matéria do voto, mas deve ser substituída, por oferecimento de maior mérito. Beatriz lamenta a leviandade dos cristãos. Beatriz e Dante voam depois para a esfera de Mercúrio, onde estão as almas dos homens que viveram uma vida digna, adquirindo fama no mundo.Um espírito fala ao Poeta. Texto do Tradutor.

                                                  O Planeta Mercúrio
“Se me vês resplandecente mais que o comum ao ser humano; se diante do meu olhar teu olhar desfalece, não te espantes; este efeito tem origem na Suprema Visão que aos nossos olhos o bem revela; e o compreendendo em aperfeiçoar-se apressa. Já distingo bem claramente quanto na tua inteligência resplandece a Divina Luz, a qual apenas percebida acende para sempre a chama do Divino Amor. E se outro objetivo humano atrai teu espírito seu vestígio é bem pouco percebido refletindo-se apenas na matéria. Estais querendo saber se um voto não cumprido pode ser por outros atos piedosos, substituído e se ao julgamento divino, são aceitos”.
Desse modo começou a falar Beatriz; e como quem no raciocínio não pára, assim continuou no seu santo discurso: ”O maior dom que Deus concedeu à humanidade, aquele que revela a Sua maior bondade e o que em maior e mais alta conta Ele tem, é certamente o desejo a liberdade que a toda criatura inteligente foi dado; o livre arbítrio. Daí, por dedução, fica evidente o alto valor do voto, quando feito por acordo entre Deus e a razão humana. Por contrato firmado entre Deus e o ser humano, esse tesouro que é vítima imolada e ao sacrifício vai com semblante jubiloso pode, por ventura, ser ele substituído? Fiques, pois ciente de um ponto fundamental: com a dispensa ou anulação da promessa feita, a Igreja, em tal caso, parece estar agindo de modo contrário ao que escutaste. Porém convém que te detenhas um pouco mais, aguardando o auxílio que pretendo te oferecer, afim de melhor compreenderes o que ouviste. Ao que te explicarei, prestai bem atenção e guardai-o na memória, pois não é inteligente se escutar o que depois vai ficar no esquecimento.
“Do sagrado voto é exigido a essência, isto é: aquele objeto dado em sacrifício e do próprio contrato a consistência. E este jamais pode ser extinto, apagado, ainda que sob tortura; bem clara demonstração, sobre este ponto te dei. Aos Hebreus rigorosa Lei determina oferecer piedosos sacrifícios, mas lhes fica concedida, a permuta da oferta. No voto a permuta é permitida quando necessidade própria se apresenta, sem ser por isto falta cometida. Mas não se muda a essência quando bem se quer. Somente se a Igreja, tendo usado das chaves de ouro e prata, o concedesse (somente se a Igreja, que possui a chave de ouro – da autoridade – e a de prata – da ciência – o permitir). Acredita-se que toda permuta é passo errado quando no novo não se inclui o antigo, bem como em seis o quatro está contido. Se na grandeza da promessa o peso for de tal forma que obrigue a se inclinar toda a balança, não há outra promessa que a substitua.
“Mortais, não façais promessas que não possam ser cumpridas! Cumpre-as, mas não imitando Jefte a quem louca promessa lhe trouxe desgraça. (Juiz de Israel que prometeu a Deus que se vencesse os Amonitas, sacrificaria a primeira pessoa que encontrasse no caminho; e esta foi a sua filha). “Fiz mal”! – dissera ao voto seu faltando por não cumpri-lo piedosamente. Porém mais insensato foi o poderoso Rei dos gregos, quando ao ver a filha, chorou, e a piedade comoveu a todos que ouviram falar naquela abominável promessa. (Agamenon prometeu - e cumpriu - aos deuses o que possuía de mais belo. Depois chorou a beleza de sua filha Ifigênia).
“Cristãos, pensai bem nas razões que vos levam a certas atitudes! Não sejais como plumas soltas ao vento! A água não apaga todas as nódoas. Tendes o Velho e Novo Testamento e, da Igreja o Pastor que guia vossos passos! Que mais desejais para vossa salvação? Se a ambição por bens materiais o peito vos inflama, sede homens e não animais irracionais! Que estando entre vós o avarento, de vós não escarneça. Não façais simplesmente como o cordeiro que, prejudicando a si próprio rebelde luta, não querendo mais o leite materno”.
