O por quê da "Divina Comédia"

Desde criança sinto verdadeira atração pelas estrelas. Na fazenda de meu pai, - município de Itabuna – Bahia, não havia iluminação elétrica, por isso, enquanto meus irmãos sob a vigilância de meus pais brincavam como qualquer criança, eu, deitada sobre o gramado ficava a contar e descobrir novas estrelas. Achava lindo, o céu! O luar então me deslumbrava e ainda hoje me encanta. Meu pai, meu grande amigo, homem simples mas inteligente e culto, vendo meu interesse em conhecer os mistérios do Universo, me dava como presente tudo o que encontrava de interessante sobre o assunto, como mapas indicando a posição das estrelas e os nomes das constelações; e outros, dentre eles a “Divina Comédia”. Porém não conseguia ler seus versos; dizia que eram escritos “de trás para a frente”, mas sabia que Dante Alighieri tinha ido às estrelas. Então guardei o livro com muito carinho, pensando: quem sabe, um dia... Passaram-se 55 anos até que em Janeiro do ano 2.000, início do 3º milênio, me veio a inspiração: vou ler, e o que for compreendendo, vou escrevendo; tudo manuscrito. Meditei, conversei com Dante, pesquisei História Universal, Teologia, Religião, Mitologia, Astronomia... durante oito anos.
Agora, carinhosamente, quero compartilhar com vocês o resultado desse trabalho, que me fez crescer como mulher e espiritualmente. Espero que gostem.

sábado, 18 de setembro de 2010

O Inf. CANTO XXXII

Os Poetas se encontraram no círculo em cujo pavimento de duríssimo gelo encontram-se presos os traidores. O círculo é dividido em quatro partes. Na Caina, de Caim - que matou o irmão - estão os traidores do próprio sangue; na Antenora, de Antenor - troiano que ajudou os gregos a conquistar Tróia, estão os traidores da pátria e do próprio partido; na Ptoloméia, de Ptolomeu – que traiu Pompeu, estão os traidores de amigos; na Judeca, de Judas – que traiu Jesus, estão os que traem os benfeitores e os superiores. Dante fala com vários, enquanto atravessam o gelo, indo em direção ao centro.

Texto do Tradutor


"Pode arrancar-me o pêlo mil vezes..."

Se eu pudesse usar palavras torpes e grosseiras para descrever o lúgubre e assustador poço que é à base de sustentação de todo o Inferno, faria sem constrangimento; mas tais palavras me faltam ao vocabulário; é, pois timidamente, que me proponho a fazê-lo; e é tão pesado esse trabalho que me esmorece o ânimo. Descrever com rimas o centro mais profundo e terrível do Universo não é tarefa fácil de cumprir. Se o puder mágico das Musas pudesse auxiliar nos meus versos como ajudou a Anfião em Tebas, a ele recorreria; (Anfião foi auxiliado pelas Musas, na edificação dos muros de Tebas)mas, não sendo isso possível, fiel e verdadeiro serei nessa empreitada.

Ó malfadada turba! Quão terríveis são os castigos deste abismo; melhor destino te aguardaria se transformada fosses em bando de gado selvagem.

Descemos ao fundo do enegrecido poço que ficava muito abaixo dos pés dos gigantes. Impressionado olhava eu o alto muro que circundava todo aquele abismo, quando ouvi alguém dizer: “Tenha cuidado, ó caminhante! Não pises as frontes de teus irmãos desventurados!”. Voltando-me, olhei para baixo. Sob meus pés vi a imensa superfície de um lago gelado que poderia dizer fosse feito de cristal, não de água. Na Austrália durante o inverno, as águas do Danúbio não seriam tão enrijecidas nem as do rio Don, na Rússia, seriam tão geladas. Tão petrificado era esse gelo que, se sobre ele caísse o Tambernich ou o Pietrapana (dois gigantes) com todo seu peso, não o romperia. Qual rã que no pântano coaxando tristemente, ergue um pouco o focinho enquanto a camponesa respingada fica ao tentar apanhá-la, assim gemiam aqueles condenados enterrados no gelo até a cintura, arroxeados, batendo o queixo com a mesma velocidade com que as cegonhas batem o bico. Com a cabeça a pender sobre o peito e a boca a tremer de modo impressionante, indícios bem claros davam do frio que sentiam e nos olhos, a amargura refletia!

Quando comecei a observar ao meu redor, vi aos meus pés duas almas em tal abraço unidas, que os cabelos se entrelaçavam. Então lhes perguntei: “Quem sois que tão unidas se encontram nesse estreito abraço?” Voltando-se, num curto espaço de tempo me fitaram; porém quando dos olhos as lágrimas lhes brotaram, entre os cílios ficaram, em forma de neve. Nunca dois pedaços de madeira presos por pregos se uniram tanto quanto aqueles dois; porém irados, um contra o outro se investiam, quais carneiros cabeceando-se com furor.

