Texto do Tradutor.
"Torre da fome"...
“Muitas vezes, na torre que depois passou a ser chamada “Torre da Fome”, por pequena fresta eu via passar muitas luas; numa dessas noites quando estava a luz da lua em pleno crescimento, em horrível sonho o véu do futuro rasgou-se como um pressentimento. Vindos do monte que fica entre Lucca e Pisa, vi um lobo e seus filhotes a correr. Logo atrás, magros, ágeis, e ferozes cães incitados eram, pela família dos Galandis, Sismondis e Lanfrancos cujo chefe da caçada era esse aqui. De repente o lobo e seus filhotes cansados, mancando e já muito feridos pelos galgos, pareciam estar em últimas agonias. Ao primeiro clarão do dia acordei com o choro dos meus queridos que comigo estavam e que ainda adormecidos, pediam pão. És cruel, se tua alma não sofrer ao imaginar a dor que me aguardava; se não choras com o que estais a ouvir, que sofrimento há que te comova? Despertaram; já chegava a hora em que nos traziam o escasso alimento. O sonho, a cada um nos aterrorizava. Da horrível torre então se ouviam martelos a cravejarem as portas. Eu, mudo e paralisado, nos filhos encarei; já esmoreciam. Eu não chorava; o peito parecia uma rocha. Eles choravam. Então, Anselmúccio disse: “Do que tens medo pai? Porque nos olha assim?” “Não chorei nem palavra alguma eu disse durante o dia e a noite que seguiu lenta, até que novo dia surgiu. Quando a luz ainda escassa a iluminar o doloroso cárcere se apresentou, pude ver meu semblante nos rostinhos das quatro crianças. Delirante de agonia e ódio mordi minhas mãos; pensando eles ser aquele gesto, efeito da fome, suplicantes disseram: “Menos mal nos será feito pai, se nos comeres; nos vestistes, nos deste a carne e a vida; agora, sirva-se de nós pai”! Contendo-me, evitei não mais entristecê-los. Passaram-se dois dias e todos nós em perfeito silêncio... Ah!... Por que, terra, não te abriste evitando tamanha desgraça?... No quarto dia, a luz do sol clareou o ambiente do cárcere. Caddo, caiu-me aos pés desfalecido, os lábios murmurando: “Pai, socorra-me!”. E morreu. E assim como me estais vendo agora, enlouquecido me senti ao presenciar, durante o quinto e o sexto dia um a um, os três, morrerem de fome! Apalpando procurei seus corpos! Não enxergava! Estava eu cego. Durante vários dias, repeti seus nomes, até que a agonia da forme, pior que a agonia da dor, acabasse comigo.”
Após essa terrível narração calou-se; depois furioso e com os olhos revirados com antes, cravou os dentes no crânio do maldito; e igual a cão faminto o foi destruindo.
Ah! Pisa! És a vergonha dos que habitam a bela Terra onde seus corpos repousam! Por que os povos vizinhos são tão lentos, em ti punir, Depressa se movam Capraia e Górgona (ilhas, na foz do Arno) fechando-te a foz do Arno à saída, a fim de que teu povo pereça sob as águas represadas! E se ao infeliz Ugolino foi atribuído a traição de entregar sua pátria aos inimigos, por que, de modo tão cruel tirar a vida dos seus filhos? Oh! Nova Tebas! Pela tenra idade Ugoccione e Brigata inocentes eram, assim como os dois irmãos, para com quem usaste tamanha ferocidade!
Seguindo mais adiante – na Ptoloméia, encontramos outros que, encravados no gelo, padeciam duro sofrimento. Tinham eles as cabeças pendidas para trás, impedindo-lhes que o pranto da dor rolasse pelas faces; ficando ela reprimida, transformava-se em gelo que obstruía toda a cavidade interior dos olhos.
Com a intensidade do frio meu rosto tornara-se insensível; mesmo assim, desde que a essa eterna geleira cheguei, percebi como sendo um sopro ou branda aragem, a me tocar as faces. Curioso, perguntei: “Mestre, qual a origem deste leve vento? Se aqui não há vapor de ar, de onde ele vem?”. (Naquela época, acreditava-se que o vento era produzido pela evaporação da Terra; se a luz e o calor do Sol não chegavam ao fundo do Inferno, não poderia haver evaporação). Respondeu-me o Mestre: “Irás aonde teus próprios olhos resposta correta te darão. E ali chegando, saberás como é produzido esse suave vento”.
De repente, um dos padecentes que ali estavam nos disse gritando: ”Ó almas cruéis! Ó almas condenadas que no extremo do abismo estais, tirai dos meus olhos essas gélidas camadas e deixa-me chorar até desafogar o peito aflito, antes que eu tenha as lágrimas novamente congeladas”. Respondi: “Se queres que te ajude, diz-me teu nome; e se eu não cumprir o que estou prometendo, seja eu retirado desse lugar gelado onde estou e levado ao abismo infernal onde estás”. Logo me respondeu: “Sou frei Alberto; pelos famosos frutos do meu amaldiçoado pomar, aqui recebo tâmara, quando me prometeram figo”. (Frei Alberto Manfrede, de Faenza; convidou dois parentes, para comerem em sua casa; no fim do jantar, ao pedir que trouxessem as frutas, os criados entraram na sala e mataram os hóspedes.) Exclamei surpreso: “Oh! Então morreste!”.
Respondeu-me: “Não sei; não sei se meu corpo está vivo lá no mundo, nem como ele está. Essa relação entre alma e corpo, pelas regras da Ptoloméia, é muito freqüente. Pode a alma estar (das três Parcas; a que cortava o fio da vida humana.) E para que estas vitrificadas lágrimas sejam por ti prontamente removidas te direi como isso acontece a quem, como eu, tem a mente corrompida pela traição. No momento exato do ato o corpo do traidor passa a pertencer ao demônio que o governa, até o último momento de vida, quando na terra a lúgubre sepultura alívio dá ao corpo, cujo espírito já esteja aqui trêmulo a padecer. Se recém-chegado és, fiques sabendo que esse traiçoeiro que ali está, se envolveu em infernal confusão há muitos; é Bianca d´Ório”. (Genovês que convidou o sogro Miguel Zanche a jantar em sua casa, armando-lhe uma cilada: matou-o para ficar com o castelo de Logodoro.) Respondi: “Este é mais um de seus enganos; Bianca d´Ório desfruta alegremente da vida; come, bebe, dorme e veste roupas”. Então ele continuou: “Não é a de Miguel Zanche, porque sua alma está na negra caverna em Malebolge, submersa no viscoso piche; e esse criminoso aqui, deixou entrar no seu corpo um demônio; o mesmo acontecendo a um seu parente que na traição foi sócio, tirando disso grande proveito”. Depois gritou: “Agora, presta clemente auxílio com tuas mãos abrindo-me os olhos!”.
Mas nada fiz pois compreendi haver cometido grave erro ao querer tratar com cortesia, tal bandido.
Ah! Genoveses! Raça impura e avarenta que nas ações tem tamanha mancha! Quem, da face da terra vos extinguirá? Vi, entre o pior espírito da Romanha um tão grande traidor, que sua alma no Cocito já se banha, enquanto no mundo, seu corpo, vivo está!
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