 Assim falou Beatriz; depois, ansiosa e arrebatada em êxtase voltou-se para o alto de onde jorra toda a Luz que o universo recebe. Diante do encanto em que se transformou, calou-se o meu desejo de resolver outras questões já prestes a serem expostas. E, qual flecha que atinge o alvo antes mesmo de ter a corda voltado ao ponto inicial, no segundo céu (em Mercúrio) velozmente entramos. Eu via a amada Beatriz tão jubilosa penetrando na luzes daquele céu cujo planeta se tornou maior em esplendor; e se o astro sorriu se transformando, como não fiquei eu que, por consequência da natureza humana, sujeito a fantasiar essas impressões? Como em viveiro de água mansa e limpa, na esperança de que algum alimento se oferecido sofregamente os peixes procuram o anzol, entre mais de mil luzes, vindo às pressas, uma voz a nós se dirigiu dizendo: “Eis que chega quem maior incentivo ao amor nos traz!”.
 O sentimento de felicidade de cada espírito ao se aproximar de nós, se mostrava no aumento da sua luminosidade. Caro leitor, qual não seria a tua ansiedade, se por acaso a narração de quanto então se via, interrompida fosse? Podes por tanto imaginar o que eu teria de conhecer sobre aquela linda multidão que ante meus olhos aparecia.
Assim falou. “Ó ditosa criatura que antes mesmo de haver findado a cansativa batalha terreal estás a conhecer os tronos do triunfo eterno. Estamos envoltos na luz que irradia por todo o Céu; se, desejas, te daremos muitas informações sobre todos nós que aqui estamos”.
“Responde que assim queres”. - ouvi Beatriz dizer – “Faz tuas perguntas com tranquilidade e franqueza e acredita como divino o que compreenderes”.
“Vejo que estás encoberto pela própria luz que de ti irradia, pois o brilho do teu olhar e do teu sorriso isso revela; mas não sei quem és, ó bela alma, nem por que estás a ocupar esta estrela que nos clarões de outra aos mortais se oculta” Assim disse dirigindo-me à luz de onde surgiu voz, e que naquele momento refulgia mais tremulante do que quando antes a vi. E, como o sol quando ao fecharem-se as cortinas do dia, encobre em seu próprio esplendor o que excede de luzes e no poente se esconde, repleta de felicidade, a santa visão desapareceu nos seus próprios raios luminosos; e envolta na sua luz que se tornava cada vez mais intensa, contou-me o que conto no próximo Canto. 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O PARAÍSO - CANTO IV


Duas dúvidas agitam o espírito do poeta. A primeira é relativa à doutrina platônica, segundo a qual todas as almas retornam para as estrelas donde saíram; a outra, se a violência tolhe a liberdade, como pode ser justo que as almas forçadas a romper os votos tenham desconto de glória. Beatriz responde a primeira dúvida restringindo o sentido da doutrina platônica. Relativamente à segunda diz que aquelas almas não consentiram no mal, mas não o repararam, voltando ao claustro quando tiveram possibilidade de fazê-lo.
Texto do Tradutor.

Igual a uma pessoa que diante de dois saborosos pratos, não sabendo por qual começar a comer morreria de fome; ou a um cordeiro que entre dois lobos vorazes, temendo ser atacado não se moveria do lugar, ou ainda em comparação com um cão caçador que ente duas raposas a nenhuma atacaria, assim estava eu. Conservava-me calado, passando de um pensamento a outro, sem querer revelá-los; porém, o desejo de perguntar, no semblante se percebia. O constrangido silêncio denunciava melhor o meu querer, do que se o tivesse revelado com palavras. Tal como fez Daniel para moderar as manifestações de ira que à prática do mal se encaminhava Nabucodonosor, assim fez Beatriz a mim, dizendo: (Beatriz interpretou o pensamento de Dante, do mesmo modo como Daniel interpretou o sonho de Nabucodonosor, quando este queria mandar matar os seus sábios, por não terem eles conseguido interpretar seus sonhos).