Nesse instante uma terceira alma a quem, de geladas lhes caíram às orelhas, sempre de cabeça baixa disse: “Por que estás a nos olhar de modo tão curioso? Desejas saber quem são os dois, que não responderam? A eles e ao seu pai Alberto pertenceu o vale onde o bisso é produzido em alta escala. (filhos de Alberto dei Alberti, que durante uma briga, se mataram um ao outro; Bisso, vegetal que produz tecido igual ao linho).Nasceram de um só ventre; tu, certamente, não encontrarás em Caína outros mais dignos de estar aqui com seus corpos cobertos pelo gelo. Nem aquele a quem a mão assassina de Artur, com um só golpe de lança, transpassou o corpo e a alma; (Mordec, filho do rei Artur; foi morto pelo pai, cuja espada o atravessou de lado a lado) nem Foccaccia; (Focaia dei Cancellieri, matou alguns parentes que pertenciam ao partido inimigo) nem esse que ali está de cabeça inclinada impedindo-me de vê-lo e que se chamara Mascheroni Sasso; (florentino que, traiçoeiramente, assassinou um de seus primos) nome bem conhecido principalmente de ti que és toscano. Agora, esperes mais um pouco, para ouvir o que tenho a te dizer: sou Piazzi (Camacion dei Piazzi, que atou seu primo Ubertino); porém, meus crimes não serão considerados os piores, quando aqui chegar Carlim”. (Carlino dei Piazzi; traiu seus companheiros, entregando várias fortalezas ao partido dos gelfos.)

Recordo-me de ter visto o rosto de outros mil condenados, arroxeados tremendo de frio. E desde aquele momento somente ao lembrar que estive diante daquele horrendo vale gelado fico tomado de arrepios, e também quando me lembro que, tremendo de pavor, no centro onde a gravidade mantém o Universo em equilíbrio, nas trevas eternas do Inferno entrei.

Aconteceu que sem querer, por sorte ou por desprezo, ao caminhar por entre tantas cabeças presas no gelo, em uma das faces pisei. “Por que me pisas?” – reclamou chorosa – ”Além de estar eu pagando pelo que ocorreu em Monte Árpeti, ainda me maltratas desta forma!”. Imediatamente falei: “Mestre, espera-me aqui; este infeliz me deixou em dúvidas por isso quero compreendê-lo; depois, se estiver ficando tarde, voltarei correndo”.

Parou então o Mestre; e ao pecador que agora feroz proferia terríveis blasfêmias, perguntei: “Quem és tu que tão severamente me repreendes?”. Respondeu-me: “Dize-me primeiro quem és tu que na Antenora, a face me espezinha! Se vivo fosses, certamente menos cruel seu golpe seria”. Respondi: “Sou vivo; e posso nos meus escritos publicar a fama do teu nome, se louvores te dão prazer”. Exclamou: “Quem te fala quer somente ser esquecido. Vai-te! Estás me aborrecendo demais; aqui não há lugar para lisonjas ou intrigas”. Então, agarrando o pecador pelos cabelos disse-lhe: “Ou me diz rápido teu nome, ou perderás todo o cabelo!”. Aos berros respondeu-me: “Podes arrancar-me o pêlo mil vezes, porém não terás o prazer de saber qual foi meu nome ou apelido e, nem de ver meu rosto”.

Já havia eu enrolado as mãos nos desgrenhados cabelos e lhe arrancado parte deles; porém mesmo ganindo ele abaixou ainda mais a cabeça, enquanto outro gritou: “Ó Boca! Não vais parar com isso? Não te é suficiente bater os queixos, agora ficas também latindo? Que demônio tem, em ti?!” (Bocca deli Abati; na batalha de Montaperti em 1.260, causou a derrota dos florentinos, passando-se para o lado inimigo). Reconhecendo-o no mesmo instante lhe disse: “Não exijo nada mais de ti, ímpio traidor. O que de ti estou vendo a todo o mundo contarei por ser isso mais infamante”. Respondeu-me cheio de ódio: “Vai! Se puderes sair deste horrendo abismo fala o que quiseres, não esquecendo porém do linguarudo que aqui está; podes dizer: "eu vi Roso Duera acompanhado de muitos outros; agora chora pelo ouro que recebeu da França em pagamento por sua traição". E se perguntares quem são esses outros, a resposta terás se olhares agora ao te redor; verás Beccaria, que Florença mandou degolar. Ainda há poucos instantes passou por aqui Gian del Saldanier com Ganellon e Tribaldello, aquele que abriu as portas da cidade de Faenza enquanto seus habitantes dormiam, traindo sua cidade natal”.

Depois disso, deixei-o; e enquanto me afastava em direção ao Mestre, subitamente vi numa caverna de gelo dois condenados; a cabeça de um e do outro era um só cabelo. Os dois, como esfomeados ao pão se agarrando, um sobre o crânio do outro os dentes aferrava mastigando-lhes o cérebro e os ossos, como Tideu que, enfurecido, a dentadas triturava o crânio de Menolipo, já morto.

E eu vendo aquela terrível cena, exclamei: “Ó tu que de tão cruel ódio possuído estás a ponto das carnes do inimigo ferozmente dilacerando-o, diga-me o que causou tudo isso. Se eu souber que a razão está contigo e tiver conhecimento de tua culpa e condenação, quando ao mundo eu voltar prometo que farei tua defesa se por Força Superior não for eu impedido de falar”.

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