“Desejando melhor compreender cada uma das questões, tua alma se sente cada vez mais confusa; e estando em tais laços envolvida, o raciocínio se torna mais difícil. Por isso, deves analisar assim: Se a vontade perseverava no bem e somente a violência fez dela se afastar, por acaso pode, por essa violência, os méritos dessas almas terem diminuído? E ainda: se a alma retorna ao seio das estrelas como afirma o filósofo Platão. (Segundo a teoria platônica, as almas são criadas antes dos corpos e habitam as estrelas, a elas retornando depois da morte dos corpos). São essas duas questões, que tanto te perturbam. Começarei por te esclarecer a mais importante. Tanto os Serafins, como Moisés, Samuel e o João (o Batista ou o Evangelista) e também Maria, usufruem a mesma claridade Divina que esses espíritos que vistes aqui. Não há lugar diferente para estes ou aqueles; todos habitam o mesmo Céu e gozam em maior ou menor grau a felicidade eterna e suprema, de acordo com o maior ou menor grau de amor, por eles sentido. Se os vistes habitando nessa esfera celeste, certamente não foi por lhes ter sido destinado alguma honra especial ou inferior e sim, para que teu entendimento compreenda melhor o significado das coisas. É por isso que nas Sagradas Escrituras Deus é representado com mãos e pés, mesmo tendo ela certeza de que assim não é, pois a mente humana compreende somente o que é percebido pelos sentidos. Pelo mesmo motivo a Igreja representa os Arcanjos Gabriel e Miguel e aquele que curou Tobias (o Arcanjo Rafael curou a cegueira de Tobias) sob forma humana. Timéu contesta esta verdade acerca do destino das almas, ou seja, que após a morte do corpo, a alma retorna ao astro de onde viera, se é que, o que ele escreveu tenha sido bem interpretado, portanto não merecendo ser escarnecido por isso. Se, concordando com sua afirmação de que aos astros fora atribuído o poder de influenciar sobre vida humana na honra ou na desventura, certamente seu alvo não ficou muito longe da verdade. Sendo sua teoria mal interpretada, isso prejudicou quase o mundo inteiro quando, insensatamente, adoração prestou a Júpiter e Marte. A segunda dúvida, se apresenta menos prejudicial porque o mal que nela encerra não deve afastar tua alma de mim. Que lá na Terra, para o ser humano, a Justiça Divina pareça injusta, é argumento de fé, e não motivo para polêmica. E já estando o entendimento humano capacitado a compreender esta verdade, vou te apresentar o que tanto desejas saber. Se contra a vítima houver coação e ela em luta, resiste, isenta de culpa ela fica. Sendo persistente a vontade não será dominada; a chama tremulante mil vezes resiste a força que a retorce; mas se a vítima sentir-se vacilante muito ou pouco, desculpa ela não tem; essas almas poderiam ter voltado ao santo abrigo do claustro, assim que se viram livres da força da violência. Se a sua vontade tivesse sido conservada inteira como a de São Lourenço sobre a grelha ardente, ou a de Múcio, quando deu sua mão ao castigo (Lourenço foi condenado a morrer queimado vivo e Múcio, para punir-se fez queimar sua mão sobre um braseiro). Sendo livres para escolher, a estrada do dever zelosos seguiram. Mas, tal atitude é rara na humanidade. Se, prestaste bem atenção no que eu disse, viste que poderosas razões apresentei para teres suas questões resolvidas. Mas diante de ti vês elevar-se questão ainda mais complicada que sem auxílio não poderás resolver. Já te mostrei bem claramente que a ditosa alma não pode te enganar, pois está sempre na presença as Suma Verdade. Narrou Picarda que Constança fora “extremosa” no seu amor aos votos, e não “cautelosa” como eu disse o que parece uma contradição. Acontece que, durante a existência terrena há mais de uma circunstância em que, por receio a consequências maiores se praticam atos que a consciência não aceita. Foi por isso que Alemeom por compaixão ao pai, tirou a vida da própria mãe; por piedade tornou-se impiedoso. (Ver Pugatório XII – Alemeon filho de Anfiarau, matou sua mãe Eurífelis.) Fique, pois teu espírito convencido de que ao acontecimento a vontade anda unida, não havendo portanto desculpas para a falta cometida. A vontade absoluta é inimiga declarada do mal; mas quando ameaçada se retrai, temendo que sejam cometidos maiores males. Ao falar de Constança, Picarda referiu-se a vontade absoluta; e eu falava da outra vontade – a relativa – mas ambas estamos defendendo a verdade".
Aquelas palavras vindas da Fonte da Verdade esclareceram todas as minhas dúvidas; então exclamei:
“Ó do Primeiro Amante (de Deus) sublime amada! Ó bondosa senhora! Vossas palavras me encorajam, me iluminam, me estimulam, e aquecem a minha alma. Por mais que meu afeto por vós ao extremo se eleve, não é ele suficiente para vos agradecer plenamente; por isso, suplico ao Senhor que tudo pode, que preencha o que em mim falta! Não há nada que satisfaça ao espírito se esta Verdade ele não compreende e fora da qual nenhuma outra existe. E uma vez nela penetrada, a alma ali se fortalece e tranquila fica, qual a fera ao recolher-se em seu esconderijo. Nada proíbe ao ser humano buscar compreendê-la; se assim fosse, todos os esforço seriam vãos. Por isso, qual broto de arbusto a dúvida nasce ao pé da certeza; e assim nos leva de grau em grau até a sublime altura. Com toda a reverência que vos devo senhora, ouso pedir-vos que esclareça outra verdade que me está obscura: os votos rompidos pelo homem podem ser substituídos por outros com méritos diferentes, mas que se igualem em proporção, ao que foram rompidos?”

Beatriz me olhou. Tão refulgente e divino estava seu olhar que dele me desviei sentindo faltarem-me as forças; então quase prostrado, a fronte inclinei.